Cinco anos de legalização da maconha no Uruguai
Sociedade

Cinco anos de legalização da maconha no Uruguai

Especialistas comentam os principais marcos do processo de legalização no país e da adoção do modelo por outras nações

em 24/11/2018 • 11h42
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Em 2013, nossos vizinhos uruguaios foram os pioneiros no processo de implementação de uma lei inédita no mundo: a legalização do uso recreativo da maconha. Cinco anos depois, entidades governamentais, organizações sociais e profissionais de diversas áreas trabalham para transformar em realidade um documento que reúne cerca de 30 artigos definindo a produção, venda e consumo da marijuana em território nacional.

Uma das vozes mais conhecidas no país por sua militância pela legalização é a Uruguay Siembra, uma organização que tem acompanhado as mudanças dessa indústria em pleno crescimento e refletido sobre as dúvidas e preocupações da sociedade em um evento internacional chamado Expocannabis Uruguay. Desde 2013 o encontro reúne anualmente distintos atores do mercado da cannabis: consumidores, ativistas, pesquisadores e políticos, que participam de workshops, exposições e palestras.

Segundo a ativista e co-fundadora do evento Mercedes Ponce de Leon, a Expocannabis de 2018 será especial porque o Canadá está entrando no processo regulatório. “Com isso, o mapa geopolítico muda com respeito à cannabis, já não somos o primeiro e único país que regula e tem essa legislação reconhecida”, comenta ela. O evento que ocorre entre os dias 7 e 9 de dezembro pretende fazer uma avaliação dos cinco anos de regulação da cannabis e o papel que o Uruguai tem e terá no mapa mundial canábico.

Para conhecer mais sobre o processo de legalização e os próximos passos da implementação da lei, a Calle 2 listou alguns marcos da trajetória da cannabis no Uruguai nesses últimos cinco anos:

De 2011 a 2013: um país com leis progressistas coloca o tema da cannabis sob holofotes

Como muitos ativistas da cannabis, a relação de Mercedes com a planta surgiu quando ela ainda era adolescente e provou maconha pela primeira vez. Embora o consumo da marijuana e de muitas outras drogas já fosse legal desde a década de 70 no Uruguai, a aquisição desses produtos continuava sendo um crime. “Por um lado era algo que eu gostava, que me fazia bem. Mas por outro havia toda essa proibição ao redor. Foi isso que gerou em mim a vontade de lutar pela liberdade dessa planta e, de uma certa maneira, era também uma luta por mim mesma, como consumidora. Era um tema de direitos humanos: se é legal consumir, porque é ilegal plantar, vender, comprar? Eu tinha que fazer algo ilegal para fazer algo legal. Estavam me obrigando a delinquir”, explica Mercedes, que em 2004 começava a militar e trabalhar em prol da regulação.

Parte do crescimento de Mercedes como ativista ocorreu durante uma volta ao mundo canábica, na qual ela percorreu vários países entre 2007 e 2013 com o objetivo de conhecer diferentes modelos de produção e consumo da planta. Alguns dos destinos dela foram Marrocos, Senegal, México, Colômbia, até chegar aos Estados Unidos, onde trabalhou por anos na indústria da cannabis na Califórnia. Ao mesmo tempo em que Mercedes recorria esses destinos, no Uruguai a discussão sobre a legalização ia ganhando força. Essa não era a primeira vez que esse pequeno país da América Latina travava diálogos inéditos sobre iniciativas consideradas tabu em grande parte das nações do continente. Outras legislações progressistas aprovadas no Uruguai são a lei do aborto, o casamento igualitário e, mais recentemente, a lei de apoio a pessoas transgênero.

No caso da marijuana, desde 2011 o Parlamento vinha estudando a possibilidade de legalizar o auto-cultivo. Em 2012, o Poder Executivo deu entrada a um novo projeto de lei que sugeria a regulação e o controle do mercado da marijuana por parte do Estado, o que estimulou as discussões e agilizou o processo. Para organizar as ideias que pulsavam em distintas frentes e atacar o medo de parte dos legisladores e da sociedade civil de que essas iniciativas terminassem estimulando o consumo às drogas, a Comissão de Drogas e Vícios da Câmara de Deputados se dedicou a trabalhar por cerca de um ano e meio ao lado de especialistas de distintas áreas, como advogados, médicos e sociólogos, para construir uma legislação completa e representativa.

Um dos participantes dessa discussão foi Diego Silva, professor adjunto de Direito Penal na Universidade da República. Diego acredita que o convite para assessorar a Comissão no processo de redação da lei surgiu devido à sua atuação acadêmica e sua opinião sobre o tema drogas e liberdades individuais, expressada em diversos artigos. “A bancada do partido Frente Amplio na Comissão de Drogas e Vícios me pediu para que colaborasse com o ponto de vista jurídico. Trabalhamos para mudar um projeto de lei que havia surgido com um artigo único até chegar a um que se apresentou em novembro de 2012 à Câmara já com 38 artigos”, explica Diego.

Depois da discussão parlamentar e de novas alterações, o projeto de lei foi aprovado na Câmara dos Deputados com 50 votos a favor, 46 contra e 3 ausências. Alguns meses depois, o Senado foi o responsável final por aprovar a lei número 19.172 com 16 votos (todos de senadores do partido de situação, o Frente Amplio) contra 13 votos de representantes de partidos da oposição.

Para Diego, o objetivo de todo esse processo de co-construção da lei com aportes de diferentes profissionais era criar um marco regulatório que desse mais garantias aos consumidores da cannabis e se desviasse do caráter repressivo da lei aprovada nos anos 70. “Tentamos dar mais garantias aos consumidores. Partindo da base da autonomia individual de cada um, buscamos dar uma visão mais humanista ao tema das drogas tentando abandonar uma postura punitiva”, contextualiza.

Em 2014 surge a Expocannabis Uruguay e o debate se amplia

A volta de Mercedes a seu país natal se deu paralelamente à aprovação da lei, já que a ativista sentia uma necessidade de regressar ao Uruguai e apoiá-lo em seu processo de implementação da nova legislação. Uma das principais ferramentas de articulação que Mercedes lidera há cinco anos é justamente a Expocannabis, que se realiza desde o primeiro ano de validez da lei no Uruguai. Segundo ela, os organizadores do evento acreditam na importância de fomentar um espaço onde todos os participantes da indústria, desde o cultivo, passando pela comercialização, até chegar ao consumo da marijuana e outros derivados do cânhamo, pudessem se conhecer, colaborar e ampliar a discussão. Além do evento, o grupo Uruguay Siembra também organiza outras atividades ao longo do ano para promover espaços de articulação, como a Cannabis Conference e a publicação bi-anual da Guía Cannabis.

Ao longo dos anos, o Uruguay Siembra foi se aproximando de organizações e empresas para convencê-las das oportunidades que essa nova indústria representa. Uma delas é o Laboratório Tecnológico del Uruguay (LATU), um espaço de 46 mil metros quadrados onde a Expocannabis acontece desde 2014. No primeiro ano 5 mil pessoas passaram por lá. No ano passado, esse número chegou a 17 mil.

O programador uruguaio Nicolás Rosado já participou de duas edições da Expo e, assim como Mercedes, sua relação com a cannabis começou durante a adolescência. Desde os 16 Nicolás consome marijuana e nos últimos anos vem acompanhando as mudanças na legislação uruguaia com otimismo. “Com a lei conseguimos erradicar o tabu, o medo e a falsa informação. A legalização ajudou a conscientizar as pessoas sobre a marijuana e seus efeitos ao invés de demonizá-la”, explica ele. Nicolás também destaca o acesso mais fácil e controlado à maconha. “Hoje conseguimos chegar a uma marijuana de boa qualidade. Você sabe o que está fumando e não tem que entrar em lugares perigosos para conseguir, nem comprar de pessoas que te oferecem produtos dos quais você não conhece a procedência”, comenta.

De 2015 a 2017: implementação da lei e educação da sociedade

Há quase um ano Nicolás é membro de um clube canábico, um tipo de organização que tem como objetivo cultivar cannabis destinada ao uso de seus membros participantes. Os clubes estão registrados pelo governo e podem ter entre 15 e 45 sócios. “Eu pago um valor mensal e isso corresponde a uma certa quantidade de marijuana todos os meses”, explica.

Os consumidores de marijuana no Uruguai têm distintas opções para adquirir a droga: clubes canábicos, auto-cultivo ou mesmo comprá-la em farmácias, método que se inaugurou em 2017. Somente pessoas maiores de idade e que tenham cédula de identidade uruguaia vigente podem registrar-se para comprar maconha nas farmácias participantes. Ou seja, somente estrangeiros que tenham residência legal no país podem realizar a compra, além dos próprios uruguaios. Segundo o Instituto de Regulação e Controle da Cannabis, atualmente existem mais de 30 mil pessoas registradas para adquirir a droga em 17 farmácias cadastradas. Os clubes canábicos já passam de 100 em todo o país.

Para Mercedes, a mudança na percepção da sociedade sobre a cannabis foi ocorrendo a partir da informação. Usando a Expocannabis como termômetro, ela explica que a visão da sociedade civil e das empresas foi ampliando-se com os anos. “Também ajudou todo o avanço do tema cannabis em outros países, onde a regulação avançou. A tendência é dirigir-se a isso: já não vamos voltar à proibição, ou pelo menos não parece, porque há um negócio multimilionário por trás da planta”, diz a ativista.

O cânhamo tem um crescimento rápido com várias colheitas anuais e a planta pode ser usada como matéria-prima de diversos produtos, como a celulose, biocombustível, bio-plástico, alimentos, cosméticos, materiais de construção, entre outros. Esses usos são alguns dos enfoques que ativistas como Mercedes destacam em suas iniciativas para fomentar uma perspectiva que vá além do consumo da maconha.

O início das vendas da marijuana em farmácias marcou o fim de um ciclo da legalização, aplaudido por entusiastas como a fundadora da Expocannabis. “Já temos a regulação do uso adulto não-médico totalmente implementada. Hoje quem quer consumir pode ir a uma farmácia, participar de um clube, optar pelo auto-cultivo, enfim: tudo isso é excelente”, celebra Mercedes. Para ela, a legislação uruguaia é tão completa que está servindo como base de estudo para outros governos em processo de regularização, tais como Colômbia, Peru, Alemanha e, inclusive, o Canadá, que teve representantes visitando o país para se aprofundar sobre o assunto.

2018: falta de estatísticas criminais e crescimento da cannabis medicinal

Segundo Diego Silva, um dos aspectos mais positivos da implementação da lei tem relação com o respeito às liberdades cidadãs, já que ela garante o acesso a produtos derivados da cannabis de maneira segura e organizada. Além disso, ele ressalta que a aprovação da lei não gerou problemas de ordem pública. “Não ocorreu nenhum assalto a nenhuma farmácia para adquirir marijuana, tampouco a algum clube ou cultivador. Ou seja, todas as vias de acesso lícito à cannabis não geraram impacto negativo na segurança dos cidadãos, como pensavam alguns pessimistas. A realidade mostrou que o consumo de forma pública e regulada não provocou nenhuma alteração no cotidiano da sociedade uruguaia”, defende o professor adjunto de Direito Penal na Universidade da República.

Embora a legalização teoricamente seja uma maneira de combater o narcotráfico, Diego critica a falta de dados estatísticos para medir se as hipóteses são reais. Segundo o especialista, o sistema judicial do país realiza todos os anos uma sistematização de causas de processos penais, mas até hoje os delitos relacionados a entorpecentes são agrupados em uma única categoria, sem distinguir por substância ou tipo de conduta, o que torna inviável avaliar o impacto da legalização da marijuana no crime organizado.

Algumas organizações puderam levantar dados mais relacionados ao perfil do consumidor da cannabis no país, como o grupo de pesquisa Monitor Cannabis. Em um artigo publicado recentemente, pesquisadores apontam que nos últimos anos houve um incremento na quantidade de usuários da marijuana no Uruguai, assim como algumas mudanças no perfil do usuário médio. Antes de 2014 os usuários eram geralmente homens, residentes na capital do país e jovens, na casa dos 20 anos. Outras características comuns era uma situação socioeconômica alta e maior nível educativo. Em um artigo publicado esse ano pelo grupo, há um trecho que diz: “A partir de 2014 se acentuou uma tendência que já se observava desde anos anteriores: a proporção de adultos, idosos, mulheres e, em menor medida, pessoas do interior do país fazendo uso da cannabis cresceu”.

Um fator interessante que colaborou para a diversificação do perfil do usuário da marijuana tem a ver com os princípios medicinais dessa planta. Segundo outro artigo publicado pelo Monitor Cannabis, 90% da população do país aprova o uso terapêutico da marijuana. Diego lembra que existem muitas vantagens comprovadas no uso da cannabis para combater dores crônicas, esclerose, artrosis, glaucoma, efeitos secundários da quimioterapia, entre outros problemas de saúde. “Há muitos adultos que querem usar a cannabis com um foco terapêutico e enfrentam dificuldades, como a falta de cobertura suficiente por parte do Estado, que não impulsiona a pesquisa nesse campo”, explica Diego

Mercedes conta que desde a segunda edição da Expocannabis o evento oferece um consultório medicinal no qual médicos especializados em cannabis atendem gratuitamente ao público. Embora o interesse por parte da população para explorar os benefícios da cannabis medicinal exista, tanto Diego como Mercedes criticam o avanço tímido do país em relação à pesquisa científica sobre os usos terapêuticos da planta. “Temos tudo para fazer muitas coisas, mas vamos em um ritmo muito lento. Isso acontece principalmente no plano industrial e medicinal”, lamenta a ativista. Ambos os especialistas acreditam que o país deveria aproveitar melhor o fato de possuir um marco regulatório pleno para impulsionar a investigação científica. “Temos técnicos devidamente capacitados em distintas áreas universitárias, mas que veem seus projetos frustrados pela dificuldade em conseguir fundos ou por causa de todas as travas administrativas que existem na hora de realizar um projeto relacionado a essa temática. Estamos falando de projetos que poderiam ser pioneiros no mundo”, diz Diego.

Com a legalização da cannabis em regiões dos Estados Unidos, como a Califórnia, e agora no Canadá, assim como os primeiros passos do México em relação ao tema, fica evidente uma tendência mais localizada na América do Norte em seguir os passos do Uruguai e regularizar o consumo e produção da cannabis. Por enquanto, Diego acredita que ao sul do continente não vamos ver novidades sobre esse assunto devido ao caráter conservador dos governos vizinhos. “Temos realidades políticas muito diferentes, então acho que é difícil replicar a experiência uruguaia. Hoje, os governos da região são conservadores e, especialmente, o próximo governo do Brasil se apresenta como ultraconservador. Isso quer dizer que esse tipo de experiência inovadora não será replicada no curto prazo”, avalia.

Mesmo com poucas perspectivas de que uma legislação desse tipo comece a ser trabalhada no Brasil, Mercedes afirma que a participação de mais brasileiros na Expocannabis é fundamental para ir preparando o terreno para uma legalização no futuro. “A indústria da cannabis no Brasil vai surgir em algum momento. Inclusive já há empresas preparando-se para operar, existem antecedentes no tema medicinal. Os laços e as redes têm que ser gerados o quanto antes para que no futuro todo o processo funcione da melhor maneira e mais rápido. Temos que começar por algo”, considera.‎‎

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