O silêncio matutino nas plantações de hortaliças no bairro de Rincón del Cerro, nos arredores de Montevidéu (Uruguai), parece ser uma extensão clandestina do estado de espírito de dois famosos moradores da região. A pequena chácara próxima à estrada O’Higgins, nome de um dos libertadores da América, onde vivem a senadora Lucía Topolansky, 71, e seu marido, o também senador e ex-presidente Jose “Pepe” Mujica, 81, resiste como um bunker solitário da ideia de integrar todos os países da América Latina em um único bloco econômico e político.
Mujica e Lucía, no entanto, compartilham a mesma solidão que o lugar em que escolheram viver: mergulhado em uma crise política, o Mercosul corre o risco de acabar, deixando todos os seus membros novamente sozinhos.
No final deste mês, o Uruguai precisa transferir a presidência temporária do Mercosul ao governo da Venezuela, mantendo o acordo de rotação semestral de poder do bloco. A crise política e econômica venezuelana, no entanto, fez com que Brasil e Paraguai pedissem ao presidente uruguaio, Tabaré Vázquez, que continuasse no comando até agosto. Em julho, o chanceler brasileiro, José Serra, chegou a viajar a Montevidéu para interpelar Vázquez pessoalmente.
O presidente da Argentina, Maurício Macri, já reiterou diversas vezes seu repúdio à forma como a Venezuela está sendo governada, e o Paraguai parece não ter superado a entrada do país caribenho no bloco durante o período em que foi suspenso, em 2012. Assim, apenas o Uruguai – que está exercendo a presidência neste momento – parece disposto a seguir a regra e entregar a presidência a Maduro, ato que pode gerar um desconforto ainda maior entre os governos.
A crise, ainda que não pareça abalar os ideais de Topolansky, preocupa até mesmo quem já chegou a entendê-la como iminente. “Temos que cuidar dele como se fosse ouro, porque é uma ferramenta de construção de futuro”, diz ela a Calle2 enquanto aquece a pequena lareira de sua biblioteca, minutos depois de se despedir de Pepe, naquele dia envolvido em reuniões políticas. Lá fora, o silêncio dos cachorros e gatos soltos pela chácara parecem completar o clima frio da capital uruguaia e da relação entre os países sul-americanos naquela manhã.
O governo uruguaio reconheceu a alguns dias que a América Latina enfrenta dificuldades no projeto de integração. A senhora e o seu marido foram, nos últimos anos, as vozes políticas mais ativas nesse sentido. Por que a nossa integração está em segundo plano hoje?
Somos daqueles que acreditam que, em algum momento, a América vai conseguir construir a Pátria Grande, porque existem mais coisas nos unindo do que separando. A nossa história gerou vários países com fronteiras arbitrárias, fruto da conquista ibérica e dos processos de independência, mas ainda estamos no mesmo barco. É por isso que apoiamos o Mercosul, a Unasul, a Celac, organismos que tendem a integrar. O Mercosul nasceu como um acordo comercial, mas acreditamos que evoluiu para uma espécie de integração também.
Acreditamos que o Mercosul pode se tornar uma região de livre-trânsito de pessoas e de mercadorias, porque o mundo hoje se movimenta em blocos. Atualmente, por uma série de razões políticas que são circunstanciais, não de perspectiva, a situação no bloco está apenas mais complexa.
Por causa da transferência da presidência temporária ao governo venezuelano?
Sim. Muitas nações estão se inserindo nesse problema ferindo a soberania e a autodeterminação do povo venezuelano, assim como a Organização dos Estados Americanos (OEA). Eles tiveram uma eleição há sete meses que foi reconhecida por todos os organismos nacionais e internacionais. O que acontece é que o novo parlamento está em uma direção diferente em relação ao Executivo, o que faz com que qualquer país trave. É o que está acontecendo também na Argentina e no Brasil. Essas são algumas das debilidades da democracia que esperamos um dia solucionar.
A senhora está em que lado da discussão?
Não é novidade o que está acontecendo na Venezuela. Os presidentes, em todas as nossas constituições, têm poder de veto, e não há nada que mostre que os poderes não estão sendo independentes lá. Gostando ou não do estilo de condução do país, esse é um problema que não tem nada a ver com a transferência da presidência temporária ao governo venezuelano. O Uruguai está certo ao querer realizar esse ato. O Paraguai não tem muito crédito ao querer impedi-lo, porque esteve recentemente envolvido em uma crise política. Foi inclusive punido pelo Mercosul no caso do golpe contra Fernando Lugo. Não têm respaldo para falar. A chanceler argentina [Susana Malcorra] tem uma posição parecida com a nossa: o que mais importa é a ferramenta Mercosul e não os detalhes de cada país. Ninguém sabe como o Brasil agirá, porque esse é um governo interino. A situação do Mercosul agora é delicada, mas é um bloco importante e que deve continuar existindo.
As situações políticas dos países não estão afastando o projeto de integração?
Não me atrevo a dizer isso, porque o novo governo argentino não está contra a integração, por exemplo. Tem outra postura, mas a integração segue sendo uma pauta. Não se pode falar do caso brasileiro, porque ninguém sabe quem vai governar em um futuro próximo. Então os dois principais países do Mercosul não renunciaram ao projeto de integração. A Venezuela e o Uruguai estão sempre dispostos e o Paraguai nunca foi um país central nessa questão. Olhando o panorama do mundo, é possível perceber que o descalabro que pode acontecer na União Europeia com o Brexit impactou as comunidades econômicas. O principal cliente do Reino Unido é a União Europeia. Agora vão precisar negociar com 27 países com distintos funcionamentos para tentar manter o fluxo comercial. Isso impacta o resto: a União Europeia pode perder um fluxo exportador. Essa decisão prejudicou os dois. Foi uma campanha estranha, tanto que há um movimento para voltar atrás na decisão. Olhando essa situação, temos que cuidar do Mercosul como se fosse ouro, porque é uma ferramenta de construção de futuro.
O Brexit foi, sobretudo, uma resposta britânica para o tema da imigração. Na América do Sul, porém, esse não é um problema político. Quais são as nossas distâncias mais difíceis?
São distâncias culturais. Os maiores países da América do Sul não precisam da integração.
Não há uma grande mobilização no Brasil no sentido de integrar o continente, assim como não vejo nenhum movimento em Buenos Aires. Os países menores, como o Uruguai, entendem melhor a necessidade da integração.
Além disso, nossos mandatários estão preocupados com a sorte de seus governos, com as próximas eleições, com seus contextos particulares, o que fecha ainda mais as fronteiras. É possível que, com o tempo, os países percebam essa importância. A Europa conseguiu desenvolver uma infraestrutura ferroviária, rodoviária e portuária porque soube juntar o capital em Bruxelas e repartir entre todos. Todas as estradas espanholas, por exemplo, foram feitas com dinheiro da União Europeia. Assim como as ferrovias britânicas foram financiadas com recursos europeus. Isso aconteceu porque, ao se juntarem, potencializaram essa distribuição. Poderia acontecer o mesmo na América Latina sem o problema da imigração.
Por que essa questão da imigração é, de certa forma, irrelevante para nós?
Porque a América é um continente formado por imigrantes. A Argentina, o Brasil e o Uruguai foram construídos por pessoas de diferentes lugares, ainda que alguns países andinos mantenham seus povos originários. A União Europeia, nesse sentido, é cínica, porque os imigrantes que querem entrar no continente europeu agora são produtos das guerras ferozes que foram desatadas no Oriente Médio. Quem é responsável pela destruição da Líbia, do Egito, da Síria, do Iraque? Preciso responder? Não estou defendendo aqui o Muammar Gaddafi ou o Sadam Hussein, mas vamos lembrar que a Líbia tinha o PIB per capita mais alto do Oriente Médio e havia organizado de maneira razoável a questão das mulheres − que é complicada nos países islâmicos −, de forma que elas podiam estudar e ter independência econômica. Não era uma democracia no mesmo modelo que o nosso, mas agora são quatro grupos que disputam incessantemente o poder e que faz com que a população marche do país, além do roubo incessante do petróleo, que está entre os melhores do mundo. Isso é melhor do que o país de Gaddafi? Essa pergunta precisa ser feita.
O Mercosul ainda pode ser a chave de uma integração maior, nos termos que a senhora e seu marido se puseram a propagar?
Claro. Aspiramos que essa integração seja mais sólida, ainda que se pareça com a União Europeia. Nessa integração, poderíamos negociar como um bloco. Estamos negociando há quinze anos um acordo comercial com a União Europeia e sabemos que temos posições diferentes em diversos aspectos, como o agrícola. O Mercosul tem a maior região de cultivo de gado do mundo, além da produção de trigo, sementes, plantas, etc. Obviamente, os custos de produção são competitivos em relação aos custos europeus.
Mas é possível fazer o mesmo aqui?
Seria desejável. Não sei se exatamente igual, porque são países com histórias distintas, mas seria desejável uma livre circulação de bens e de pessoas e a possibilidade, por exemplo, de um professor uruguaio trabalhar no Brasil ou de um engenheiro boliviano trabalhar na Colômbia. Haveria um intercâmbio científico, social, econômico, etc. Foi o que deu status ao bloco europeus. Eles se tornaram mais fortes e, em tempos de crise em alguns países, como Portugal, Espanha e Itália, estes foram respaldados pelas fortalezas da Alemanha e da França.
O que nos une?
Acredito que devemos lutar para que, em algum momento, esse continente se integre. É possível fazer isso porque há uma série de coisas que nos unem: o idioma, a Igreja Católica em um aspecto cultural e os processos de independência – que se deram no mesmo momento em que o capitalismo estava começando. A história nos mostra que nossas colonizações e nossas emancipações se deram com vistas aos outros continentes, nunca olhando para nós mesmos. Ficamos muito tempo de costas uns aos outros, o que permitiu um domínio maior das grandes potências mundiais sobre o nosso continente. Essa situação mudou quando tomamos dimensão das potencialidades que temos.
A América Latina é o continente mais desigual do mundo, mas também o que tem as maiores reservas naturais do planeta, como petróleo, água doce e a Amazônia, que é a maior reserva biológica existente. Os países produtores de comida são estratégicos no mercado mundial, e não é à toa que a China investe tanto aqui: eles precisam alimentar um bilhão de bocas.
A Índia é a mesma coisa. Perceba que a China e a América do Sul se complementam enquanto países. Estamos convencidos que esse é o nosso destino.
E o que impede a integração completa – digo, de todos os países?
Há muitos interesses. Agora mesmo estamos discutindo um tratado com a Aliança do Pacífico, onde estão implicados pelo menos mais quatro países latino-americanos: o Chile, o Peru, a Colômbia e o México. A Colômbia vai se transformar em breve no terceiro maior país no aspecto econômico da região, porque tem um potencial exportador notável que ainda não foi explorado por causa da guerra. Além disso, está de frente para os dois oceanos.
Veja: nessa negociação entre Mercosul e Aliança do Pacífico temos fortes competidores, como Austrália e Nova Zelândia, que produzem as mesmas coisas que os países do Pacífico. Assim, vale a pergunta: é inteligente se integrar com os competidores ou é melhor se juntar aos complementares?
Esse acordo excluiria a China, o primeiro mercado de muitos países da América Latina, incluindo o próprio Chile, que vende cobre aos chineses. É inteligente excluir os chineses? Essa pergunta nos leva a respostas que geram muita dúvidas sobre esse acordo. Entendemos que o sudeste asiático − China, Índia, Indonésia, Malásia − é formado por milhões de pessoas que comem todos os dias ou que deveriam comer todos os dias. É uma região que precisa ser nossa sócia. Acredito que os países produtores de comida são chaves para o futuro do mundo e, por isso, a integração é fundamental.
O Uruguai se sente sozinho nesse conflito entre todos os outros membros do Mercosul e especialmente nas crises no Brasil e na Argentina?
O Uruguai está desempenhando um papel muito difícil. Estamos sendo a ponte entre os países e impedindo que o Mercosul acabe. Curiosamente, é o menor país da região que está exercendo esse papel. Quem vai suspeitar de intenções imperialistas do Uruguai? Seria um absurdo pensar isso. Sendo assim, reunimos condições para intermediar os conflitos entre Argentina, Brasil e Venezuela. Nosso chanceler [Rodolfo Nin Novoa] está trabalhando arduamente com todos esses países para encontrar uma saída. O Uruguai acredita que ela é lógica: após seis meses de presidência do bloco, é hora de passá-la à Venezuela e ajudá-la a desempenhá-la, e não atacá-la e colocar obstáculos que prejudiquem a existência do bloco. Mas sucintamente: o Uruguai está sozinho nesse momento.
Se não fosse o trabalho diplomático uruguaio, o Mercosul já teria acabado então?
Seria mais difícil para um país maior desempenhar esse papel de conciliação. Por isso que acho que, no meio de toda essa crise, acredito que é um momento oportuno para discutir essas questões.
A Calle2 abordou recentemente a possibilidade de o bloco acionar a cláusula democrática em relação ao Brasil no caso do afastamento da presidenta Dilma Rousseff. Esse processo não se deu ainda. Por quê?
O processo no Brasil foi diferente do que houve no Paraguai, em 2012, quando a cláusula foi acionada pela última vez. Naquele caso, o presidente Fernando Lugo foi deposto em 24 horas e sem nenhuma chance de defesa. Estou convencida de que o que ocasionou o golpe foi uma ação orquestrada. No caso do Brasil aconteceu outra coisa: não deixa de ser uma forma de golpe de Estado, mas há uma parte mínima de juízo em que uma parte das acusações até já afirmaram que as acusações contra Dilma são incorretas. É um processo muito mais legal do que o que houve no Paraguai. Assim, não há razão para acionar a cláusula [confira na semana que vem a segunda parte da entrevista, em que ela analisa a situação política do Brasil]. O mesmo acontece com a Venezuela: gostando ou não do estilo de governo, não se pode violar a soberania nacional de um país. Portanto, não há porque acionar o acordo agora.
O Centro de Investigações Econômicas do Uruguai divulgou recentemente um informe dizendo que a Argentina não influenciou em nada a economia uruguaia em 2016. É uma evidência da crise argentina ou as relações com Macri estão mais difíceis do que eram com Cristina?
Em alguns pontos, o governo de Macri está ajudando o Uruguai, ainda que em outros a gente não tenha empatia. Havia algumas decisões do governo anterior sobre a questão dos portos, com restrições que não convinham ao nosso governo. O que acontece é que convém mais aos comerciantes do sul da Argentina desembarcar mercadorias nos portos uruguaios do que nos argentinos por uma série de razões, como a estrutura e a profundidade de nossas instalações, mas isso foi restringido. Brigamos também para que o Paraná seja um rio internacional, e em direção oposta o governo anterior tomou a decisão de que toda navegação por este rio teria que ser feita com embarcações argentinas. Isso prejudica até o comércio que descia da Bolívia, porque a velha ideia de uma hidrovia naquela região era unir Cáceres [no Mato Grosso, Brasil] com Nueva Palmira [em Colônia, no Uruguai], de modo que o transporte marítimo saísse por ali e não tivesse que ir até Santos. Com essa restrição perdemos essa importante via marítima que fortaleceria a exportação de grãos e minérios bolivianos. Na prática, se o rio Paraná fosse uma pista internacional todos seriam beneficiados. Nessas questões, o governo de Macri é mais flexível.
E o que há de negativo?
O empobrecimento veloz que o povo argentino está enfrentando. Em poucos meses de governo, os impostos dispararam, começaram a surgir mais problemas de moradores de rua nas cidades argentinas e já temos um milhão de pessoas inseridas na pobreza novamente. Isso nos preocupa. Nós também dependemos do turismo argentino: nos meses de verão a grande parte dos turistas que chegam ao nosso país é de argentinos, então o poder de compra deles influencia a nossa economia. Isso diminuiu muito, porque o governo Macri priorizou pagar os fundos buitres e ainda aumentou as tarifas da agricultura local, que é uma das mais fortes do mundo. Com isso não podemos estar de acordo. Mas como já dito: esse governo é legítimo, os argentinos assim o quiseram, e não podemos nos meter nisso.
A senhora e o Pepe deram demonstrações públicas de descontentamento com a vitória de Macri no ano passado.
Acredito que a Argentina deu o poder a Macri porque o peronismo se dividiu. O peronismo é um fenômeno social dificílimo de entender: têm grupos que vão da direita à esquerda. Além disso, envolve um sentimento muito forte. Existem muitos argentinos que podem aprovar um governo peronista apenas pela figura de Eva Perón, mais do que a de Juan Domingo [Juan Domingo Perón foi um militar e político argentino, presidente da Argentina de 1946 a 1955 e de 1973 a 1974]. Essa mulher marcou a pátria socialmente como se fosse uma mãe. Era uma mulher de 33 anos que veio das classes inferiores e que, portanto, ascendeu em uma sociedade extremamente hierarquizada, tanto que a alta sociedade não gostava muito dela. A imensa maioria da população a ama até hoje. Se um cidadão entra em uma organização social ou um sindicato em qualquer rincão da Argentina, a primeira coisa que vê é um retrato dela. Isso precisa ser entendido como um sentimento que transcende apenas o aspecto partidário. Quando o peronismo está dividido, sempre surgem líderes radicais. Quando se juntam, não há maioria mais sólida do que esta.
Recentemente, um homem árabe foi preso em Montevidéu dizendo-se filho de vocês. A fama mundial do governo de Pepe atrapalha a vida cotidiana?
A verdade é que estamos em um bairro onde todos se conhecem. São todos pequenos agricultores que se sentiram privilegiados em ter aqui um presidente da República. As pessoas estavam muito felizes no dia da posse dele, fizeram uma festa aqui no quintal. Depois, como a nossa casa sempre esteve com as portas abertas, seguimos rodeados de gente. Com a presidência isso se potencializou. Chegou num nível que beira a loucura. Eu me sinto um pouco afetada na intimidade, mas não há o que fazer.
Mas não te irrita?
Não é questão de irritar ou não. Todos precisam ter um tempo para suas intimidades, para a família, mas não se pode ser muito egoísta. Às vezes nos vemos pressionados, mas o que vamos fazer?
Confira entrevista que a Calle2 publicou com Pepe Mujica
LEIA A VERSÃO EM ESPANHOL DESTA ENTREVISTA NO PRESSENZA
NA SEMANA QUE VEM, PUBLICAREMOS A PARTE 2 DESTA ENTREVISTA, EM QUE LUCÍA TOPOLANSKY FALA DO IMPEACHMENT DA PRESIDENTE DILMA ROUSSEFF E DA SITUAÇÃO DO BRASIL