Quando o número 159 apareceu no telão da Câmara dos Deputados, Ronaldo Fonseca (PROS-DF) apareceu imediatamente ao microfone erguendo um exemplar surrado da Constituição brasileira. Antes que o então presidente da Casa, Eduardo Cunha (PMDB-RJ), terminasse de chamá-lo, já iniciava seu breve discurso. “Pelo povo brasileiro, pelo Distrito Federal, pela nação evangélica e cristã e pela paz de Jerusalém, eu voto sim”, vociferou.
Fonseca teve, em 2014, 84.583 votos – número, porém, que não seria suficiente para dar-lhe o cargo de deputado, por causa do chamado quociente eleitoral, uma fórmula presente em vários sistemas eleitorais do mundo que determina a proporcionalidade dos votos sobre os cargos disponíveis.
Pela fórmula, divide-se o número de votos válidos de um Estado pelo número de cadeiras que essa unidade federativa possui no Legislativo. No caso do Distrito Federal, haviam oito lugares disponíveis nas últimas eleições, de forma que, para ser eleito sozinho, um candidato precisava atingir exatamente 181.758 votos. Fonseca não chegou nem na metade disso e, se não fosse carregado pelos votos recebidos por outros deputados do seu partido, não teria tido a chance de lembrar de Jerusalém na votação do impeachment.
Horas depois da votação na Câmara ser encerrada, reportagem da Agência Câmara de outubro de 2014 circulou nas redes sociais. Nela, a Mesa da Câmara informava que, dos 513 parlamentares eleitos no pleito daquele ano, apenas 36 tinham conseguido seu lugar no Congresso por conta própria. Os outros 477 só estavam sentados em suas cadeiras por obra do sistema eleitoral.
A Câmara alterou a matéria depois da sua projeção nas redes, mas se esqueceu de retirar a lista com os 36 deputados que conseguiram votos superiores ao quociente eleitoral. O ex-presidente da Câmara, Eduardo Cunha, por exemplo, recebeu exatamente 232.708 votos, quando, para ter seu lugar na Casa, bastavam 165.558 eleitores. Os 65.015 votos que sobraram foram transferidos para algum candidato que tinha seu nome na lista do partido ou coligação. Em resumo: mais de 60 mil eleitores votaram em Eduardo Cunha e não o elegeram, quase escolhendo, na verdade, a um colega de legenda que possivelmente sequer conhecem.
Este é o chamado sistema proporcional de lista aberta, em que os eleitores têm a possibilidade de ver a relação de candidatos que os partidos políticos disponibilizam para as eleições. Se um nome supera o número de votos necessários para se eleger, transfere os restantes para outros nomes da relação.
“A utilização do sistema de lista aberta no Brasil chama a atenção pela longevidade. Nenhum país do mundo utiliza a lista aberta há muitos anos”, escreveu o professor Jairo Nicolau, do Departamento de Ciência Política da UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro), em um artigo sobre o sistema eleitoral brasileiro.
O caso mais aparente da complexidade do quociente eleitoral é o dos deputados Celso Russomanno (PRB-SP) e Tiririca (PR-SP) nas últimas eleições. O primeiro teve exatos 1.524.361 votos, quase 12% do total de eleitores do Estado de São Paulo. Como bastavam aproximadamente 300 mil escolhas para que fosse eleito, o jornalista conseguiu levar a Brasília outros quatro deputados da sua coligação: o ex-cantor Sérgio Reis, o ex-prefeito de Santos, Beto Mansur, além de Marcelo Squasoni e Fausto Pinato.
Dos quatro, o mais bem votado foi Sérgio Reis, com 45.330 votos, quase sete vezes menos do que precisava para ser escolhido um representante paulista no parlamento nacional. Os quatro deputados “puxados” votaram a favor da deposição da presidente Dilma Rousseff.
Com cerca de 1 milhão de votos, Tiririca chegou a Brasília acompanhado de outros dois candidatos eleitos que ele mesmo sequer conhecia: o Capitão Augusto (46.905 votos) e Miguel Lombardi (32.080), ambos do PR e que tinham sido estrategicamente nomeados na lista da legenda.
Para o professor de Ética e Filosofia Política da USP (Universidade de São Paulo), Renato Janine Ribeiro, que foi ministro da Educação entre abril e setembro do ano passado, o sistema de lista aberta prejudica substancialmente a representatividade política brasileira.
“Quando se diz que os parlamentares foram colocados no Legislativo por nós, isso é verdade apenas do ponto de vista jurídico. Do ponto de vista simbólico, não é verdade. Nós esquecemos não apenas em quem votamos, como há um grande número de votos que foram depositados em outros nomes que não aqueles que estão lá representando. Isso deixa o Legislativo em uma posição complicada”, explica.
São Paulo, o Estado que tem mais cadeiras disponíveis na Câmara, 70, possui apenas cinco representantes eleitos por seus próprios votos na primeira casa do Legislativo nacional: Celso Russomanno (PRB), Tiririca (PR), Marco Feliciano (PSC), Bruno Covas (PSDB) e Rodrigo Garcia (DEM). Os outros 65 – incluindo nomes como Paulo Maluf (PP) – receberam seus cargos por meio do quociente eleitoral partidário.
O Rio também teve cinco parlamentares que alcançaram o número de votos suficientes: Chico Alencar (PSOL), Clarissa Garotinho (PR), Eduardo Cunha (PMDB), Jair Bolsonaro (PP) e Leonardo Picciani (PMDB). Ou seja: dos 46 lugares que tem direito na Câmara, 41 estão ocupados por representantes que a maioria do eleitores desconhece.
O sistema representativo brasileiro atual está organizado justamente para não representar: os deputados não são escolhidos diretamente pela população, defendem pautas paralelas aos interesses dos eleitores e, muitas vezes, têm pendências judiciais ou em tribunais de contas.
Em suma, esse é um dos principais fatores do que aprendeu-se a chamar de crise de representatividade, resultado também da despreocupação dos eleitores com seus representantes no parlamento – a grande saída para alterar essa realidade.
“O sistema atual de lista aberta está trazendo resultados muito ruins e precisa ser modificado. Quase todos se beneficiam dos votos de outros candidatos. Isso deixa o parlamento com déficit de legitimidade junto ao eleitor. O Brasil emperrou, e isso aconteceu a partir da hora em que a reforma política não foi feita”, analisa Janine Ribeiro.
Como alternativa ao sistema proporcional, há quem proponha o sistema distrital, em que o Estado seria dividido em vários distritos, e cada distrito elegeria um deputado por maioria simples (50% dos votos mais um). Assim, o candidato mais votado é eleito. A desvantagem desse sistema, segundo Ribeiro, é que, a definição dos distritos pode prejudicar ou beneficiar um partido. “Se em um distrito 55% dos votos são da direita, os 45% dos demais votos (que poderiam ter ido a um partido da esquerda) ficam neutralizados”.
Há ainda quem proponha o sistema proporcional com lista fechada, em lugar da lista aberta. Neste sistema, os partidos definem a ordem dos candidatos na lista. “Pode haver uma redução de chances de um candidato concorrer por um partido sem ter os valores desse partido”. E há ainda o sistema misto, usado na Alemanha, em que metade dos deputados são eleitos pelo sistema proporcional e outra metade pelo sistema distrital.
Cada um dos sistemas têm vantagens e desvantagens. “A principal coisa a se fazer hoje é restaurar a representação: fazer com que Executivo e Legislativo representem, novamente, a sociedade”.
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Foto: Agência Brasil