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Sociedade

‘Todos querem tirar foto com o presidente’

Envolvido em um escândalo de paternidade com Gabriela Zapata e sem chances de se reeleger, Evo Morales parece flutuar na linha tênue entre a realidade e a ficção

em 27/04/2016 • 00h30
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Gabriela Zapata Montaño, 29 anos, jamais havia ido ao Carnaval de Oruro antes de fevereiro do ano passado. Natural de Santa Cruz de la Sierra, Gabriela construiu sua vida profissional e social na mais rica cidade do país, onde a maior parte da população se considera distante dos costumes do altiplano (como mascar folhas de coca) e onde o presidente Evo Morales tem os maiores índices de rejeição.

Em Santa Cruz é difícil encontrar um ser humano que não tenha ouvido falar de Gabriela Zapata: gerente comercial da CAMC Engineering Company, uma gigante chinesa com contratos milionários com o governo, ela estava acostumada a figurar nas colunas sociais da cidade com vestidos caros e em festas luxuosas.

Talvez por isso tenha sido paradoxal o sentimento que a população cruceña teve ao vê-la numa foto, sorridente e abraçada ao presidente Evo Morález, ambos no tradicional Carnaval de Oruro. A foto apareceu em todos os jornais do país no dia 5 de fevereiro deste ano inflamando o escândalo amoroso, político e social que desabou sobre todos os bolivianos.

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A fotografia escancarava uma contradição no discurso de Evo: ele havia dito, um dia antes, que terminara o relacionamento com Gabriela em meados de 2007 – e que nunca mais a havia visto. A imagem dos dois felizes e juntos no Carnaval de Oruro do ano passado era a prova de que o presidente estava mentindo, ainda que – com ares literários – ele manteve sua versão inicial. “Eu vi uma mulher que não me recordava bem e que se aproximou de mim. Vocês sabem que, no Carnaval, todos querem tirar fotos com o presidente”.

O escândalo envolvendo Evo e Gabriela começou na manhã do dia 4 de fevereiro, quando o presidente boliviano se encontraria com jornalistas em uma sala improvisada em Santa Cruz de La Sierra e com visíveis olheiras de quem não dormiu na noite anterior. Apesar disso, mantinha sua calma característica ao pronunciar cada frase. Todos os canais de televisão do país transmitiam o discurso. Não era para menos: horas antes, na noite do dia 3, o jornalista e ex-chefe da inteligência boliviana, Carlos Valverde, havia denunciado em seu programa, o Todo por Hoy, em um canal de Santa Cruz, que Evo havia mantido em sigilo um relacionamento amoroso com Gabriela Zapata, e que os dois tiveram até um filho, em abril de 2007. Por fim, Valverde acusava o presidente de tráfico de influência, já que a mesma empresa em que a mulher trabalhava tinha contratos com o governo da Bolívia.

“Todo mundo tem o direito de se apaixonar por quem quiser, de ter filhos com quem quiser, porque esse é um país livre. Mas o que não é correto é a mãe do filho do presidente seja praticamente a CEO de uma empresa que está ligada a uma infinidade de projetos com o governo boliviano. Isso é absolutamente irregular”, disse o jornalista, ao vivo, enquanto exibia a certidão de nascimento do menino e o caderno social de um jornal de Santa Cruz de la Sierra, onde Gabriela aparecia fotografada em uma festa de gala. “O menino chama Ernesto Fidel Morales Zapata. Obviamente, Ernesto é por causa de Che Guevara…”, supôs, em tom irônico. A Bolívia veio abaixo.

No dia seguinte, Evo chamou a denúncia de “guerra suja e brutal” e acusou Valverde de fazer parte da “oposição sem escrúpulos” por se envolver em um assunto “pessoal e privado”. No entanto, confirmou a história veiculada pelo jornalista e trouxe um novo elemento a ela: o bebê havia falecido dez meses após nascer, em La Paz. Depois disso, o presidente contou que não havia visto Gabriela depois de 2007. “Não tenho porque mentir ao povo boliviano”, disse antes de sair amparado por um dos seus ministros.

Vinte dias depois, Evo Morales saiu derrotado no referendo sobre sua possível candidatura em 2019 por 150 mil votos: 51,3% do país votou no “não”, contra 47,4% no “sim”. Parecia ser o fim de toda a história: o presidente já havia sido atingido pelo escândalo do filho escondido e, consequentemente, tido a sua primeira derrota em dez anos de poder. Restava-lhe apenas governar até o final do mandato, em 2019, e ir “pra casa feliz”, como declarou no ano passado. Não imaginava ele, porém, que estava apenas começando uma crise política com fatos, personagens e ambientes que, como sempre acreditaram os escritores latino-americanos, só poderia acontecer neste lado do mundo.

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Cinco dias depois da votação, o país acordou com os plantões jornalísticos informando que Gabriela Zapata havia sido presa acusada de usurpação de funções e tráfico de influência. Segundo o Ministério Público boliviano, ela se passou por funcionária do Estado para beneficiar a CAMC em contratos com o governo e, paralelamente a isso, usou sua posição na empresa para estabelecer vínculos ilegais entre empresas e autoridades. Dias depois, outra acusação foi colocada sobre ela: a de enriquecimento ilícito. O argumento mais concreto sobre sua prisão foi dado pelo Ministro da Defesa do país, Reymi Ferreira, que afirmou que Gabriela usava a certidão de nascimento de Ernesto Fidel para negociar com empresários e ligá-los à CAMC. Alguns opositores de Evo estranharam a ação, mas foram comedidos nas críticas. Nas entrelinhas, diziam que a detenção era uma vingança pessoal do presidente, que agora usava os instrumentos institucionais para prejudicar sua ex-namorada.

Segundo dados informados pela imprensa local, a empresa chinesa (onde Gabriela Zapata era gerente comercial) tem contratos de extração de lítio, produção de açúcar e na construção de linhas ferroviárias com o governo boliviano que, juntos, somam cerca de US$ 500 milhões. O Estado da Bolívia mantém os documentos em sigilo.

Quatro dias depois, na primeira visita autorizada a Gabriela na penitenciária de Obrajes, localizada em uma zona afastada de La Paz, a única parente a visitá-la foi Pilar Guzmán, uma tia próxima que, após passar a tarde com a sobrinha na cadeia, saiu aos prantos e, perante os repórteres de plantão, colocou a Bolívia novamente abaixo: Ernesto Fidel estava vivo, tinha cerca de nove anos, vivia em La Paz e estava acompanhando entristecido o processo envolvendo a mãe e o pai. “Gabriela está esperando o momento oportuno para mostrá-lo à imprensa internacional”, revelou.

A declaração repercutiu no mundo todo, principalmente depois que a organização feminista boliviana Mujeres Creando afirmou que o presidente encabeçava a lista de “pais irresponsáveis” bolivianos pelo seu tardio reconhecimento de outros dois filhos, Eva Liza e Álvaro. Nas redes sociais, entre denúncias, textos raivosos e memes, havia quem pedia o afastamento de Evo do cargo. Pequenos grupos políticos bolivianos ainda lutam por um processo de deposição, mas em um país com histórico complexo de golpes de Estado, a população parece deixar essa possibilidade momentaneamente de lado.

A oposição na mídia e no Congresso se ouriçou com a informação, valendo-se dela pra iniciar uma campanha contra Morales. Foi a brecha para o aparecimento de fissuras que, com o sucesso econômico e político no contexto sul-americano, haviam sido provisoriamente tapadas pelo governo. Acusaram-no de nepotismo, criaram uma comissão no parlamento para investigar o caso, disseram que Evo estava mentindo sobre o caso, que favoreceu empresas em licitações e, num país religioso como a Bolívia, em que o núcleo familiar ocupa uma posição central, usaram a sua versão da história para atacá-lo: ainda que o bebê tivesse morrido, como poderia ele, como pai, não ter se inteirado do velório e do enterro de seu próprio filho?

Evo, enfim, foi novamente a público no dia seguinte para pedir à família de Gabriela que o levasse até o filho que acreditava estar morto. Acusou Gabriela de agredir psicologicamente o garoto ao negá-lo conhecer o pai e de ir novamente contra as leis do país ao escondê-lo. Naquele momento, porém, já não importavam mais CAMC, contratos, tráfico de influências, nepotismos, relações entre o Estado e empresas privadas, Gabriela ou Evo: em qualquer rincão da Bolívia a pergunta que todos se faziam era se o garoto estava ou não vivo.

O jornal espanhol El Mundo chamou o caso de “telenovela boliviana”. “Um verdadeiro roteiro de livro, de filme, de teatro, de música”, escreveu o escritor peruano Mario Vargas Llosa, prêmio Nobel de Literatura, em uma de suas crônicas recentes no El País. Como que para completar seu próprio personagem, Evo demonstrou sua primeira dose de sentimentalismo com o caso o final do mês passado. “Se ele estiver vivo será uma alegria para mim”, afirmou.

A dúvida ficou menos latente na semana retrasada, quando membros da Defensoria da Adolescência de La Paz disseram ter entrevistado o garoto em sua casa. O advogado Eduardo León, que esteve no encontro, lamentou que o presidente continue negando sua existência. O governo – ministros, promotores, juízes e o próprio presidente – seguem afirmando que Ernesto Fidel morreu em 2007, aos dez meses de vida. Em resumo: não se sabe se o menino está vivo – e se estiver, se é o filho de Evo e Gabriela – ou morto.

Na última terça-feira (26), Morales fez um exame de DNA para comprovar ou não se é pai de Ernesto Fidel. Mas Gabriela e o esperado filho não apareceram para fazer o exame de maneira simultânea, considerado mais confiável. O mistério da existência ou não de Ernesto persiste.

O governo sentiu o golpe dos escândalos no final de março, quando o jornal El Deber, de Santa Cruz de La Sierra, claramente contrário ao presidente, publicou uma pesquisa em que mostrava que a aprovação de Evo no país havia caído de 76% em novembro de 2015 para 55% em março deste ano – ou seja – 21 pontos percentuais de queda. Ainda segundo os dados, 64% da população acreditava que o presidente estava mentindo sobre o seu filho e sua relação com Zapata. Segundo o cientista político boliviano Franz Flores, da Universidade San Francisco Xavier, esse número pode cair ainda mais, motivado pelos baixos índices das presidentas do Brasil, Dilma Rousseff, e do Chile, Michelle Bachelet. “As pessoas estão percebendo que Morales usa o poder como fizeram seus predecessores, isto é, de forma patrimonial. Usa o público como se fosse privado”, explica. “Com os movimentos no Brasil, na Argentina, no Equador e na Venezuela, não é difícil que o mesmo ocorra na Bolívia em algum momento”, finaliza.

Paralela às dúvidas dos bolivianos sobre a existência de Ernesto Fidel, sobre a legitimidade da prisão de Gabriela Zapata, sobre a integridade do presidente, sobre o escândalo de corrupção, nepotismo e favorecimento que as acusações apontam e sobre o futuro do país, Gabriela voltou aos jornais em outra editoria na semana passada, quando sua família divulgou um catálogo de fotografias sensuais. Nelas, a moça aparece em diversas posições em um sofá. Em uma delas, está sem roupa. Há quem diga que eram para o próprio presidente. “É um complô contra o governo e a família está envolvida”, acusou o ministro de Autonomias, um braço do Ministério de Relações Exteriores do país, Hugo Siles.

Evo manteve o silêncio sobre o caso nos últimos dias. Compareceu a um evento sobre segurança pública em La Paz, viajou ao Vaticano para encontrar-se com o Papa Francisco, esteve em uma cerimônia na fronteira da Bolívia com o Chile, inaugurou uma conta no Twitter e apareceu em público para pedir à Unasul que abra um processo de análise do processo de impeachment da colega Dilma, no Brasil. No maior grupo sobre Evo Morales no Facebook, um rapaz levantou a questão sobre a falta de declarações a respeito de Gabriela, Ernesto e CAMC, mas foi prontamente respondido por outra usuária. “Não importa. Todos ainda querem tirar foto com o presidente”.

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