Quando o economista francês Michel Chevalier foi enviado pelo governo do seu país aos Estados Unidos, na metade do século XIX, não imaginava que encontraria uma divisão nas Américas semelhante àquela que existia na Europa entre o Norte germânico e protestante e o Sul católico e latino.
Depois de aproveitar o período para conhecer a ilha de Cuba e o México, ele escreveria já na França o livro Lettres sur L’Amérique du Nord (Letras da América do Norte), em 1836, dizendo que as colonizações ibérica e britânica no continente americano o havia separado da mesma forma que os europeus já conheciam
Apesar de não ter usado nenhuma nomenclatura para dividir as duas Américas que encontrou, Chevalier foi o primeiro a perceber que, nesta parte do mundo, existiam dois povos distintos: um ao Norte e outro ao Sul.
“Foi a semente para o que se tornaria depois a ‘América Latina'”, afirma o professor Bernardo Ricupero, do departamento de Ciência Política da Universidade de São Paulo (USP).
A expressão “América Latina” apareceria, de fato, apenas no contexto do Segundo Império Francês, após o golpe de Luís Bonaparte, sobrinho de Napoleão Bonaparte, em 1848. Foi inspirada pelo movimento denominado “pan-latinismo” que havia surgido das entranhas de um mais antigo, o pan-eslavismo, originário da Guerra da Criméia (1853-1856) e cuja ideia central era a construção de uma confederação de países eslavos que servisse para fortalecê-los enquanto povo. No mesmo período, existiam ainda o pan-germanismo e o pan-arabismo — todos com ideias parecidas.
A discussão sobre o surgimento da “América Latina” envolveu diversos escritores, pesquisadores e intelectuais nas últimas décadas: um dos lados tem como expoente principal o historiador estadunidense John Phelan, da Universidade de Wisconsin (EUA), que defendia que o termo havia sido uma invenção dos europeus no contexto de expansão do imperialismo francês, com o envio do príncipe austro-húngaro Maximiliano ao México durante o Segundo Império. De acordo com ele, a própria iniciação do termo aconteceu na França, por volta de 1860.
Do outro lado, estão autores como o uruguaio Arturo Ardao e o chileno Miguel Rojas Mix, que argumentam que o termo foi criado por latino-americano. “Quando se produziu, entre os intelectuais, uma reação de defesa ante a expansão norte-americana e, na Europa, o impulso ao nacionalismo que dividiu anglo-saxões e latinos, o termo definiu os hispano-americanos que se voltaram para um vínculo solidário com a Europa latina”, diz um trecho de Historia de los conceptos, de Ardao.
O professor Bernardo Ricupero concorda com Ardao e Rojas Mix: para ele, a ideia de uma América Latina foi pensada desde sua gênese em contraste à América anglo-saxã, em um processo iniciado entre 1830 e 1880. O termo “latina” sugeria uma relação com a colonização realizada por povos europeus latinos –- os espanhóis, portugueses e franceses.
No entanto, além dessa diferenciação com o Norte, a latinidade implicou a exclusão de alguns membros da América que buscava sua identidade, como os negros e os índios. “Podemos perceber essa dificuldade até nos dias hoje, por exemplo, na dificuldade de países como o Haiti de se identificar com esse ‘continente’ latino-americano”, diz Ricupero.
Seja como for, a América Latina tal como foi concebida e como se reconhece hoje também é uma região fracionada e repleta de categorizações sem limitações precisas. Ao longo do tempo, diversas outras categorias foram criadas para se referir a fronteiras imaginárias inseridas dentro da região, como a de “América Hispânica”, “Ibero-América” e “Indo-America”. Para muitos historiadores, elas só ajudaram a confundir ainda mais uma parte do mundo em busca de sua identidade.
Presente em muitas questões de concurso e vestibulares, a América Hispânica, por exemplo, podia ser considerada não apenas a ligação do continente com os países hispânicos da Europa (Espanha e Portugal), como também apenas com os espanhóis, eliminando a América portuguesa.
Já o termo Indo-America, utilizado pelo revolucionário peruano José Mariátegui, dizia respeito ao elemento indígena da região — e não à toa foi tomado também pela Aliança Popular Revolucionária Americana (APRA), partido de esquerda do Peru.
“Nessa gama de expressões possíveis, o termo ‘América Latina’ ganhou a legitimidade para se referir com mais precisão à ideia de continente. Ao pensar em América Latina, em boa medida a questão é justamente entender que ela deixou de ter a letra “l” minúscula em seu início, para se tornar maiúscula na ideia atual, o que não aconteceu na América saxônica”, comenta Ricupero.
Foi no poema Las dos Américas, do colombiano José Caicedo, escrito em Veneza, na Itália, e lido em Paris, que o termo “América Latina” apareceu pela primeira vez em uma obra literária, meses depois de ser usado em um discurso do chileno Francisco Bilbao em uma conferência na capital francesa, ambos em 1856.
Caicedo era jornalista, escritor, diplomata, poeta e político, enquanto Bilbao havia sido discípulo de um padre que escreveu um dos primeiros trabalhos da chamada “Teoria da Libertação” — quando do envio de Maximiliano ao México, ele chegou a defender uma aproximação entre as Américas saxônica e latina.
Em La iniciativa de la América, Bilbao retomava um discurso de Simón Bolívar em tom pessimista sobre a união das nações americanas, mas que lhe servia para argumentar sobre a existência de uma “raça” latino-americana diferente daquela que habitava o Norte.
Tanto Bilbao quanto Caicedo acreditavam que, depois das independências nacionais da América, a evolução seguinte seria a unidade da região baseada no princípio da “liberdade”. Eles rejeitavam os modelos eslavo e estadunidense de governo, que consideravam “déspotas”.
Bilbao, ao falar dos Estados Unidos, não negava certa admiração pela forma como o país havia sido construído: com grandeza e com apoio dos imigrantes “enérgicos” da Europa, enquanto as repúblicas do Sul tinham sido marcadas pela obediência oriunda da Contrarreforma da Igreja Católica face aos protestantes. No entanto, seu argumento era que a América Latina era mais espirituosa do que a saxônica, tendo como prova definitiva a abolição da escravidão que estava em curso no continente e era vigente ainda nos EUA.
Caicedo, por sua vez, defendia que a união dos latino-americanos era uma arma contra a expansão da América do Norte. Ele via os Estados Unidos como uma “gigante república” que observava as demais como “anãs” e cuja única ligação possível era comercial.
O Brasil fora da América Latina. Para o professor da USP, os textos de Caicedo e Bilbao já escancaram um dilema que os brasileiros notam até hoje: a ausência do país como parte dessa América Latina. Bilbao, por exemplo, ignorou o império e o próprio povo do Brasil ao dizer que “um continente dominado tão somente por duas raças, com dois idiomas, com apenas duas religiões e uma forma política” que, no caso, era a república.
Além do mais, no argumento da escravidão de Bilbao, há outro “esquecimento”: o Brasil só aboliu a instituição em 1888, enquanto as repúblicas espanholas na América já haviam abolido o mercado negreiro anos antes. “O lugar do Brasil era muito complicado nessas primeiras ideias de América Latina e, como a gente vê, é até hoje”, finaliza Ricupero.