A Venezuela voltou no tempo
Sociedade

A Venezuela voltou no tempo

Crise econômica sufocante e racionamento de energia obrigam venezuelanos a produzir itens básicos em casa, como sabão, ou a passar parte do dia em filas

em 17/08/2016 • 11h45
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A crise econômica trouxe mais do que um tremendo impacto aos bolsos dos venezuelanos. Fez o país dono da maior reserva de petróleo do mundo parar no tempo. Obrigou o frenesi do relógio falar baixo. Desacelerou o ritmo que Caracas e capitais de outros estados outrora tiveram. Na terceira vez em que viajo ao país, a percepção é de que ele está estancado – ou pior, voltando no tempo.

A pouco mais de 250 km da capital, muitos chavistas no Estado de Cojedes, autoproclamado invicto por nunca ter perdido uma eleição para a oposição, tentam me convencer de que há um aprendizado importante para além da lição de macroeconômica que o país aprendeu com a crise decorrente também da queda do preço do barril de petróleo, commodity que corresponde a 95% das exportações venezuelanas.

“A crise econômica tem um lado bom. Veja, agora fabricamos nosso próprio sabão”, orgulha-se em dizer Marbélia Lopez, de 40 anos, dentro de uma casa modesta cuja fachada ostenta em letras azuis e vermelhas Las Margaritas II e que serve como central na cidade de San Carlos tanto dos programas sociais quanto dos chamados Claps (Comitês Locais de Abastecimento e Produção) do governo.

“Hoje somos independentes”, comemora ao soltar um “Viva Chávez!” e erguer uma das mãos que carregam duas garrafas pet com desinfetante e detergente, que mais tarde serão vendidos a modestos 70 bolívares (7 dólares no mercado oficial e cerca de 0,07 centavos de dólares no paralelo).  O próximo passo dos moradores que organizam a produção naquele bairro é a fabricação de uniformes para as crianças irem à escola.

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Não muito longe dali, em uma escassa horta comunitária que fornece orgânicos para o café e restaurante do Instituto de Cultura do Estado de Cojedes, uma simpática jovem que trabalha como assessora do Partido Socialista Unido da Venezuela (PSUV) conta que a escassez à qual o governo atribui à “guerra econômica” do setor privado, que por sua vez fala em incompetência do chavismo, causou um despertar de consciência nos venezuelanos.

'Um dia Maduro disse que poderíamos combater a falta de medicamentos plantando ervas medicinais. O resultado está aí', diz apontando para mudas de lavanda, arruda e moringa (folha cujo chá promete energia e melhora do sistema imunológico), dentre alguns pés de alface e limão.

A autoprodução como forma de enfrentar a crise e combater empresas do setor privado é visto por muitos chavistas como sinônimo de independência. Ainda em San Carlos, um terreno coberto com lona é destacado para a produção de cimento e tijolos destinado à construção de casas com verba proveniente do programa habitacional Gran Misión Vivienda Venezuela, inspirado no programa brasileiro Minha Casa Minha Vida. Com a produção diária de tijolos necessários para uma casa, em um ano conseguem atingir o suficiente  para 300 moradias, que são construídas por quem está desempregado ou vive de bico.

No Estado vizinho de Carabobo, a fábrica expropriada que antes produzia mensalmente para supermercados dezenas de produtos de comida congelada e mais de 6 mil litros de concentrado de frutas, com um arsenal de 85 funcionários, hoje entrega 2 mil litros para comunas (grupos baseados em uma organização política popular) locais. A produção de comida diminuiu drasticamente, a de concentrado para sucos caiu a um terço, e a explicação repousa no quadro de 33 funcionários hoje e um racionamento de 3 horas diárias de energia. Com câmaras frias desligadas e um vazio retumbante nos corredores e salas da fábrica, a impressão é de que tudo está parado. Até mesmo o relógio, que marca 18h22 em uma tarde ensolarada às 16h30.

foto por: Yan Boechat
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Fábrica em Carabobo de alimentos e sucos está praticamente parada: reduziu os funcionários de 85 para 33 e enfrenta 3 horas diárias sem energia elétrica

A sensação de que o país exerce hoje uma vida praticamente feudal ou uma rotina marcada não pelo ritmo do relógio, mas pela busca de artigos de primeira necessidade, leva muitos venezuelanos a se frustrarem diante de uma dificuldade imensa para a realização das mais simples tarefas.

Em Caracas, Rafael Yomavith, de 23 anos, chega irritado da peregrinação pelas filas em uma quarta-feira, fim de tarde. Com o cansaço expresso nas olheiras decorrentes do sono interrompido pela urgência das filas em busca de produtos como farinha e açúcar, o pai de Valentina, de 4 anos, conta ter saído de casa ainda de madrugada. Ficou na primeira fila das 5h até chegar a sua vez e tudo ter acabado. Foi para uma segunda, de onde saiu às 16h. Buscava itens da cesta básica, acabou voltando com um pote de maionese.

Ele me explica que está cansado e só pensa no dia em que tudo mudar na Venezuela que floresceu com Chávez entre 1999 e 2013, mas agora vive a pior crise de sua história. “Nunca votei na vida e agora tenho ainda menos vontade. O povo passa fome, isso não acontecia antes”, conta o jovem que consegue se embrenhar pelas filas porque atualmente está desempregado. “Como um patrão me liberaria para eu ficar um dia todo fora?”.

Sobrevivente das enchentes de 2010 que afetaram mais de 100 mil pessoas, ele recebeu há três anos do governo um apartamento no Edifício Libertador II, região central de Caracas. Lá vive com a filha, a irmã Sarita, de 12 anos, e a mãe Teresa, de 61 anos, para quem o filho reclama muito. “Ele fala assim porque nasceu em Caracas e está acostumado com o bom. Eu vim do campo, onde minha vida sempre foi muito mais difícil.”

A vida marcada por um cotidiano cheio de obstáculos parece ter chegado também à cidade. Em Petare, Eucario Guillarte, porta-voz da Comuna Rogelio Castillo Gamarra, tenta amenizar a dureza da rotina ao transmitir uma mensagem de otimismo aos membros dos 36 conselhos comunais que representa na maior favela da América Latina.

“O governo pede um esforço para que todos produzam ao menos um produto em casa, que seja autossuficiente em ao menos um produto, como tomate”, observa entusiasmado o chavista de 57 anos, enquanto me mostra manuais de agricultura familiar e cultivo de plantas medicinais, utilizados nas reuniões da comunidade. “A crise nos leva a outros caminhos. Há que se adaptar e criar coisas novas.”

Criatividade e também perseverança. Serão essas as armas necessárias para que o país hoje tão miserável quanto Cuba no início dos anos 1990 (quando da derrocada da aliada União Soviética), volte a respirar um pouco da bonança advinda da alta do preço do petróleo, que regalou à Venezuela 856,4 bilhões de dólares entre 1999 e 2014, a era de ouro do chavismo.

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