Eleições e crise na Venezuela
Análise

Eleições e crise na Venezuela

Para o sociólogo Edgardo Lander, problema do país é estrutural, pois tem relação com o modelo petroleiro; nesta entrevista, ele fala o que pode mudar com o pleito de domingo

em 03/12/2015 • 19h41
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As eleições parlamentares de domingo (6) na Venezuela – que indicam que o partido de Nicolás Maduro perderá cadeiras na Assembleia Nacional – podem complicar a governabilidade do país e ampliar a crise econômica. Esta é a opinião de Edgardo Lander, um dos mais respeitados intelectuais venezuelanos.  “Passaríamos a uma situação de dualidade do poder em que o presidente controla a maior parte das instituições, mas a atividade parlamentar ficaria a cargo da oposição. Isso complicaria a situação econômica. A capacidade de construir políticas públicas em resposta à crise econômica seria mais difícil, porque tantos anos de polarização ocultam os diálogos e acordos”, diz o sociólogo formado em Harvard e professor aposentado da Universidade Central da Venezuela (UCV), que, atualmente, é pesquisador do Transnational Institute – um think tank internacional de políticas progressistas.

Em meados de agosto, Lander concedeu uma entrevista para a revista venezuelana Contrapunto e disse temer que a violência política se agravasse no país dependendo do resultado eleitoral. E, de fato, as recentes ameaças do presidente Nicolás Maduro são um sinal de que, infelizmente, Lander pode ter razão. O Partido Socialista Unido da Venezuela (PSUV), de Maduro, divulgou na quarta-feira uma nota afirmando que a única forma de haver paz após a eleição é com a “vitória do socialismo”.

Nesta entrevista concedida à Calle2 por e-mail, o sociólogo evitou falar de violência política – ele preferiu fazer uma análise profunda sobre os reais motivos da crise econômica na Venezuela. “Esta é uma crise que vem se acumulando durante décadas”.

Para ele, a origem do problema está no modelo extrativista da economia – a Venezuela exporta petróleo e importa praticamente tudo o que necessita. O problema, na visão de Lander, é que este modelo está tão arraigado que, nas últimas eleições presidenciais, tanto governo quanto oposição prometeram dobrar a produção de petróleo no país. “Na medida em que não se questiona o fato de a Venezuela ser um país petroleiro, os outros temas são debates parciais e incompletos.”

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O que o senhor espera das eleições parlamentares de 6 de dezembro?

Em relação ao âmbito do processo eleitoral, na condição de cidadão venezuelano, creio que ele seja extremamente confiável. Há um sistema automatizado, com mecanismos múltiplos de controle. Em todo o território nacional, foram realizados ensaios eleitorais com a participação de todos os atores políticos e não se encontrou nenhum problema nos softwares, nas máquinas ou de transmissão. Sob o ponto de vista da confiabilidade, não se espera qualquer problema para o dia das eleições. As pesquisas indicam que o mais provável seja uma vitória da oposição. Se isso ocorrer, vai significar uma mudança política importante, pois a oposição passaria a controlar o parlamento. Passaríamos a uma situação de dualidade do poder em que, por uma parte, em um Estado presidencialista, o presidente controla a maior parte das instituições, mas a atividade parlamentar ficaria a cargo da oposição. Isso complicaria a situação econômica. A capacidade de construir políticas públicas em resposta à crise econômica seria mais difícil, porque tantos anos de polarização ocultam os diálogos e acordos.

Como vê os efeitos da polarização na capacidade de reflexão política da sociedade? Há uma perigosa fanatização da situação e oposição?

Quando há uma sociedade tão polarizada como a venezuelana, a tendência é tratar um assunto como branco ou preto, criar uma cultura política de amigo e inimigo. Isso complica os acordos e diálogos. Mas também contamina a produção político-intelectual, cercada por visões maniqueístas e esquemáticas sobre quem tem razão e quem não tem. Existe um consenso nacional, instalado no último século, segundo o qual o país é petroleiro e assim continuará sendo. No último programa eleitoral apresentado pelo presidente Nicolás Maduro, em sua candidatura presidencial, foi proposta a elevação da produção de petróleo dos atuais dois milhões de barris diários para seis milhões. Ao analisarmos o programa da oposição nas últimas eleições presidenciais, vemos diferenças bastante notórias em todos os campos. No entanto, quando se refere ao tema petroleiro, a oposição propõe exatamente o mesmo: duplicar a produção petroleira e elevá-la a seis milhões de barris. O tema estrutural fundamental da sociedade venezuelana, a questão da transição até uma sociedade pós-petroleira, tem a ver com sair do modelo econômico, com o processo de integração latino-americana e com o questionamento da cultura política. Tem a ver com a necessidade de reduzir o processo de destruição do planeta, com a queima de combustíveis fósseis. Na medida em que não se questiona o fato de a Venezuela ser um país petroleiro, os outros temas são debates parciais e incompletos.

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Lander critica tanto a oposição quanto o governo: ambos propõe dobrar a produção de petróleo quando deveriam propor uma substituição do modelo

Recentemente, o senhor comentou, em uma entrevista, que o cidadão venezuelano não tem a correta percepção da gravidade da crise política e econômica que acomete a nação. Por quê?

O venezuelano não tem real dimensão da crise porque há uma visão como se fosse algo conjuntural. Não há um reconhecimento amplo de que nos encontramos diante de uma crise estrutural, histórica, e que tem ligação com a exaustão do modelo petroleiro rentista [termo usado na política para designar países que se baseiam na renda gerada por atividades extrativistas, como o petróleo]. A Venezuela tem 100 anos de indústria petroleira. São 100 anos em que um modelo econômico vem se conformando em um modelo de sociedade. Me refiro não só ao fato de que a maior parte da economia depende das receitas do petróleo, mas também a padrões culturais associados à noção de um país rico, de um país cujo Estado tem recursos para resolver problemas. Esse padrão econômico significa, historicamente, uma sobrevalorização da moeda. E essa sobrevalorização ocorre devido ao maciço ingresso de divisas.

No último século, na Venezuela, tem sido mais barato importar do que produzir internamente. Isso causa profundas distorções, pois vai acentuando a dependência das importações. Durante esses anos de governo bolivariano, produziu-se um incremento significativo do consumo, como consequência das políticas redistributivas e sociais do governo, mas ele não tem sido acompanhado pelo aumento da capacidade produtiva nacional.

Portanto, a dependência das importações tem se acentuado. Nos últimos anos, o petróleo responde por 96% do total das exportações do país. Atualmente, tomando como medida o dólar paralelo, do mercado ilegal, na Venezuela se pode comprar 800 litros de gasolina por um dólar. Isso gera um colapso no preço do petróleo. Desde a década de 80, as receitas do petróleo per capita têm se reduzido de forma contínua. Isso faz com que a capacidade das grandes receitas petroleiras para responderem ao conjunto da sociedade venha se deteriorando há um tempo e se constituindo numa crise estrutural, pois não se pensou em opções reais de transição até um modelo não petroleiro.

Então, existe uma relação direta entre a crise política e econômica e a queda no preço do petróleo?

Há uma relação direta, que simplesmente destaca e confirma a inviabilidade deste modelo rentista petroleiro. Esta é uma crise que vem se acumulando durante décadas. É uma crise estrutural, ainda que se aumentasse o preço do petróleo, e ele voltasse a chegar a US$ 110 o barril, a crise do padrão rentista venezuelano não seria superada. Os preços baixos do petróleo apenas confirmam a inviabilidade do modelo produtivo, mas não são a causa. Trata-se de uma causa estrutural que vem de décadas.

Quais são os indicadores mais plausíveis da gravidade da crise que se abate sobre a Venezuela?

Neste momento, existe uma percepção muito ampla de que há crises em diferentes âmbitos da vida coletiva. Do ponto de vista fiscal, há uma situação bastante séria, porque os gastos públicos previstos não podem ser levados a cabo. A redução desse gasto implica em desaceleração da economia. Neste ano, com toda certeza, haverá uma redução do PIB (Produto Interno Bruto).  As limitações fiscais levam à emissão de dinheiro, acelerando os processos inflacionários. Por um lado, há um subsídio absolutamente massivo sobre a gasolina. Por outro lado, isso gera situações como a relação com a fronteira colombiana, onde se registram enormes contrabandos, pelo fato do preço da gasolina na Venezuela ser muito menor do que na Colômbia. É difícil que haja controle capaz de impedir a massiva saída de produtos. Há esta combinação de escassez e inflação. Há também o que na Venezuela se chama de bachaqueo, que é a compra de produtos subsidiados para depois revendê-los a preços muito mais altos. Esta é uma atividade que se proliferou nos últimos dois anos. Há milhares de pessoas que lucram com esse processo, desde máfias organizadas até especuladores ou vendedores ambulantes que compram os produtos para revendê-los nas ruas.

O chavismo ainda vive enquanto ideologia política na Venezuela?

A experiência de organização, de participação popular no processo de empoderamento, a ampla gama de organizações sociais – conselhos comunitários de água; conselhos comunais; comunas; as 20 modalidades de organização urbana, etc – têm mostrado que os setores populares da Venezuela têm vivido uma experiência de dignificação. Não apenas na melhoria do acesso à saúde e à educação, mas na transformação cultural de alta capacidade para responder à situações de sua comunidade. Isso não se apaga de um dia para o outro. A crise, obviamente, se reflete no Estado.

A deterioração das finanças públicas indicou um retrocesso nas conquistas sociais obtidas nos últimos anos.

Mas não imagino que todas essas experiências vão simplesmente desaparecer. Na organização popular, há uma contradição, uma tensão entre a verticalidade estadista e a autonomia da organização social.

Diante desta contradição entre a tentativa de Chávez de mobilizar a sociedade e o Estado vertical e militarizado, podemos dizer que o modelo chavista fracassou?

Eu não apontaria um fracasso, mas citaria as contradições, as tensões entre processos organizacionais populares e trabalhistas, que conservam uma dinâmica efetivamente democrática e participativa. Como consequência da crise,  elas tendem a se perder. De toda a maneira, a dependência da distribuição da renda petroleira fez com que essa dinâmica representativa tenha avançado bastante no campo político, mas muito pouco no terreno econômico.

Durante os governos de Chávez, houve uma lógica militar marcada pelas milícias bolivarianas, calcadas no enfrentamento do imperialismo. Essa ideologia se enfraqueceu com Maduro?

Eu creio que é preciso olhar com cuidado essa ideia das milícias. Como tantas coisas na Venezuela nos últimos anos, as milícias têm sido mais um discurso político do que uma realidade. Não houve, efetivamente, uma organização ampla e massiva de milícias populares. Isso está mais no imaginário de alguns discursos do governo, mas, sobretudo, uma visão panorâmica da direita. Eu me preocupo muito mais com a presença da instituição militar formal, de militares e de generais em cargos públicos. Isso causa, no seio da democracia, uma tensão e uma contradição muito fortes. A cultura militar é hierárquica, vertical e de obediência. À medida que tem havido uma presença militar nas gestões do Estado, isso tem sido um dos fatores que causou a limitação do exercício da democracia representativa.

Há semelhanças da cena política e da polarização entre a Venezuela e o Brasil?

Eu creio que elas são bastante diferentes. O Brasil é um país mais complexo, não apenas com uma economia mais forte e heterogênea. Acho que há algumas coisas que podemos entender como temas comuns. Uma delas é o debate sobre o fim do ciclo do mundo das commodities. Isso tem a ver com o fato de que nenhum país latino-americano denominado progressista utilizou os imensos recursos provenientes da exportação de bens primários a preços altíssimos para começar a transição para outro modelo produtivo. Em cada um dos países, as rendas provenientes da venda de commodities foram reinvestidas em uma importante proporção, em acentuar este modelo. Inclusive o país mais industrializado da América do Sul, que tem sido historicamente o Brasil, tem sofrido processos de desindustrialização relativa, porque o setor agropecuário exportador tem crescido em relação aos outros setores. O Estado tem mostrado uma crescente capacidade para levar a cabo políticas públicas e sociais voltadas à família, para reduzir a pobreza etc., mas não se produziu alterações na estrutura do processo produtivo. Não se acentuado o processo de integração continental, como poderia seria possível. Acentuou-se a exportação de commodities.

Existem simpatias ideológicas entre os governos do Brasil e da Venezuela, mas houve crise diplomática entre as duas nações, no que se refere ao acompanhamento das eleições. Como o senhor vê isso?

Não creio que esse assunto seja transcendente. O que afeta as relações e a solidariedade entre governos progressistas é a debilidade desses governos. Em anos anteriores, esses governos contavam com maiores recursos econômicos e os níveis de legitimidade política eram maiores. A possibilidade de se desenvolver políticas internacionais e latino-americanas de maior convergência, como a criação da Unasul [União de Nações Sul-Americanas] e da Celac [Comunidade de Estados Latino-Americanos e Caribenhos] – iniciativas políticas autônomas em relação ao poder central –, era maior.

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