Os bolivianos ainda querem Evo Morales como presidente?
Análise

Os bolivianos ainda querem Evo Morales como presidente?

Um ano após o escândalo envolvendo um suposto filho e a derrota num referendo popular, o presidente enfrenta duras críticas ao buscar sua terceira reeleição na Bolívia

em 07/06/2017 • 11h00
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Da noite de 24 de fevereiro até a manhã de 15 de dezembro de 2016, passaram-se exatos 294 dias. Neste período, o presidente da Bolívia, Evo Morales, conseguiu fazer seu país acreditar que sua ex-namorada, Gabriela Zapata, não havia dado a luz a um filho seu e acompanhar um complexo processo judicial que prendeu os familiares dela, empreiteiros, políticos e celebridades. Não bastasse isso, os bolivianos ainda viram o chefe da nação entrar em confronto direto com quase todos os veículos da imprensa nacional, ensaiar duas crises diplomáticas com o Chile, perder um ministro de Estado assassinado por mineiros rebelados no altiplano, visitar o Papa Francisco no Vaticano e descobrir um tumor benigno nas cordas vocais.

Foi também um estranho período em que Evo se afastou e se aproximou ainda mais da presidência da Bolívia. Derrotado no referendo popular do início do passado, que perguntava aos bolivianos se ele poderia concorrer nas eleições de 2019, o presidente foi anunciado em dezembro como pré-candidato do seu partido, o Movimento al Socialismo (MAS). “Não há outro líder como ele”, afirmou no mês passado seu vice-presidente Alvaro García Liñera.

“Para o MAS, não há nada além de Evo. Tudo gira em torno dele”, afirma o coordenador do Departamento de Ciência Política da Universidade Católica Boliviana, Marcelo Azurduy.

“Só vai surgir um novo líder dentro do MAS com condições de ser presidente no dia que Evo Morales permitir. E ele não parece estar disposto a isso neste momento”, concorda a editora-chefe do principal jornal boliviano, o Pagina Siete, Isabel Mercado.

Eleito presidente da Bolívia pela primeira vez em 2006, Evo Morales foi o político mais votado no país após o fim da ditadura  militar (1964-1982). Ele chamou a atenção da imprensa mundial por ser o primeiro com ascendência indígena a chegar ao poder no país onde 62% da população se declarava pertencer à etnia.

Dois anos depois, Morales aprovou uma ampla reforma constitucional, instituindo o Estado Plurinacional que, como discurso, significou uma “refundação” da Bolívia. Em 2009, superou sua marca anterior e foi reeleito com 64,22% dos votos, derrotando o militar Manfred Reyes Villa, representante de uma coalizão de cinco partidos de oposição. Assumiu em 2010 como um dos presidentes mais populares do mundo, ofuscado apenas por Lula, então líder brasileiro.

A partir daquele ano, Evo trabalhou em paralelo ao governo para mudar as leis e concorrer outra vez nas eleições de 2014, algo que, em tese, seria inconstitucional.

A manobra não demoraria a ter sucesso: em abril de 2013, o Tribunal Constitucional decidiu que, por ele ter restaurado a Constituição durante seu primeiro mandato (2006-2011), este não poderia ser incluído na contagem de eleições seguintes. Assim, a corte entendeu que o primeiro mandato era o que havia iniciado em 2010, dando-lhe a permissão para concorrer em 2014. Em dezembro daquele ano, Morales foi eleito com 59,5% dos votos para o seu terceiro mandato, até 2020 ˗ o segundo reconhecido institucionalmente.

Em setembro de 2015, um ano após sua “reeleição” e faltando três para o pleito presidencial seguinte, marcado para 2019, o Congresso boliviano reformou parcialmente a Constituição do país para permitir um novo mandato do chefe do Executivo. Evo buscava nos bastidores a permissão constitucional para disputar a sua quarta eleição, a terceira reconhecida pelas novas leis bolivianas. Para revestir a ideia de legitimidade, conseguiu a convocação de um plebiscito para fevereiro do ano seguinte, que ficaria conhecido durante a campanha pela sigla 21F (21 de febrero).

Com a aprovação dos congressistas e a popularidade em alta (76%), a imprensa e o setor político bolivianos davam o referendo como ganho: “É pão comido”, disse o próprio Evo em outubro daquele ano.

No dia 24 de fevereiro de 2016, três dias após a consulta levar cerca de 5,4 milhões de bolivianos às urnas, o presidente convocou os jornalistas ao Palácio Quemado, sede do Executivo, em La Paz, para reconhecer sua derrota.

Com uma diferença de exatos 138.486 votos, o sufrágio terminou com a vitória do “não” ao projeto de reeleição de Evo (51,3% contra 48,7%). Em meio à cobertura extensiva da mídia internacional, pouca gente se atentou para o conteúdo do seu discurso. “Perdemos a batalha, mas não a guerra”, vociferou. À época, Calle2 contou que o resultado era supostamente uma consequência do seu envolvimento no escândalo com uma empresária de Santa Cruz de la Sierra, com quem foi acusado de ter e esconder um filho.

Até setembro do ano passado, Evo parecia convencido de que seu período no poder havia acabado, apesar de deixar transparecer a existência de um conflito interno. Durante uma reunião na cidade de Cobija, ao norte do país, disse espontaneamente que estava se preparando para sair do cargo em 2020. No dia 15 de dezembro, porém, surgiu o indício claro de sua mudança de ideia: oito mil delegados e filiados ao MAS se reuniram na cidade de Montero, no departamento de Santa Cruz, para discutir o futuro do partido e, em paralelo, as alternativas para manter Evo Morales no poder.

“Temos uma enorme responsabilidade de continuar fortalecendo e aprofundando nossa revolução democrática e cultural. Neste processo, precisamos unir e entender os protestos e as propostas para, então, ganharmos as eleições”, vociferou sob aplausos e novos gritos. Se havia alguma dúvida sobre as pretensões do MAS e do seu líder, ela foi sanada ao fim do congresso, quando o partido tornou pública uma lista com quatro caminhos para permitir a candidatura de Evo em 2019.

A primeira alternativa é a convocação de um novo referendo, organizado nos mesmos moldes do 21F. A imprensa boliviana sugere que esse é o caminho preferido do próprio presidente, que desde então afirma que o resultado do plebiscito foi um “engano”.

A segunda possibilidade é a coleta de assinaturas de 20% (cerca de 1 milhão de cidadãos) do eleitorado para ativar uma reforma no artigo 168 da constituição, que hoje permite apenas uma única reeleição seguida.

A terceira seria um processo apenas institucional de mudança do artigo por meio dos votos de dois terços dos parlamentares. A quarta, e aparentemente mais inviável, seria a renúncia do presidente seis meses antes das eleições, no início de 2019. Seu vice, García Liñera, assumiria o cargo e permitiria que Evo se candidatasse, já que não seria uma reeleição “contínua”.

“O resultado do referendo é indiscutível”, afirmou o ex-vice-presidente Victor Hugo Cárdenas à rede estadunidense CNN em fevereiro. “Essas vias de eleição se apoiam na tradição das épocas ditatoriais. Quando não havia democracia na Bolívia, ditadores civis e militares pisoteavam a Constituição. É uma pena que essa tradição queira continuar”, seguiu.

“A derrota foi um golpe muito forte para ele, mais do que para o MAS. Como o partido não encontra uma alternativa a Evo, acaba entendendo que precisa mantê-lo no poder. O que está acontecendo é que a sua postulação para 2019 está gerando uma desconfiança das pessoas, principalmente nas zonas urbanas”, explica o professor Marcelo Azurduy.

A mesma percepção é encontrada na análise de Isabel Mercado, do “Pagina Siete”. “Há um certo entrave nesse debate, porque as pessoas gostam do Evo, entendem que ele trouxe vários êxitos para a Bolívia e que somos outro país depois dele, mas também não querem que ele fique no poder passando por cima das leis”, diz ela.

No começo de abril, o projeto sofreu seu mais duro golpe. Os ex-presidentes Carlos Mesa e Jorge Quiroga, o próprio Cárdenas, além de líderes de movimentos sociais e partidários apresentaram um manifesto com cinco pontos que rodeavam a “defesa da democracia boliviana”. A oposição ao governo batizou a reunião de 12A (12 de abril), em analogia ao 21F.

Os cinco membros do grupo acusaram o Tribunal Eleitoral da Bolívia de agir em favor do MAS e os dispositivos da Justiça de atuarem sem independência estatal. Afirmaram ainda que o resultado do referendo deveria ser respeitado e que qualquer plano de candidatar Evo novamente será inconstitucional. “Se isso acontecer, será como dar de costas para a soberania do povo boliviano”, diz um trecho do texto.

Mesa, que governou o país entre 2003 e 2005, também tem simpatia entre as classes populares. Em novembro de 2016, uma pesquisa de intenções de voto feita pelo “Página Siete” mostrou que ele venceria Evo num possível segundo turno presidencial, apesar de ter menos votos na primeira fase (37% a 13%).

As próximas eleições presidenciais na Bolívia estão marcadas para daqui 29 meses. Os partidos políticos precisam apresentar seus candidatos e projetos políticos com pelo menos 150 dias de antecedência, mas as campanhas eleitorais costumam ter início meses antes. Para 2019, por exemplo, ela já começou.

“Há um medo de que a economia piore e, assim, o apoio ao presidente também caia. Resolver isso agora, em uma sensação positiva dele, é melhor”, aponta Azurduy. “Ninguém sabe o que acontecerá com a Bolívia nos próximos anos”, finaliza Mercado.

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