‘O que fizemos foi legalizar a realidade’
Pessoas

‘O que fizemos foi legalizar a realidade’

O ex-presidente uruguaio Pepe Mujica recebe a Calle2 em sua chácara para falar sobre seus projetos vanguardistas, política internacional, Brasil e felicidade

em 24/11/2015 • 20h28
compartilhe:  

Flores e hortaliças. Manuela, uma cachorra de três patas. O emblemático Fusca azul, de 1978, no qual ainda é visto com frequência se locomovendo pelas redondezas. O cenário da modesta chácara no bairro Rincón del Cerro, nos arredores de Montevidéu, no qual José Alberto Mujica Cordano recebeu a Calle2 no último dia 18, é o mesmo que lhe rendeu fama mundial instantânea. Com seu traje despojado e estilo de vida simples, o ex-presidente uruguaio Pepe Mujica é dono de uma franqueza incomum, que destoa integralmente do imaginário popular sobre a classe política. É carismático e irreverente, polêmico e controverso, dando substância a seus ideais progressistas com um estilo de vida completamente avesso ao consumo, ao luxo e às formalidades.

“Quando você vai comprar algo, você não compra com dinheiro, compra com o tempo da sua vida que você gastou para ter esse dinheiro. Se estou esbanjando coisas materiais, estou esbanjando o tempo da minha vida. E o tempo da minha vida, não posso comprar.”

O estereótipo do político pobre elevou Mujica ao posto de um dos principais ícones latino-americanos da contemporaneidade. O uruguaio atrai uma grande legião de admiradores, especialmente jovens progressistas, a mesma que o ex-presidente uruguaio vê sair às ruas por não se conformar “com o que está aí”, mas ainda sem saber “onde se agarrar”. “Até agora, as ondas espontâneas de pessoas que se mobilizam mostram que têm muita força para questionar e mobilizar, mas não têm demonstrado que têm muita força para construir.” Como resolver isso? Mujica alfineta: “Isso é um problema que a sua geração tem que resolver, não a minha.”

Ex-guerrilheiro do Movimento de Liberação Nacional – Tupamaros, Mujica passou 14 anos de sua vida preso durante a ditadura uruguaia, grande parte na solitária, antes de se tornar o 40º presidente a governar o Uruguai. Seu governo, entre 2010 e 2015, colocou o pequeno país de 3,5 milhões de habitantes nos holofotes mundiais não apenas pelo personagem que se tornou, mas também graças à sua agenda de projetos vanguardistas, como a habilitação do casamento gay, a descriminalização do aborto e a regulamentação da produção e comercialização da maconha por parte do Estado. Mujica simplifica o caráter revolucionário dessas iniciativas. “O que fizemos foi legalizar a realidade.”

Mesmo fora da presidência, o atual senador não abandonou os temas polêmicos como corrupção, impeachment, terrorismo e integração latino-americana, um de seus tópicos favoritos. “A política é decisiva para que se incentive essa integração, mas não podemos ficar só no político. Tem que abarcar o econômico, tem que abarcar a infraestrutura, mas tem que abarcar especialmente o conhecimento. Me considero um soldado da integração.”

Pepe Mujica vive com sua companheira de toda a vida, a senadora Lucía Topolansky, com quem toca o projeto de uma escola agrária, e faz um balanço de seus 80 anos de vida. “Eu e minha companheira nos dedicamos a mudar o mundo. Nos tomou tempo e não mudamos muito o mundo. Nossa juventude se foi, e o tempo de ter filhos também. Então, agora, nos dedicamos aos que virão.”

No seu governo, tivemos ações de vanguarda, como a legalização da maconha por parte do Estado e a habilitação do casamento gay. Considera que o Uruguai possa ser usado como exemplo em outras partes do mundo?

Olha, ontem foi aniversário no Uruguai da lei das oito horas para os trabalhadores. Faz mais de um século, fomos o primeiro país a reconhecer legalmente a lei das oito horas. Como somos um país pequeno, podemos nos permitir fazer coisas que os países grandes não podem, ou que têm dificuldades. Com a maconha, fizemos um experimento, mas me atrevo a dizer que, nos próximos 20 ou 25 anos, boa parte das drogas serão legalizadas no mundo. O fracasso das medidas repressivas vai mostrar ao mundo a ideia de que as drogas são uma praga e que não deveríamos consumi-las. Mas as pessoas consomem, e temos outra praga que é o narcotráfico. Sai mais barato dar atendimento médico aos viciados, atendê-los como doentes e acabar com o narcotráfico. Porque as consequências do narcotráfico são terríveis para toda a sociedade. Mas vai levar tempo.

A legalização é uma boa ferramenta?

Acho que a humanidade vai aos poucos entender o que aconteceu com a Lei Seca nos Estados Unidos. A Lei Seca foi impulsionada por David Rockefeller. Quando Rockefeller viu os efeitos do que havia criado, um mercado clandestino de álcool, que era devastador, ele mesmo começou a trabalhar para que a lei caísse, por causa das consequências sociais. Há coisas que não se pode proibir. Existem muitos países que proíbem a prostituição, que é a profissão mais antiga do mundo. É uma maneira de explorar as debilidades humanas. Em nosso país, em 1914, organizamos e legalizamos a profissão, dando direitos e seguridade social. De que adianta proibir o que você não consegue proibir?

Somos uma região muito católica… Acha que iniciativas uruguaias de legalização da maconha e do casamento gay podem se espalhar pela América Latina?

A América Latina é muito católica, mas o Uruguai é o país mais laico da região. Há muito tempo separamos a Igreja do Estado. Na verdade, o que nós fizemos foi legalizar a realidade. Você sabe que existem cirurgias plásticas, você pode pintar o cabelo, podemos dissimular um pouco o efeito dos anos, mas não podemos evitar o efeito do tempo (risos). Aplicamos a política de reconhecer a realidade. É mais velho que o mundo que existem pessoas do mesmo sexo que têm relações. É velhíssimo. Vem dos gregos, e antes. Nos parece horrível perseguir as pessoas por isso.

O senhor foi um líder de grande repercussão internacional e que conseguiu colocar a América Latina no noticiário. Acha que falta hoje uma grande personalidade política na região? Quem poderia exercer esse papel atualmente?

Não sei. Posso estar errado no que vou dizer agora, porque não tenho o respaldo científico que deveria ter. O que vou dizer é uma percepção política e, portanto, peço perdão, pois posso estar errado. Acho que existe uma crise de liderança no mundo.

Em todo o mundo?

Sim, no mundo inteiro. E essa crise de liderança está tanto na direita quanto na esquerda. Eu busco homólogos de Churchill ou de De Gaulle para citar figuras conservadoras, e não encontro ninguém parecido. Tampouco vejo um Ho Chi Minh ou um Mao Tsé Tung ou um Mandela. Para mim há uma coisa bastante generalizada, tão generalizada como esse movimento crescente de jovens que não têm necessariamente claras definições políticas. Eu diria que está emergindo a civilização da internet, que não sabe muito bem onde se agarrar nem o que vai definir, mas que não se conforma com que o que está aí. Como se resolve isso? Não tenho ideia, porque não tenho uma bola de cristal.

Mas essa crise de representatividade política é uma ruptura com o modelo vigente?

Até agora, as ondas espontâneas de pessoas que se mobilizam mostram que têm muita força para questionar e mobilizar, mas não têm demonstrado que têm muita força para construir. A construção, até onde sabemos, exige a criação de forças políticas que são coletivas e de longo prazo. E não é isso que está acontecendo.

São ondas espontâneas, críticas, que vão para as ruas, que manifestam, que paralisam, mas, conforme os dias passam, nada é construído. Se não conseguirmos fazer com que essa força que vem das massas se transforme em força política orientada… Lamento, é uma perda tremenda de energia social. Isso é um problema que a sua geração tem que resolver, não a minha.

O senhor foi intitulado como o presidente mais pobre do mundo pela imprensa mundial, que destacava seu estilo de vida simples e também a doação de 70% do seu salário para a construção de casas populares. O senhor acha que é um modelo a ser seguido pelos outros políticos?

Não, não acho nada, eu atuo de acordo com o que penso, e esse pensar é antigo. Passei muitos anos preso e aprendi uma coisa muito simples e elementar. Se você não consegue ser feliz com pouco, então não vai conseguir ser feliz nunca. Eu não sou pobre. Sou simples, o que é diferente… Preciso de pouco, apenas o necessário para viver. Há aqui um conceito de liberdade individual que, se uma pessoa complica muito sua vida em aspectos materiais, depois você tem que ter tempo para resolver essas questões materiais. As pessoas gastam muito tempo da vida para resolver isso. Como eu quero ter tempo, e melhor margem de tempo para gastá-lo com as coisas que me motivam hoje, não tenho ambições materiais. Sou simples, porque é uma maneira de ter tempo livre.

Quando você vai comprar algo, você não compra com dinheiro, compra com o tempo da sua vida que você gastou para ter esse dinheiro. Se estou esbanjando coisas materiais, estou esbanjando o tempo da minha vida. E o tempo da minha vida, não posso comprar. Não posso ir ao supermercado e dizer: me dá cinco anos a mais de vida. Então tenho que tratar de ter maior quantidade de tempo para viver a vida.

Não quero gastar tempo da minha vida para as questões materiais. Isso não quer dizer que tenha que viver na pobreza. Mas, se tenho que me levar pelo mercado, nada me satisfaz, e eu vivo desesperado. Vivo em uma casa pequena, porque a construí com minha mulher, e é isso.

Como é a sua vida como ex-presidente?

Tenho 80 anos, estou em uma etapa meio no final do caminho. Não penso abandonar a política, enquanto a cabeça me responder. Estou preocupado em seguir lutando pela ideia da integração da América Latina. Mais que nada, vou seguir lutando por isso.

Como é o projeto de escola agrária que o senhor desenvolve aqui na sua chácara?

Estamos criando uma fundação para dar respaldo ao Estado. Quem tem que dar aulas é o Estado. Nós estamos tentando resolver problemas materiais do Estado, fornecer o local, comprar ferramentas e equipamentos. E o Estado tem que dar as aulas. Nós não substituímos o Estado, nós o respaldamos. Estamos aqui na chácara. Há muitas crianças que podem aprender e precisamos de pessoas para trabalhar a terra. Eu e minha companheira nos dedicamos a mudar o mundo. Nos tomou tempo e não mudamos muito o mundo. Nossa juventude se foi, e o tempo de ter filhos também. Então, agora, nos dedicamos aos que virão.

O senhor é considerado um mito por muitos, ganhou projeção internacional e colocou o Uruguai no noticiário global. Como vê o seu papel na história?

Em primeiro lugar, não existe a história, existe a historieta. As formigas estão neste planeta há muitos mais milhões de anos do que nós. Nós chegamos ontem. Na perspectiva do Universo, a vida humana é uma gota de água. Não se trabalha para a história. Se trabalha para a vida. Para tratar de ter uma vida o mais feliz possível. Porque, consciente ou não, a vida se vai. Eu estou conformado com a vida que tenho, tenho uma vida feliz e, no dia que acabar, gostaria de pode pedir: dame outra vuelta (me dá outra rodada!). Mas não vai poder ser assim (risos).

O senhor falou muito de felicidade. O que podemos fazer para conquistar a felicidade? Um conselho de Pepe Mujica….

A felicidade tem que ser vivida de acordo com a etapa da vida que cada um está. Na sua idade, não há nada mais importante do que o amor. Cuide-o. Porque se amanhã você tem uma derrota, o mundo não acabou. Você pode começar de novo. O pior é a solidão.

foto por: Mariana Vélez
o-que-fizemos-foi-legalizar-a-realidade-7

‎‎

INTEGRAÇÃO LATINO-AMERICANA E POLÍTICA INTERNACIONAL

Em sua opinião, há impedimentos para uma real integração latino-americana? Qual a importância do Brasil nesta integração? Acha que o Brasil deveria olhar mais para os países vizinhos?

Sim, o primeiro obstáculo para a integração é derivado da nossa formação histórica. Nós, países latino-americanos, surgimos quando o mercado mundial estava se organizando, e naturalmente nossa vida econômica começou a se moldar sem intercâmbio entre nós, mas sim exportando ao mundo rico. Isso determinou que cada porto tivesse sua comunicação com o mundo, criando uma civilização local em função do mundo e nunca em função dos vizinhos. Isso é muito importante para começar a entender a questão. Durante muito tempo fomos dependentes da cultura francesa, da economia inglesa, do intercâmbio com os Estados Unidos. E em todas essas décadas jamais olhávamos para os vizinhos. Como consequência, mesmo com todos os esforços de integração que fizemos, apenas 20% da nossa economia é trocada entre nós.

Falta muito…

Falta muitíssimo, a tal ponto que seria suicida se quiséssemos renunciar ao comércio exterior. Acho que isso é consequência da nossa história, o processo histórico é determinante. Desde sempre tivemos círculos intelectuais importantes, e às vezes grupos políticos importantes que lutaram a favor da integração. Mas esses defensores não tinham discursos populares, o discurso de integração não aparecia como uma necessidade histórica para o homem comum, que fizesse ele vincular a relação com os outros países com o seu futuro, seu salário, seu trabalho e seu nível de vida. Até é uma atitude intelectual honrada, mas, no melhor dos casos, restrita às pessoas que leem jornal todos os dias. E se não tem o calor de massas, do povo, dificilmente venceremos os obstáculos que existem. Eu não tenho outro caminho a não ser dizer o que penso. Eu me considero um soldado da integração.

Mas acha que está longe de acontecer?

Sim. Não sou otimista.

E o que pode mobilizar as massas? Um líder forte?

Acho que precisamos de partidos comprometidos que convençam suas bases e tornem isso uma caldeira popular. Caso contrário, torna-se um fenômeno discutido por intelectuais e pelas burguesias industriais e comerciais, de acordo com sua caixa registradora. E se vamos esperar que a integração venha como consequência da construção econômica do mercado, não vamos nos integrar nunca. Por quê? Porque grande parte de nossas relações econômicas acontecem para fora e não para dentro. Para mim o que é determinante é o grau de vontade política dos governos. Se não há essa vontade política, comprometida, entre os partidos, que penetre na sociedade, acho difícil, porque chegamos tarde. A não ser que tenhamos um susto grande.

De onde pode vir o susto?

A Comunidade Econômica Europeia, quando fez o primeiro acordo do carvão e do aço, na época o fez como uma consequência da Segunda Guerra, quando tinha a poderosa União Soviética como ameaça, de um lado, e do outro lado, o desafio americano das grandes empresas econômicas diante de uma Europa destruída. Ante esse desafio, de forças imensuráveis, a velha Europa, que havia passado 200 anos brigando entre si, começou a entender que precisava se juntar se quisesse sobreviver frente a esses monstros que haviam aparecido no horizonte. Isso demonstra que o perigo estratégico não deve ser reduzido a uma questão militar. Então a Europa começou a entender – num primeiro momento a França e a Alemanha, que haviam passado anos brigando – que tinha que partir para outra realidade. E conseguiu. Isso serve para dizer o seguinte: pode ser que na América Latina surja a vontade política de se juntar, porque há antecedentes. Temos que voltar à época de Perón e Vargas, do que eles propunham e por que fracassaram. Eles propunham exatamente esses caminhos diante do mundo. Ou seja, a questão da integração não é uma novidade, tem toda uma história que convém ser retomada e esclarecida. Mas por que não aconteceu? Acho que por essa atomização que nos impõe o mercado mundial e nossas burguesias que não fazem outra coisa além de ver seus negócios de forma imediatista e não de maneira estratégica. De onde pode vir o susto? Acredito que vivemos em uma humanidade que não tende ao livre comércio, uma humanidade que, ao que parece, está se organizando em grandes blocos. Quando os Estados Unidos propõem uma comunidade no Pacífico, aglutinam um monte de países, ou tentam aglutinar, mas deixam a China de fora, a Índia de fora, e nos colocam essa pergunta: o que nós vamos fazer? Acho que vai haver uma discussão nos próximos anos em toda a América que é: o que fazemos, subimos nesse barco ou num barco de integração com outros? Em qualquer alternativa, não somos nós que estamos buscando a integração, é o mundo que nos impõe. É diferente. Para nós, a integração poderia ter sido o caminho imprescindível para o desenvolvimento, mas o que ocorre é uma imposição do comércio mundial. Não sei, não sabemos. Tudo isso está em movimento, mas é um tema latente.

O senhor já disse que o Brasil deveria liderar esta integração por suas dimensões continentais. Então, qual é o papel do Brasil nesse processo?

O Brasil tem contradições internas inevitáveis. Há fortes correntes dentro do Brasil que pensam que o  país precisa antes se integrar internamente. Não sei se há uma interpretação paulista da história do Brasil ou se há um Brasil que vive sob a batuta de São Paulo. O problema é que, apesar das dimensões que o Brasil tem, já é tarde demais, já perdemos muito tempo. Ou melhor dizendo, o resto do mundo ganhou muito tempo. E não acho que o Brasil isolado possa equilibrar. Acho que o mais inteligente seria que toda a América Latina fizesse um intercâmbio com o Brasil, oferecesse tudo o que tem. Porque é grande a diferença na capacidade de fazer pesquisa científica de ponta. Na era do conhecimento em que estamos, é muito grande a vantagem que eles [o resto do mundo] têm sobre nós. Não se pode reduzir a uma questão de recursos econômicos. Os recursos naturais nos sobram, mas os recursos naturais, se não nos levam a isso [conhecimento científico], não são suficientes. E nesse terreno eles levam uma enorme vantagem.

A integração significa também juntar nossas universidades, juntar nossos conhecimentos, criar sistemas comuns de pesquisa, impedir que roubem nossos cientistas. Isso é parte da integração.

Não podemos reduzir a integração a uma questão fenícia: quanto te vendo e quanto você me vende. Alguns defendem que, para alcançar a integração, primeiro temos que resolver problemas de infraestrutura. Sim, podemos resolver todos os problemas de infraestrutura que quiserem, mas se não juntarmos nossos poucos cérebros… A política é essencial para incentivar essa integração, mas não podemos ficar só no plano político. Temos que abarcar o econômico, abarcar a infraestrutura, mas temos que abarcar especialmente o conhecimento.

Por que o Mercosul não avança como deveria?

O Mercosul é uma semente da unidade da América Latina, fundamentalmente porque tem Brasil e Argentina. Mas nestes anos a Argentina embarcou em um projeto próprio, homólogo aos tempos de Getúlio Vargas, mas não adequado aos nossos tempos. Não podemos fazer protecionismo entre nós, precisamos de fronteiras muito mais abertas se estamos construindo um modelo comum. Isso criou obstáculos muito grandes. A Argentina quer resolver seus problemas fechando-se em si mesma. E acho que o jeito fundamental de a Argentina resolver esses problemas seria com uma abertura inteligente à região, buscando sintonizar seus interesses com o Brasil. Mas as coisas não acontecem como a gente pensa.

E o novo acordo do Pacífico?

Creio que a intenção política desse projeto é fundamentalmente frear a competitividade chinesa. Mais que um projeto de desenvolvimento, ele visa garantir que esse grande competidor não consiga entrar nesse mercado. Desse ponto de vista, me parece perigoso, porque vai aumentar a tensão no mundo que virá. Do ponto de vista prático, quais são nossos mercados? O primeiro é a China. É o primeiro cliente do Brasil, da Argentina… Não podemos renunciar a esse mercado. Não vamos vender a soja que produzimos para a nova aliança, porque os Estados Unidos são o principal produtor de soja, somos concorrentes dos Estados Unidos. Nós vamos vender para a China. Não acho que o acordo do Pacífico pode resolver esses problemas. Estivemos lutando por um acordo com a Europa. Nos dias que passei no Brasil, senti um vento favorável para que isso se concretizasse, e tomara que consigamos, porque isso pode nos ajudar a mitigar a dependência da China. Mas não sou muito otimista, porque existe a agricultura francesa, que é uma grande concorrente.

O senhor diz que a esquerda latino-americana está passando por uma estagnação. Acha que há uma onda de conservadorismo na região?

Isso pode ser uma oscilação. Acho que a história humana tem um constante movimento pendular entre o conservadorismo e a mudança. Nunca o conservadorismo termina em algo imutável, é impossível. E nunca a mudança nos leva a uma conclusão definitiva. Vivemos uma década relativamente progressista na América. O conservadorismo não vai triunfar definitivamente, porque também não vai triunfar a outra parte. Triunfo definitivo não existe, o que existe é uma escada, são objetivos que vão sendo alcançados.

No começo do seu governo, o senhor tentou melhorar as relações com a Argentina. Essas relações foram suavizadas?

Não acho que a Argentina fez maldade deliberadamente com a gente. Acho que a Argentina ergueu um projeto muito fechado e protecionista, e foi esse projeto que criou dificuldades para nós e também para o Brasil, porque começou a nos tratar como se fôssemos de outro continente, e tínhamos o acordo do Mercosul. Quero ser otimista e acreditar que isso vai ser superado aos poucos.

Brasil, Argentina e Uruguai se uniram em uma guerra que devastou o Paraguai, e nunca fizeram uma aproximação histórica. Por quê?

Com o Paraguai, temos uma dívida histórica que nunca pagamos. O Uruguai entregou seus troféus e seus reconhecimentos, mas foi meio simbólico. Os países grandes se recusam porque tiveram vantagens territoriais. É uma dívida que talvez nunca pagaremos.

E por que o senhor acha que os governos nunca fizeram nada?

Porque os governos se movem no hoje, e qualquer reparação que quisessem fazer, afetariam interesses de hoje, não de ontem. Essas coisas tendem a ficar pendentes. Como ficou a história do porto do Pacífico da Bolívia.

No seu governo, o Uruguai recebeu imigrantes sírios. Houve o atentado na França há poucos dias. Como o senhor vê essa questão do terrorismo e dos refugiados?

Há uma questão psicológica da cabeça humana, que acho que as pessoas não querem entender. O fanatismo é uma das deformações da cabeça humana, não é nova. Porque não tem explicação. A Alemanha era, na Segunda Guerra, a nação mais culta da Europa, e fizeram barbaridades com o nazismo. Acreditavam que a raça ariana era a melhor do mundo e que deviam eliminar os judeus. Foram pessoas intelectualmente capacitadas que pensaram isso, por que fizeram isso? Por fanatismo, que vai chegando e estreitando a visão. E foi a primeira vez que aconteceu? Não. Tivemos a Inquisição, e também a história da América Latina. Temos a história com os negros, que nem eram considerados homens, mas um meio termo entre o homem e o macaco. O homem pode cair em atitudes fanáticas, e somente o fanatismo pode tirar essa força instintiva da autopreservação. O que impressiona não são os assassinatos – o homem já demonstrou que é um animal assassino. O que mais me surpreende são os homens-bombas. Isso é contrário ao instinto de sobrevivência que temos, nenhum de nós quer atentar contra a própria vida. Quando fazemos isso, ou é por desespero ou por fanatismo. Temos que perguntar: por que esse fanatismo? De onde vem? Quem não vai ficar impressionado com o que aconteceu? Temos que nos impressionar pelo que aconteceu em Paris, mas também na Nigéria, ou no Líbano. Ou com a história do avião russo que caiu. Você viu as imagens das Torres Gêmeas? Um dos caras que vinha pilotando corrigiu a direção do avião para matar. O que existe dentro dessa cabeça? O exército japonês também tinha isso, um time de kamikazes, jovens treinados para que um avião-bomba exploda. O fanatismo é o pior. E o pior em várias esferas: religiosa, política, social. Não sei como vamos fazer com isso. Bom, vão esmagar os terroristas. E depois? Vem o que?

‎‎‎

BRASIL, IMPEACHMENT E CORRUPÇÃO

Na biografia “Uma Ovelha Negra No Poder: Confissões e intimidades de Pepe Mujica” foram publicados trechos que geraram polêmica sobre o mensalão, posteriormente esclarecidos pelo senhor, e também sua percepção sobre a corrupção. O senhor acredita que a corrupção é um dos grandes problemas atuais da América Latina?

A corrupção é um problema do mundo, não só da América Latina. É resultado desta etapa que vivemos do capitalismo, que tende a levar a sociedade a pensar que a felicidade humana equivale a ter mais bens materiais, a multiplicar a riqueza, a ter dinheiro para trocar o carro, ter mais recursos, ir para lá e para cá. E, com esse ideal de vida, algumas pessoas têm a intenção de vender a alma ao diabo para encurtar o trabalho e o caminho para a riqueza. É um problema que está na necessidade interior das pessoas, é um problema que vem da submissão cultural que temos. Então, como consequência, vemos corrupção por todos os lados.

Um ex-governador de São Paulo disse recentemente que o impeachment é uma ferramenta política usada pelas oligarquias para dar golpe em governos populares. O senhor concorda?

Sim. Tenho a impressão de que há uma campanha desaforada que busca judicializar a política e o PT em particular. Vejo isso como uma ferramenta política. Isso não quer dizer que não exista corrupção. Não é um problema do PT, é um problema da sociedade, é muito mais genérico. Estive em um jantar em São Paulo, com empresários, quando eu era presidente… me comentaram que havia 5% do PIB brasileiro neste jantar, e hoje estão quase todos presos. Mamma mia!

Como analisa a atual situação política brasileira? Acha que um impeachment de Dilma Rousseff ainda é possível?

Não. Acho que [os brasileiros] não deveriam fazer tão mal ao Brasil, porque além do governo atual, afetaria o prestígio do próprio Brasil. [O impeachment] colocaria um grande país a altura de uma ‘república das bananas’, no que diz respeito à visão internacional. Acho que o Brasil deveria resolver seus problemas de outra maneira, mas não por caminhos deste tipo. Observe: há poucos dias saiu um escândalo da Volkswagen, não vimos ninguém da Volkswagen preso. No ano passado saíram irresponsabilidades de um banco importante dos Estados Unidos. Eles cobraram US$ 2 bilhões ou US$ 3 bilhões de multa, mas ninguém foi preso. Que estranho, né? Parece que as grandes companhias são amparadas para que não removam seus presidentes. Se há que amparar uma grande companhia, há que amparar um país. É mais importante. Pode haver responsabilidades, mas temos que lembrar que a falta de credibilidade em um país tem consequências incomensuráveis.

Acha que se houvesse um impeachment no Brasil, afetaria toda a região?

Sim, qualquer coisa que afeta o Brasil afeta os países vizinhos. O Brasil é continental, tem muita influência.

No início do seu governo, uma grande preocupação era a educação, mas o senhor enfrentou muita resistência a seus projetos. O que podemos fazer na América Latina para melhorar a educação?

Acredito que a educação não pode funcionar apenas voltada ao mercado de trabalho. Tenho a impressão de que querem nos educar para que sejamos empregados e, na melhor das hipóteses, para que possamos ter um bom salário. Mas não nos educam para viver. Alguém te deu aulas de como administrar um lar? Quando saímos da escola, eles deveriam pensar que algum dia você pode constituir família, e tem que ter ideia de como administrar uma casa. Mas não. Te dão aulas de economia, de um monte de coisas… Mas disso ninguém fala. Alguém já te falou de como usar a inteligência para favorecer a felicidade? Não. O que fazem é te ensinar um monte de coisas para que você seja útil no trabalho, para que possa receber um salário. E, se você estuda mais, o salário pode aumentar. Acho que a vida é curta e que as pessoas têm o direito de lutar para serem felizes. Porque, se não, a vida passa e passa muito mais rápido do que pensamos.  A educação é excessivamente burguesa e utilitária, e há ainda um desprezo pelo trabalho manual. Nos ensinam pouco a trabalhar com as mãos, o trabalho é cada vez mais intelectual. É preciso saber parar, consertar uma tubulação, trocar uma lâmpada, não sei. Foram as mãos que desenvolveram a cabeça, e não a cabeça que desenvolveu as mãos.

O senhor enfrentou resistência para executar os seus projetos. Sua percepção sobre a política mudou quando virou presidente?

As coisas não são tão difíceis, ainda que existam dificuldades. O mais difícil são os indivíduos, não as coisas. As dificuldades são sempre humanas.

‎‎

Edição: Ana Magalhães e Gisele Lobato

Comentários

Comentário