Todos parecem rir com o presidente
Sociedade

Todos parecem rir com Evo Morales

Após dezenas de pessoas presas, um suicídio e revelações contraditórias, Evo Morales parece ter vencido o conflito amoroso com Gabriela Zapata

em 10/08/2016 • 12h10
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“A vida é uma só e pode ser platinadíssima”, anunciava em maio a cabeleireira Marisa Viera, dona de um salão de beleza voltado à classe média alta de Santa Cruz de la Sierra (850 km de La Paz) em um de seus posts mais populares no Facebook. Acompanhava o texto uma montagem com fotografias de meninas com mechas longas e lisas pintadas de prata que pareciam querer dar uma felicidade natural às mulheres que decidem mudar a cor do cabelo. Ainda que não estivesse manifesto, o objetivo de Viera parecia claro aos olhos mais observadores: encontrar, entre as meninas ricas da cidade, uma que fosse a sua própria Gabriela Zapata Montaño (foto acima).

“De quatro a cinco mulheres me pedem o cabelo igual ao dela diariamente”, conta. Segundo o jornal El Deber, de Santa Cruz, pintar o cabelo de prata na cidade é uma tendência.

Responsável pelo lucro de Marisa Viera e pela moda de inverno em uma das capitais mais importantes da Bolívia, Gabriela Zapata é hoje uma das detentas da penitenciária de Miraflores, em La Paz, onde está desde fevereiro deste ano, acusada inicialmente de tráfico de influências (Gabriela era diretora de uma empresa chinesa que tinha contratos milionários com o governo boliviano) e, nos últimos meses, de mentir em um processo judicial.

Apesar de ter se acostumado a aparecer nas colunas sociais de Santa Cruz com vestidos caros e rodeada de políticos e artistas, Zapata ganhou fama de proporção internacional em fevereiro, quando revelou que havia tido um filho com o presidente Evo Morales, inaugurando o maior escândalo político no governo boliviano desde a posse do mandatário, em 2006.

Imersa entre fotos sensuais e milhares de dedos apontando-lhe os erros, Gabriela Zapata conseguiu devolver à prata (metal que séculos atrás foi a riqueza e a miséria da Bolívia no processo de conquista espanhola) toda a sua ambiguidade histórica, assim como representa a glória e a queda do presidente da Bolívia.

A “novela latino-americana”, como foi chamada na imprensa estrangeira, ou “Game of Thrones boliviano”, assim batizado pelo ex-presidente do país, Jorge Quiroga, começou a ser contada pela Calle2 no final de abril.

À época, Evo e Gabriela viviam em um conflito pessoal escancarado ao público sobre a existência ou não de um suposto filho do casal. Ele dizia que o menino – batizado de Ernesto Fidel Morales – havia morrido dez meses depois de nascer, em 2007. Ela, por sua vez, afirmava que o garoto estava vivo, morava com a tia em La Paz e estava sentimentalmente abalado pela negação paternal.

Membros da Defensoria da Adolescência de La Paz tinham entrevistado uma criança apontada como o filho de Evo e Zapata e a rede estadunidense CNN afirmava ter conseguido uma entrevista com o suposto menino. Ainda assim, persistiam dúvidas sobre se era, de fato, Ernesto Fidel.

Dias depois da publicação da reportagem, Evo – em uma operação midiática que cercou as ruas centrais de La Paz – resolveu cumprir uma decisão judicial e coletar suas amostras sanguíneas para colaborar nas investigações. Zapata, que deveria comparecer ao local no mesmo horário que o presidente, só chegou meia hora depois, evitando o indesejado encontro.

No começo de maio, quando a situação parecia novamente controlada, o país caiu em sucessivos escândalos, reviravoltas e trocas de máscaras entre os personagens da história. Os veículos de imprensa cindiram-se entre oposicionistas e governistas e, em um período de 50 dias, dezenas de acusações foram tomadas como verdades e desmentidas ou confirmadas em seguida. Outra dezena de pessoas foi detida, três se exilaram em países vizinhos e uma se matou em uma mansão na metrópole do país.

A Bolívia se jogou de corpo inteiro em uma crise política impulsionada pela imagem arranhada do seu presidente – outrora celebridade internacional – e por uma caçada judicial semelhante à Operação Lava Jato brasileira, mas com motivações pessoais e impulsionadas por uma paixão que parece ter sido arrebatadora enquanto existiu: amigos, familiares e advogados de Gabriela foram presos ou detidos em poucos dias. Do governo, ninguém foi chamado sequer para depor.

O primeiro preso foi o popular cantor e apresentador Alejandro Delius, detido quando saía da emissora onde trabalha em Santa Cruz. Acusado de complô com Zapata por ter seu nome ligado a transações econômicas com ela, Delius foi liberado depois de dizer que o dinheiro que recebera – cerca de US$ 9 mil – foi um pagamento a um serviço de “limpeza espiritual”. Ela diria dias depois que, ainda que ninguém soubesse, Delius sempre foi um “bruxo”.

No centro dos escândalos, Gabriela colaborou para aumentá-lo: no dia 17 de maio disse que havia engravidado duas vezes do presidente, abortando o primeiro filho, em 2005, e que havia se relacionado com ele até 2010. Evo diz desde o começo da história que esteve apaixonado por ela até 2007, quando os dois terminaram. Depois disso, segundo ele, os dois nunca mais se viram.

Quatro dias depois, a Justiça determinou a detenção de alguns empresários do setor da construção civil de Santa Cruz de la Sierra, de uma ex-secretária de governo e da tia dela, Pílar Guzmán, responsável por anunciar ao país que o suposto filho de Evo com sua sobrinha estava vivo.

Porém, a prisão que gerou apreensão até das Nações Unidas foi a do advogado de Gabriela, Eduardo León, personagem central da história desde o início, quando aparecia na televisão acusando Evo Morales de mentir sobre o caso e ratificando que Ernesto Fidel Morales vivia em algum lugar da Bolívia.

No mesmo dia 17, quando saía de sua casa em La Paz, agentes da polícia algemaram-no e o levaram à promotoria da cidade, onde foi acusado de mentir sobre o garoto. Segundo a juíza Mariana Montero – figura controversa da história em seu âmbito judicial, assim como o brasileiro Sérgio Moro – faltavam provas sobre Ernesto Fidel. Detido provisoriamente no cárcere San Pedro, em La Paz, o advogado foi julgado no primeiro dia de junho e declarado culpado por quatro crimes: falsidade material, falsidade ideológica, uso de instrumentos falsificados e conduta antieconômica.

Dois dias depois da audiência, León foi internado com quadro de insuficiência renal. Sua defesa pediu prisão domiciliar à juíza Montero, que negou. Então, o Alto Comissariado de Direitos Humanos da ONU expressou “preocupação” com a maneira como o caso estava sendo conduzido, enquanto fotos dele em estado crítico de saúde estavam sendo divulgadas pela família à imprensa.

Durante esse período, Evo evitou dar declarações à imprensa e se refugiou em visitas a países amigos, como Cuba e Venezuela. Ao jornal El Deber, no dia 5 de junho, León colocou o país novamente abaixo ao dizer que tinha dúvidas sobre a existência do filho de Evo e Zapata e que a sua ex-cliente mentiu durante 80% do tempo em que trabalharam juntos.

“Eu nunca vi o garoto. Ela nunca me mostrou uma foto, nunca me apresentou pessoalmente a ele. Ainda assim ela me fez apresentar um menor [à sociedade], seus documentos e fotografias. Para mim, diante dessa situação, ela precisará esclarecer tudo”, afirmou.

Com medo, os outros dois advogados de Gabriela fugiram para o Peru. Na Argentina, outro exilado, o jornalista Carlos Valverde (o homem que divulgou a paixão do casal e a suposta existência do filho), tuitou que havia se equivocado e que agora dispunha de provas para dizer com autoridade que, na verdade, Ernesto Fidel Morales nunca existiu.

A imprensa internacional novamente se debruçou desconfiada sobre o caso. Evo, porém, saiu vitorioso: com dois personagens importantes na trama admitindo que o filho era uma criação literária, viu cair sobre si novamente a força de uma imensa parcela da população que se mutilava por ter que desconfiar do seu líder. Ainda no final de maio, o mesmo El Deber publicou artigo em que dizia que o presidente estava novamente no controle do país, como fora desde seu primeiro dia no Palácio Quemado.

Ernesto Fidel Morales – ou a ideia de um ser humano inventado – foi eliminado da realidade e posto na fantasia, de fato, no dia 10 de junho, quando Zapata enfim admitiu que o menino estava morto e que a estratégia de dizer que ele ainda vivia fora do advogado Eduardo León.

Após cinco meses em que todas as conversas de bares, jantares familiares, diálogos de elevador, artigos jornalísticos, publicidades clandestinas e documentos institucionais rodearam a existência ou não de um filho de Evo e Zapata, tudo foi sepultado em minutos.

“Ela é uma psicopata”, respondeu León quando soube da afirmação de sua ex-cliente.

À Justiça, Gabriela ainda disse que pagou US$ 5 mil para uma família de La Paz “emprestar” seu filho aos advogados, que o usariam para apresentá-lo à imprensa internacional e aos órgãos judiciais bolivianos. Cinco pessoas foram presas pelo envolvimento na suposta negociação, entre os pais do garoto “alugado” e intermediários. Uma delas, Ana Maria Fortún, disparou um tiro na cabeça com um revólver israelense nove milímetros no quarto de casa dias depois de saber que estava sendo investigada.

Suplantada a história, Evo cresceu: voltou a aparecer semanalmente na imprensa, disse que o caso Zapata havia sido inventado nos Estados Unidos e que acreditava “sobrar liberdade” aos veículos de comunicação na Bolívia.

O discurso foi tomado pela burocracia estatal, de forma que o debate político atual no país circula sobre uma maneira de regulá-los. Evo acusa a mídia de ser “direitista” e “imperialista” e ganhou o reforço da mídia estatal venezuelana, principal parceiro ideológico do governo boliviano.

El Deber, maior jornal de oposição, respondeu as acusações em um artigo amplamente divulgado em que afirma que a história de Evo, Zapata e Ernesto Fidel foi, antes de tudo, uma maneira inteligente de esconder a corrupção institucionalizada no Estado.

Em julho, com Zapata, Léon, Guzmán, empresários e outras dezenas de pessoas ligadas à ex-namorada presas em La Paz, com o gabinete presidencial intacto, com 61,3% de aprovação popular – taxa que permite a pessoas comuns construírem, por iniciativa própria bustos públicos com as imagens dos pais do presidente –, e como vencedor moral do conflito, Evo se permitiu ser enfim, o homem indiferente às formalidades que sempre foi.

Durante a inauguração de uma nova linha de teleféricos em El Alto, próximo à capital, se deparou com um campo de futebol batizado de “Zapata”. Confrontado momentaneamente com o nome polêmico no documento que lia em rede nacional, deu um dos seus sorrisos sinceros, mexeu a cabeça com ansiedade e disparou: “Soa mal esse nome. Vou pedir ao prefeito [Luís] Revilla [de La Paz] para mudá-lo”. Ao seu redor, todos pareciam rir novamente com o presidente.

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