De qualquer ponto de La Paz, capital política da Bolívia, agora será possível notar um prédio diferente de todos os outros pequenos edifícios históricos do centro paceño: espelhada em seus 29 andares, a Casa Grande del Pueblo, inaugurada pelo presidente Evo Morales em agosto como novo palácio do governo, é mais um capítulo de uma história que começou há três anos, quando ele decidiu se candidatar pela quinta vez ao cargo nas eleições que vão acontecer em 2019.
Para Morales e seu partido, o MAS (Movimiento al Socialismo), o edifício representa a nova Bolívia, agora não mais presa ao seu passado colonial. Para os seus opositores, como o ex-presidente Carlos Mesa, o preço da construção (US$ 42 milhões) foi um projeto caro erguido para glorificar o líder à frente do país desde 2006.
De acordo com o jornal boliviano Pagina Siete, a suíte presidencial ocupa todo o 24º andar da Casa del Pueblo, tem 1.068 metros quadrados e inclui, entre os quartos paralelos, uma sauna, jacuzzi e uma sala de massagens. Ali, estão também o dormitório presidencial, um grande banheiro de 47 metros quadrados e dois acessos diretos para os elevadores.
Ainda segundo o periódico, a suíte ainda tem uma sala de estar, uma de leitura, uma área de atividades físicas, quartos para os funcionários mais próximos do mandatário com banheiros e equipados com ventilador de teto, um escritório e uma cozinha.
O vice-ministro de Coordenação com os Movimentos Sociais, Arturo Alessandri, negou os dados do jornal: ele disse que viu as dependências da suíte presidencial e que ela é pequena. “É verdade que é espaçosa, porque o 24º andar é dedicado ao despacho do presidente. Daqui algum tempo, a imprensa poderá ver como isso tudo é uma infâmia”, reclamou, se referindo às afirmações do Pagina Siete.
A ministra de Comunicações da Bolívia, Gisela López, não confirmou os valores gastos na construção, mas disse que o prédio foi feito “para o povo”. “Nós estamos deixando para atrás o palácio de um Estado colonial para começar aqui a casa do povo do Estado Plurinacional da Bolívia”, disse Evo no seu discurso inaugural.
Ele também listou todos os presidentes e líderes independentistas do país que foram mortos perto ou dentro da antiga sede, o Palácio Quemado, na Plaza Murillo, no centro de La Paz, se referindo a ele como símbolo de dor e sangue. “É outro marco histórico graças à luta do povo boliviano”, completou. Segundo o governo, o Quemado agora será um museu sobre a história do país.
Um dos casos lembrados por Evo é o do então presidente Gualberto Villarroel, que foi assassinado em julho de 1946 em um dos corredores do palácio por manifestantes que tomaram as ruas da cidade naquele ano contra o governo. O corpo de Villarroel ainda foi pendurado a um poste na Plaza Murillo e vilipendiado por horas até o fim dos protestos.
A mudança de sede também feriu as leis municipais que proibiam construções de grande escala no centro de La Paz: Evo usou sua maioria parlamentar para aprovar o projeto.
“Eu vejo a Casa Grande del Pueblo como um símbolo de poder. O atual governo tenta se livrar de algumas bandeiras simbólicas que pertenciam de alguma forma ao Estado antes da constituição que foi aprovada em 2009“, comenta o cientista político e professor da Universidade Católica Boliviana, Marcelo Azurduy.
“No plano discursivo não seria ruim, o que é questionável é justamente que a conjuntura vem precedida de denúncias de corrupção da parte do governo e pouca atenção ao problema da cobertura da saúde. Isso torna mais difícil justificar a construção. Na comunicação, não emitiram a mensagem correta porque não se justificou com prontidão a utilidade para o Estado. A sensação é um governo distanciado das preocupações de boa parte da classe média do país (setor populacional muito importante em termos eleitorais, representa quase metade do padrão eleitoral e com característica jovem)”, completa.
O líder da oposição a Evo Morales, Samuel Doria, disse que o novo prédio deveria se tornar um hospital para tratamento de câncer, já que a Bolívia necessita urgentemente de um dispositivo médico desse tipo. Nas redes sociais, houve espaço para a proliferação de preconceitos, como quem disse que o prédio era ruim porque havia sido “projetado por um índio”, se referindo a Evo.
O presidente, porém, refuta as críticas dizendo que a construção vai ajudar o governo a economizar dinheiro, já que, com a Casa Grande del Pueblo, cinco ministérios que funcionavam em edifícios alugados ao redor da cidade vão passar a operar no mesmo prédio — Energia, Comunicações, Meio Ambiente e Água, Culturas e Turismo. O Pagina Siete prontamente publicou uma reportagem mostrando que, dos cinco, três eram proprietários dos seus prédios.
Para o jornalista Esteban Ticona, do diário La Razón, a mudança de sede governamental, de fato, tem o fator simbólico de encerrar um passado colonial. “A região do Palácio Quemado, como muitas outras cidades latino-americanas fundadas por espanhóis, abriga a praça principal ou a praça de maior fluxo, cercada pela igreja, pela sede do governo e pelo parlamento. Para quem reclama do novo edifício, cabe lembrar que as cidades latino-americanas foram fundadas sobre outras cidades, sobre lugares sagrados ancestrais e, com medo das revoltas, os espanhóis fizeram de tudo para cercá-las e evitar a passagem deles”, explica.
“Será que aqueles que se lamentam que o velho palácio não será mais utilizado apoiam as causas coloniais e racistas pelas quais ele está naquele ponto da cidade?”, completa.
A imprensa também reclamou que o novo prédio dificulta o trabalho de cobertura política cotidiano, já que a sala dedicada aos jornalistas fica no 21º andar, distante das autoridades que passam diariamente por ali. No Quemado, os repórteres ficavam no mesmo piso da passagem dos ministros e do próprio presidente, que despachava no andar de cima. No ato da inauguração da nova sede, em agosto, quatro jornalistas mulheres denunciaram terem sofrido assédio sexual da guarda presidencial.
O ministro do gabinete presidencial, Alfredo Rada, por sua vez, afirmou que a imprensa boliviana faz “ativismo” contra o governo e disse que as agressões denunciadas aconteceram por causa do grande volume de pessoas no dia da inauguração do edifício. “Os meios de comunicação precisam informar adequadamente a sociedade e não ser utilizados por interesses políticos que recorrem à distorção perniciosa da realidade”, vociferou.
Ele também disse que os jornais deveriam chamar o prédio pelo nome e não de “palácio”, dando a entender que se trata da nova residência de Evo. “É um espaço que está a serviço do povo e não pertence ao presidente, mas ao Estado”, finalizou.
Derrotado no referendo popular de 2016 que perguntava aos bolivianos se ele poderia concorrer nas eleições de 2019, Evo foi anunciado em dezembro do ano passado como pré-candidato do seu partido, o Movimento al Socialismo (MAS). “Não há outro líder como ele”, afirmou à época seu vice-presidente Alvaro García Liñera.
Em setembro de 2015, um ano após sua segunda reeleição e faltando três para o pleito presidencial seguinte, marcado para 2019, o Congresso boliviano reformou parcialmente a Constituição do país para permitir um novo mandato do chefe do Executivo.
Evo buscava nos bastidores a permissão constitucional para disputar a sua quarta eleição, a terceira reconhecida pelas novas leis bolivianas. Com uma diferença de exatos 138.486 votos, o sufrágio terminou com a vitória do “não” ao projeto de reeleição de Evo (51,3% contra 48,7%).
Desde então, Evo briga publicamente com possíveis candidatos da oposição: um deles é o líder da Unidad Nacional (UN), Samuel Doria Medina, principal partido contrário ao MAS. O outro é o ex-presidente Carlos Mesa, que, apesar disso, já negou diversas vezes que volte a disputar um pleito. “Já dei minha palavra ao partido”, afirmou recentemente ao jornal El Deber.