O ‘bolsonarismo’ é maior do que Bolsonaro, diz Rosana Pinheiro-Machado
Análise

O ‘bolsonarismo’ é maior do que Bolsonaro, diz antropóloga

Para Rosana Pinheiro-Machado, que estuda eleitorado urbano periférico, houve um erro de diagnóstico sobre o avanço do autoritarismo

em 16/10/2018 • 18h42
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Em fevereiro de 2016, a antropóloga, cientista social e professora Rosana Pinheiro-Machado, hoje lecionando na Universidade Federal de Santa Maria (UFSM), no Rio Grande do Sul, participava de um seminário sobre a crise no Brasil na Universidade de Oxford, na Grã-Bretanha, quando se referiu ao então deputado Jair Bolsonaro como uma ameaça fascista latente. Segundo ela, a reação da plateia brasileira — outros cientistas sociais que participavam do encontro — foi rir “Diziam que ele não entrava nos números do Datafolha e que era um ‘fenômeno de internet’”, conta ela.

Apenas dois anos depois, Bolsonaro foi eleito presidente do país com 57 milhões de votos, uma diferença de aproximadamente 10 milhões de votos para o segundo colocado, o ex-prefeito de São Paulo Fernando Haddad, do PT.

Para Rosana, agora que o “fenômeno da internet” se materializou, mais do que enfrentar a possível eleição de Jair Bolsonaro, o desafio passa também por reagir a um fenômeno semelhante ao fascismo, que ela chama de “bolsonarismo” — um pensamento conservador e autoritário que preserva algumas características típicas da história política do Brasil.

Desde 2009, ela e a socióloga gaúcha Lucia Scalco, da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) pesquisam a relação entre política e periferia com campo no subúrbio de Porto Alegre. Há dois anos, prevendo o fenômeno do “bolsonarismo”, elas direcionaram os estudos para a compreensão das pessoas sobre o ex-capitão do Exército como a solução para os problemas do Brasil.

Em uma conversa com a Calle2, ela tenta esboçar uma explicação para o contexto atual, critica a atuação das esquerdas após o impeachment de Dilma Rousseff (PT) e analisa qual país foi às urnas.

Daqui algumas décadas, quando você precisar explicar o fenômeno Bolsonaro, quais fatores deverão obrigatoriamente ser usados?

Eu não conseguiria explicar esse momento sem lembrar que a democracia tem uma história muito curta no Brasil, que temos uma cultura democrática muito pobre e que sempre convivemos com influências autoritárias e conservadoras. Talvez até voltaria para o movimento integralista brasileiro para mostrar como esses movimentos não são novidade e que sempre tiveram forte apelo. No entanto, diria que o principal marco foi junho de 2013, não como o culpado, porque acho esse argumento injusto e covarde, mas como um marco de ruptura do sistema político. Contaria que a partir dali houve uma grande instabilidade do sistema que abriu uma janela de oportunidades para a direita se mobilizar por um viés muito nacionalista e, desde o impeachment/golpe, uma possibilidade da extrema-direita, por sua vez, se reorganizar. Ela canibalizou a direita desde o impeachment, depois, a partir do fracasso do governo Temer, e criou uma oportunidade política para que a percepção popular visse que o sistema político é todo igual.

Também falaria que nesse processo de crise política há a pior crise econômica da história do Brasil, que foi completamente ignorada na narrativa da esquerda enquanto ela estava no poder, que a direita mainstream fez um governo com a maior rejeição da história, e que as duas abriram um flanco imenso para extrema-direita anti-establishment se organizar.

Por fim, acharia também importante voltar para os fenômenos globais, porque o que está acontecendo agora não é um fenômeno isolado, mas é uma extrema-direita que observou o que está acontecendo com o [presidente estadunidense] Donald Trump, no Brexit, que sabe que a [candidata de extrema-direita francesa Marine] Le Pen quase ganhou na França e que viu que há um modismo do anti-establishment. Houve uma repercussão em relação a todos os movimentos que, ao redor do mundo, vieram do anti-establishment de esquerda com todas as ocupações globais. Uma resposta da direita organizada, muito mais poderosa, se apropriando dessa semente de anti-corrupção, começando a aprender a se organizar, a fazer política, movimento social.

Há diferenças entre o fenômeno do bolsonarismo e a figura de Jair Bolsonaro?

Tenho certeza que sim. O fenômeno do bolsonarismo é a adesão vazia à figura dele, que corresponde a muitas frustrações diferentes. Tenho pensado em vários tipos de eleitores do Bolsonaro, enquanto o bolsonarismo é um movimento que capta todos esses perfis. O Bolsonaro é fascista, violento, misógino, homofóbico e tosco, uma figura medíocre, enquanto o bolsonarismo é um fenômeno muito maior do que ele, no sentido de que a figura dele entrou em vários vácuos da sociedade brasileira e, como todo autoritarismo, conseguiu preencher vários buracos e frustrações. Ao mesmo tempo que há aquele eleitor muito alinhado e que segue ele há muito tempo, eu acredito — ou mais do que isso, preciso acreditar — que existe uma grande parte do eleitorado que está simplesmente revoltada e que ainda não fez uma transição total para uma subjetividade autoritária e fascista. Ela é, em sua maioria, formada por aquele homem branco que sempre sustentou a família e que agora está se sentindo frustrado, que acha que o problema é dar tudo para as minorias, mas ainda assim é um sujeito negociável. É com ele que a gente tem que trabalhar. A outra opção é dizer que 50% dos eleitores são fascistas, o que não é a nossa realidade. Há uma grande parte do eleitorado já assumindo esse perfil violento, mas há outra que a gente precisa intervir urgentemente, porque ela está se alinhando conforme a polarização aumenta.

O fenômeno do bolsonarismo demorou para ser percebido?

Sem dúvida. O bolsonarismo como autoritarismo está aí desde depois de junho de 2013. Ele começou a dar seus sinais com coisas horríveis umas atrás das outras, tanto que eu escrevi a minha primeira coluna sobre o assunto em 2014 chamada O Reich Tropical [na revista Carta Capital]. Acho que a esquerda ficou focada na narrativa obsessiva do golpe e em trabalhar contra o governo Temer. Ok, não estou julgando, porque não sei o que era possível fazer, mas enquanto isso a percepção popular de corrupção foi aumentando. O PT e a esquerda foram na contramão de tudo isso, se colocando nessa posição de vítima — que é justa, porque foi vítima. Esse ódio contra a corrupção, que é uma coisa meio vaga, foi pegando corações e mentes, e o Bolsonaro foi crescendo. A gente começou a levar ele a sério quando ele fez 17% de intenções de voto.

No contexto atual, Bolsonaro pode ser considerado um líder de massas?

Já é há muito tempo e só a gente não via. A gente achava que era meia dúzia de loucos que estava enchendo aeroportos. Já é um líder que tomou uma facada, que lota qualquer lugar que vai e que já tem manifestações específicas ao seu favor. As pessoas já veem ele como um coitadinho, como um pai de família que só quer o bem.

Acho que isso é bem recente, em seguida da escalada pós-Lula em que ele assumiu o primeiro lugar nas intenções de voto. Ali as pessoas já foram às ruas defender a sua candidatura. Além disso, a figura dele já representa um carisma especial, as pessoas acham que ele é um cara querido, engraçado, tosco, aquela coisa do brasileiro tosco, enfim, a maneira como se identificam com ele acho que é de um líder de massas.

Mas eu não diria isso um mês atrás. Hoje a gente já pode falar — e que também só vai crescer. Ou não, né? O governo dele pode ser um desastre.

É possível pensar, a partir de alguns traços do Bolsonaro, como a facilidade de comunicação, que ele substituiu o Lula nesse papel?

Ele substituiu no outro espectro, mas sem dúvida substituiu. Não é à toa que a gente vê tanta migração de votos na periferia do Lula para o Bolsonaro ou aquele eleitor que votaria em um ou no outro. É aquele eleitor paupérrimo e que vê nos dois, primeiro, um salvador e, depois, um grande pai. O Bolsonaro substitui o Lula como o grande líder em um outro espectro ideológico. Acho que o Lula tinha algo da simplicidade, de pegar o trabalhador comum, de falar coisas muito simples e carismáticas. O Bolsonaro vai via conservadorismo, também explicando coisas muito simples, mas acho que a questão dele é o discurso, da família e do “cidadão de bem”. Eu concordo que ele explica alguns temas específicos, mas acho que a comunicação dele é mais no sentido de pegar a família comum chamada média, baixa. Daí vem o populismo de falar da segurança pública de forma muito simples, com soluções radicais, inclusive.

O PT tem culpa no fenômeno do bolsonarismo atual?

Não colocaria a palavra “culpa”, mas tem responsabilidade. Junho de 2013 começou como um movimento de esquerda e até cerca do dia 20 de junho era como um grande movimento do Brasil. Depois começou a degringolar. Ali o governo Dilma entendeu que havia um movimento golpista e ingrato, porque o Brasil estava bem. Ou seja, o PT não conseguiu entender que ali havia demandas por bens públicos. A partir dali o Brasil entrou numa crise econômica enorme e o PT começou a dizer: “Nunca criamos tanta universidade, nunca o pobre foi para a universidade…”. Só repetindo as conquistas petistas — que são fundamentais, nem vou entrar no mérito, porque é um consenso — e negando que havia uma crise. Eu me lembro do discurso petista de: “Olha a crise, aí botava [uma imagem] das filas dos aeroportos, das filas nos Outbacks”. Tava debochando daquilo. E tem responsabilidade de, depois de sofrer o golpe, também ficar focado em sua própria militância. No contexto atual, o processo todo da prisão do Lula tem me parecido desmedido, preciso dizer isso, mas ao mesmo tempo também acho que essa maneira repetida como toda campanha foi feita, com o “L” de “Lula livre”, para o povo que já foi totalmente convencido pela corrupção, que acha isso uma “pouca vergonha”, nas palavras populares, foi outro equívoco. A percepção é que as pessoas estão defendendo um bandido, onde se começa a criar uma grande narrativa. Agora o PT está botando verde e amarelo [nos slogans da campanha de Fernando Haddad], está falando em emprego e não fala do Lula, né? É como se dissesse: “Estamos desesperados e botamos o verde e amarelo”. As pessoas não são trouxas.

Essa violência nas relações sociais sempre existiu e estava suprimida nos últimos anos ou, ao contrário, o Brasil se tornou um país mais violento durante a crise?

Exatamente as duas coisas. O Brasil sempre foi um país extremamente violento, com o maior número de mortes de LGBTs do mundo, uma taxa altíssima de feminicídio e os genocídios negro e indígena. Partindo da antropologia do eu, como o nosso self é multi constituído, em momentos de abundância e de felicidade geral a gente consegue diminuir nossos impulsos mais violentos, porque o bem-estar da população faz com que as pessoas consigam culpar menos os outros. Diante de uma crise, no entanto, surge a diferença entre ser uma sociedade violenta e ser uma sociedade fascista. O que o fascismo faz é autorizar as pessoas a botar para fora um ódio que estava reprimido. A questão de viver em uma sociedade democrática não é se o sujeito é violento ou não, mas o quanto ele vai reprimir a violência e ter vergonha social dela, ou o quanto a sociedade vai impor um constrangimento a ele. Isso é democracia: você tem um self violento que é reprimido, então você sabe que é errado. Existe uma parte sua que se mantém alinhada com as normas sociais. Há uma era de caos agora em que se começa a culpar o outro à medida que existe uma figura que encarna esse sentimento e diz que pode culpar sim. Bem, a gente está em uma sociedade em que as pessoas estão autorizadas a dizer o que antigamente não eram. Uma vez autorizado e organizado, gera mais violência, porque incentiva.

Há uma discussão sobre o uso da palavra “fascista” para descrever a figura de Bolsonaro. Como você vê o uso do termo?
Eu não sou uma teórica do fascismo para poder dizer como ele é conceituado. Tenho usado o termo “bolsonarismo” pelo que ele representa: esse autoritarismo conservador, violento, organizado e em torno de características brasileiras, especialmente o conservadorismo religioso. O problema dessa discussão é que sim, acho que é um movimento autoritário que dá a força que o termo exige. Estamos agora num momento em que as pessoas estão matando umas às outras. Mas também acho, por outro lado, que há uma discussão muito vulgar na política, de dizer o tempo todo: “Você é fascista “. Estão chamando as pessoas de fascistas há muito tempo. Vejo uma grande movimentação de políticos e uns poucos intelectuais que há alguns anos chamavam tudo de “fascista”, e que agora, no momento que a gente vê uma característica muito parecida com o fascismo no sentido mais literal, há um esvaziamento do conceito. Ele está sendo usado há três anos para qualquer pessoa de direita, para as marchas verde e amarelas, que não eram fascistas, ainda que tivesse pedidos de intervenção militar. Falou-se de fascismo na greve dos caminhoneiros, um movimento super popular…

Você já defendeu que o voto em Bolsonaro também tende a ser uma reação masculina às pautas identitárias. Por que eles reagiram desta forma?

A reação sempre existe. Ela é um processo natural do movimento social: se há o movimento, há o contra-movimento. Em um país patriarcal como o Brasil, quando você vê adolescentes homens diante de mulheres falando eloquentemente sobre feminismo, que é uma coisa completamente inédita, eles reagem. É um grande inconsciente coletivo reagindo contra as mulheres. Somo uma sociedade patriarcal em que mulheres, LGBTs, negros, pedindo voz têm um sentido de ameaça. Isso a gente vê claramente na pesquisa: os homens literalmente enfraquecidos diante desses novos grupos que surgiram. As pessoas que estão na posição de poder, quando vêem qualquer movimentação, acham que essa força é para substituir, não por igualdade. A gente viu no Brasil, desde 2013, uma correlação de forças de movimentos que sempre existiram, mas tomando uma dimensão que nunca tiveram. A extrema-direita começou a se organizar dizendo: “Tudo foi para os identitários, eles querem dominar o mundo, e nada sobra para você”. Para esse cara branco, chefe de família, que sofreu a crise econômica faz todo o sentido. Ele vai começar a pensar: “Porra, foi tudo para os paupérrimos, que recebem benefícios, tudo para os negros, tudo para as mulheres, tudo para os LGBTs, que agora querem ter até Jesus Cristo, e nada para mim”.

O que explica o crescimento do eleitorado feminino em Bolsonaro em termos quantitativos, levando em conta que ele cresceu 6 pontos percentuais na pesquisa do Datafolha seguinte ao ato #Elenão em várias capitais do país?

Pode até ter algo a ver com o #Elenão, como a tomada de posição das mulheres que foram às ruas, mas isso não influenciou o aumento nas pesquisas. As mulheres são historicamente as mais indecisas. Elas sempre tomam uma posição na última semana. Só que as mulheres periféricas já tinham tomado uma posição contra o Bolsonaro. O aumento dele foi entre mulheres de elite, que é um setor bolsonarista, isto é, de classe média e classe média alta. As mulheres reagiram ao #Elenão, claro, mas principalmente foi a tomada de decisão com fatores como, por exemplo, o Edir Macedo declarando seu voto naquela semana ao Bolsonaro, o imenso trabalho capilar nas igrejas, além do aumento do Haddad [nas pesquisas], porque as indecisas, que historicamente são as mulheres que não se interessam por política, elas se polarizam, se organizaram em torno do voto útil para o Bolsonaro. Então, é uma reação anti-petista e também uma reação ao #Elenão das mulheres que não se veem como feministas e repudiam o feminismo.

‎*atualizada em 29/10/2018

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