De um lado, um candidato que ameaça a democracia brasileira, a estabilidade política do continente e representa uma chegada vigorosa do populismo conservador à região após a eleição de Donald Trump, nos Estados Unidos, e da aprovação do Brexit, no Reino Unido. Do outro, um político desconhecido no exterior escolhido por um antigo presidente que, se outrora era admirado por todos os governos sul-americanos, hoje é um dos membros presos de um partido que se acostumou com escândalos de corrupção. No meio, a população brasileira.
Em termos gerais, essa é a posição geral da imprensa da América do Sul desde que o segundo turno entre Fernando Haddad (PT) e Jair Bolsonaro (PSL) foi anunciado pelo Tribunal Superior Eleitoral, na noite de domingo (7).
Na Argentina, um dos países mais preocupados com o resultado das eleições presidenciais brasileiras – os vizinhos são o terceiro maior mercado importador do Brasil, segundo o Ministério da Indústria, Comércio Exterior e Serviços –, a repercussão da mídia se concentrou nas reações do governo local ao processo eleitoral nacional.
Três dias depois da vitória inicial de Jair Bolsonaro sobre Fernando Haddad no primeiro turno, por exemplo, o chanceler argentino Jorge Faurie afirmou que o candidato do PSL é uma “nova figura que emerge e assume notoriedade na vida política brasileira” e que a Argentina precisará ter uma relação amistosa com ele nos próximos anos, assumindo um “posicionamento que olhe para o futuro e não para o passado”.
O ponto de contato entre Bolsonaro e o presidente argentino Maurício Macri, no entanto, é a percepção que ambos possuem do contexto venezuelano atual: enquanto o candidato brasileiro construiu sua campanha eleitoral sobre críticas diretas ao presidente do país, Nicolás Maduro, e fazendo constantes comparações entre a Venezuela e o Brasil, Macri foi um dos responsáveis pela suspensão do país do Mercosul, em agosto do ano passado, cumprindo, assim, uma de suas promessas da eleição de 2015.
O colunista do jornal La Nación, Carlos Pagni, afirmou que as eleições brasileiras apresentam uma característica comum aos países do Ocidente nos últimos anos: a violência entre os polos em disputa. “Há um caráter similar a muitos outros processos eleitorais e políticos que estão acontecendo, porque o vetor que os conduz é o repúdio ao outro”, escreveu.
“Uma democracia que se modela no repúdio, cujo primeiro movimento é evitar que alguém chegue ao poder, é uma democracia que volta a ser primitiva, porque o debate racional começa a ter cada vez menos sofisticação”, continuou.
Pagni também questionou a capacidade do próximo presidente de governar um país que estará fraturado socialmente e comparou a situação brasileira à Argentina de Macri, em que a recessão econômica e a corrupção do Estado dão a tônica de uma política dividida entre os apoiadores do atual governo e da ex-presidenta Cristina Kirchner. “O Brasil é um reflexo do que a Argentina pode se tornar no futuro”, alertou.
Já o Clarín assumiu uma postura mais firme: em um editorial antes do primeiro turno afirmou que a alta popularidade de Jair Bolsonaro é o “reflexo do fenômeno mundial do populismo no Brasil e na América Latina” e que sua vitória “graças aos votos de protesto mostra os riscos que afrontam a jovem democracia brasileira”.
O diário argentino – que fez oposição aos governos da ex-presidente Cristina Kirchner e chegou a entrar em colisão com o governo à época – ainda afirmou que as eleições do Brasil reafirmam a importância atual de questões como fake news e o avanço das igrejas evangélicas sobre a política. Além disso, ainda diz que a prisão de Lula, considerada injusta pelas classes populares e reafirmada no debate público pelas classes médias, torna ainda mais complexo o cenário das eleições no Brasil.
Assim como o La Nación, um colunista do Clarín, Marcelo Cantelmi, também apontou a corrupção e a crise econômica como os fatores principais de compreensão dos 47 milhões de votos que Bolsonaro recebeu. Ele, porém, voltou ainda mais no tempo para tentar explicar a ascensão da candidatura do ex-militar ao cargo máximo do país.
“Nossa época é repleta desse tipo de personagem. Sem a crise global e arrasadora de 2008 que, depois do terremoto financeiro, culminou em uma aguda concentração de renda, não existiria agora a emergência de extremismos que cruza de um lado ao outro da Europa ou o imprevisível experimento populista da Casa Branca. Todos são cenários que se refletem no fenômeno brasileiro”, disse.
Assim como os diários argentinos, a imprensa chilena repercutiu nesta semana a declaração de apoio do presidente do país, Sebastián Piñera, à candidatura de Bolsonaro. Durante um evento em Madri, na Espanha, ele disse que ouviu as declarações polêmicas do candidato do PSL, mas que concorda com seu plano econômico. Piñera também disse que desconfia de Haddad porque “ninguém o conhece”.
O principal jornal chileno, o La Tercera, publicou um editorial um dia após a eleição brasileira dizendo que o resultado do primeiro turno foi surpreendente, mas ilumina a insatisfação do país com o sistema político e com o legado do PT no governo. “O partido governou durante 15 dos últimos 20 anos, deixando a pior recessão da história do Brasil e mais de 13 milhões de desempregados, além de ter promovido uma imensa rede de corrupção com ramificações que alcançaram grande parte da América Latina”, diz o jornal.
O editorial ainda afirma que Jair Bolsonaro conseguiu capitalizar nas urnas o descontentamento da imensa maioria da população com os governos petistas anteriores e a insegurança percebida principalmente pelos moradores das zonas urbanas. “Só isso explica como ele conseguiu 60% de apoio em um estado tradicionalmente de esquerda como o Rio de Janeiro, assolado pela criminalidade”. O texto, porém, termina indagando se “o remédio escolhido pelos eleitores não pode acabar sendo pior que a doença”.
Segundo o La Tercera, o ex-deputado chileno José Antonio Kast, da Acción Republicana, grupo político que reivindica o legado de Augusto Pinochet no país, está no Brasil desde a semana passada apoiando a campanha de Bolsonaro. Antes do primeiro turno, ele enviou uma carta ao ex-militar afirmando que sua vitória “vai recuperar a liberdade, a ordem, a probidade e a segurança dos brasileiros”.
No Uruguai, o principal jornal do país, o El País, também publicou um editorial após o primeiro turno afirmando que a polarização extrema entre os grupos de esquerda que apoiam Fernando Haddad e os de direita, ao lado de Jair Bolsonaro, tende a dificultar a governabilidade do vencedor. “Quem seja o ganhador encontrará um Brasil dividido, em estado de paralisação econômica, com uma insegurança rampante e uma decadência alarmante das instituições”, diz o texto.
A publicação, porém, afirma não acreditar que nenhum dos dois candidatos do segundo turno apresentam condições de enfrentar o momento crítico brasileiro. “A verdade é que nem Bolsonaro nem Haddad parecem aptos para lidar com estes desafios”, porque, enquanto o PT havia prometido limpar a política brasileira e saiu do governo mais de uma década depois debaixo do maior escândalo de corrupção da história, a candidatura do ex-militar não se preocupa com as convenções democráticas e despreza os direitos humanos.
O diário ainda aconselha que os governantes uruguaios mantenham distância ideológica dos políticos brasileiros, porque, seja qual for o próximo presidente, o Brasil será um vizinho “protecionista e um sócio pouco amistoso quando lhe convier”. “O Itamaraty, esta instituição inamovível independentemente do governo, seguirá invocando o Mercosul para o mundo e, ao mesmo tempo, fazendo pouco para renová-lo”, vocifera o jornal.
O paraguaio ABC Color foi na mesma direção do jornal uruguaio: como o Brasil é o principal comprador de alguns produtos do país vizinho e seu maior investidor direto, a publicação repercutiu a preocupação dos empresários locais com a continuidade dos contratos em vigência atualmente com o governo e empresas brasileiras. “Existem negociações e convênios que deverão ser analisados à luz dos resultados, sejam bons ou ruins”, resumiu a presidente da Câmara de Empresas Maquiladoras de Paraguay, Carina Daher.
O colunista Ilde Silvero lamentou, em um artigo no mesmo jornal, que a América do Sul permaneça historicamente desequilibrada entre extremos: se nos anos 2000 a esquerda assumiu o poder na maioria dos países do continente, desde a vitória de Donald Trump, nos Estados Unidos, em 2016, o pêndulo se deslocou para a direita. “O notável deste mecanismo é que ele não fica em um único lugar: ainda que passem décadas, a força da gravidade vai lhe levando com os anos para outro extremo”, reclamou.
Na Bolívia, o Pagina Siete, de La Paz, chamou as eleições brasileiras de “incertas”, porque os candidatos estão mais preocupados em atacar um ao outro do que apresentar propostas para o país. O jornal, porém, afirmou que o próximo presidente precisará ser “sensato” para “valorizar os direitos civis e democráticos”.
O El Deber, de Santa Cruz de La Sierra, no entanto, foi mais incisivo: publicou um editorial chamando Bolsonaro de “radical, homofóbico, misógino, racista” e afirmando que sua provável vitória será um solavanco de grande impacto na democracia brasileira e latino-americana.
“O crescimento dos escândalos de corrupção, a expansão do narcotráfico e a violência nas principais cidades do Brasil vão estabelecer as condições ideais para a emergência deste discurso radical e ultraconservador de Bolsonaro, assim como foi com Trump nos EUA e com o Brexit no Reino Unido”, diz a publicação.
A Bolívia é um dos poucos países da América do Sul que ainda possui um governo alinhado à esquerda, sob as rédeas de Evo Morales e seu partido, o Movimiento al Socialismo (MAS). Em agosto de 2016, após o impeachment de Dilma Rousseff (PT), o presidente boliviano chamou de volta a La Paz o embaixador do país em Brasília e foi criticado pelo então ministro das Relações Exteriores, José Serra. Os bolivianos têm uma agenda política complexa com o Brasil, que é um dos principais compradores de gás natural dos vizinhos e que, nas últimas décadas, se tornou destino natural de fluxos migratórios do país andino.
No Peru, em que a Operação Lava Jato chegou a prender empresários, políticos e ajudou a derrubar o então presidente Pedro Paulo Kuczynski – acusado de receber propina da Odebrecht para aprovar obras no país –, o jornal La República publicou um artigo editorial afirmando que as propostas de Bolsonaro são “quase impossíveis” de cumprir e que ele representa a volta de um populismo à América do Sul, mas como o PT se envolveu em escândalos de corrupção, a polarização entre os dois extremos impediu uma alternativa centrista. “Os brasileiros parecem mais dispostos a voltar ao passado do que avançar ao futuro”, diz a publicação.
O jornal equatoriano El Comercio também chamou a atenção para a ausência de um centro no espectro político brasileiro atual. A publicação salienta que, apesar do PT ter retirado 16 milhões de pessoas da miséria durante seus governos, a corrupção sistêmica no Estado comandado pelo partido abriu uma ferida no país que, agora, Bolsonaro promete fechar. Para os equatorianos, a vitória de Haddad no segundo turno é “muito difícil”. O concorrente La Hora, por sua vez, assumiu uma postura mais clara: diz que Lula errou ao escolher um candidato desconhecido e que, em um país em que reinam a corrupção, a desigualdade e a violência, o pior que podia acontecer é um “racista nostálgico da ditadura” chegar ao poder.
O colombiano El Espectador também não ficou em cima do muro: o editorial El peligro del ultrapopulismo en Brasil) diz que a vitória de Bolsonaro no primeiro turno é um “grande alerta sobre a possível chegada do populismo ultra-conservador na América Latina” e que, como o Brasil é o país de maior peso da região, o resultado do segundo turno será vital para todos os vizinhos. “O discurso radical caiu em um eleitorado descontente com a política tradicional, a corrupção e a falta de soluções para os problemas mais graves do país”.
A mesma postura foi assumida pelo El Tiempo, também da Colômbia: “Qualquer semelhança com o filipino Rodrigo Duterte ou com a campanha de Trump não é mera coincidência e se situa no que alguns analistas já denominam a onda global do extremismo e do totalitarismo, que tem no magnata estadunidense seu expoente mais vistoso”, diz em editorial.
Na Venezuela, – país que apareceu durante toda a campanha eleitoral brasileira e que pauta o debate político do país desde a reeleição de Dilma Rousseff, em 2014 –, os jornais não se manifestaram diretamente. O colunista Eleazar Rangel, do situacionista El Mundo, escreveu que os eleitores que votaram em Bolsonaro não foram enganados, porque o candidato foi “muito claro em sua linguagem” nos últimos meses.
No diário El Nacional, as opiniões foram divergentes: enquanto a colunista Raquel Gamus reclamou que nem Bolsonaro nem Haddad oferecem propostas concretas aos desafios do país – apesar do voto democrático ser no candidato petista –, a também articulista Beatriz de Majo escreveu que a provável vitória de militar no Brasil vai ser útil para “conter os excessos de uma ditadura [venezuelana] que não encontrará outro caminho e vai se entrincheirar dentro de suas fronteiras e se isolar do mundo, ao lado de Cuba, terminando de afogar sua economia e empobrecer o povo”.
O canal Telesur, do governo venezuelano, vai obviamente em direção contrária: diz que um provável mandato de Bolsonaro trará uma guerra entre os dois países e que novamente o Brasil terá que escolher entre o socialismo ou a barbárie ou, em outro texto publicado, entre a soberania e um retorno à colonização. Um dia depois da vitória do candidato do PSL no primeiro turno, o presidente venezuelano, Nicolás Maduro, disse à rede de TV que “é hora de reagir ao avanço fascista na América Latina”.