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Análise

Venezuela: a crise econômica em duas faces

De um lado, analistas dizem que o caos da economia é consequência dos interesses privados de empresários e oligopólios. De outro, críticos dizem que Maduro conseguiu destruir a PDVSA

em 26/03/2019 • 01h42
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A Venezuela viu 2,3 milhões de cidadãos abandonarem o país nos últimos anos, segundo a Organização das Nações Unidas (ONU) — o número representa 7% do total da população de 2015. Considerando apenas os aspectos econômicos, eles foram motivados pela crise de abastecimento; pela desvalorização do bolívar, a moeda nacional, em relação ao dólar; e pela hiperinflação em níveis estratosféricos.

Há várias explicações e percepções distintas sobre o que gerou e mantém até agora a crise econômica venezuelana — assim como suas consequências políticas e sociais, mas todas giram em torno da queda da produção e dos valores internacionais do petróleo, o principal ativo do país.

Em julho de 2008, o barril de petróleo custava US$ 143,6 (R$ 560,41 na cotação de março de 2019) no mercado internacional. Cinco meses depois, o preço caiu para US$ 37,04 (R$ 141,40) e nunca mais recuperou os valores anteriores. Chegou a ultrapassar a barreira dos US$ 120 em 2011, mas passou por um momento de queda significativa em 2016, quando, em fevereiro daquele ano, era negociado por US$ 29,64 (R$ 113,15). O barril de petróleo fechou a semana passada cotado na Bolsa de Valores de Nova York a US$ 58,43 (R$ 223).

A Venezuela possui uma das maiores reservas de petróleo do mundo, mas, por ser a sua única matéria-prima de exportação, a redução do ritmo produtivo sempre significa crise. Segundo a Organização dos Países Exportadores de Petróleo (OPEC), em 1999, quando o então comandante do exército Hugo Chávez Frias foi eleito presidente, o país produzia cerca de 3,25 milhões de barris diariamente (US$ 25,01 por barril à época). Em 2013, ano da sua morte e da chegada de seu então vice, Nicolás Maduro, ao poder, a produção tinha caído para pouco menos de 2,50 milhões de barris (US$ 102,2 por barril) — hoje, a Venezuela produz aproximadamente um milhão de barris de petróleo por dia.

Desde que Maduro assumiu o poder, a economia não para de ser impactada: segundo o Banco Central do país, nos últimos dois anos a queda do Produto Interno Bruto (PIB) já soma -30% (-15% em 2017 e -15% em 2018). Entre 2004 e 2008, auge do governo de Chávez, de sua influência sobre a América Latina e da economia venezuelana, a nação caribenha chegou a superar os 15% de crescimento econômico (em 2004, chegou a 18%). Mesmo em 2012, um ano antes da morte do ex-presidente, a Venezuela cresceu 5%.

Além disso, o país não consegue romper com o grande abismo entre as pessoas que possuem dólares e as que só têm bolívares para comprar mercadorias. O dólar é a referência (única, neste momento) para resistir à crise, porque seu valor sobe diariamente em relação ao dinheiro local. De acordo com a agência Bloomberg, a moeda nacional saiu de uma quase paridade com o dinheiro do mercado internacional no começo de 2018 para ser cotado 1,6 mil vezes menos que o dólar (1.600 bolívares = US$ 1) agora.

Como consequência, o país vive um dos piores episódios de hiperinflação registrados no mundo desde que a Segunda Guerra Mundial acabou. Esse fenômeno econômico gera um aumento rápido no nível dos preços das mercadorias, além de diminuir as mudanças de valores no tempo, fazendo com que o dinheiro desvalorize em curtos períodos.

A introdução de uma nova moeda, o bolívar soberano, em agosto passado, que tirou cinco zeros da moeda antiga, o bolívar forte, não foi suficiente para conter o problema. Estimativas da agência britânica Reuters indicam que a inflação anual, ainda que alta desde antes da chegada de Chávez ao poder, explodiu depois de sua morte, em 2013: naquele ano, ela ficou em quase 60% — número baixo se comparado com os 1.300.000% do final de 2018. A taxa não cai porque o governo precisa imprimir cada vez mais dinheiro para pagar as dívidas e financiar os programas sociais.

O resultado é que tudo fica muito caro: dos alimentos às contas domésticas. No final do ano passado, os preços duplicavam, em média, a cada 19 dias, de acordo com a Assembleia Nacional Constituinte, liderada pela oposição.

As consequências políticas apareceram nos últimos meses: no início de fevereiro, a Espanha, a França, o Reino Unido lideraram outros países da União Europeia no reconhecimento do então deputado Juan Gerardo Guaidó Márquez, de 35 anos, como governante interino do país sul-americano. O Brasil, a Colômbia, o Peru, o Equador, o Canadá, além dos Estados Unidos, já haviam assumido essa postura em janeiro, quando, durante um ato contra Maduro em Caracas, Guaidó se auto-proclamou presidente temporário diante de uma multidão de opositores.

A grande contenda política entre Guaidó e Maduro aconteceu no mês seguinte, quando o governo chavista impediu a entrada de uma suposta ajuda humanitária internacional enviada pelos Estados Unidos para a cidade fronteiriça de Cúcuta, na Colômbia. O Brasil tentou fazer o mesmo a partir de Pacaraima, em Roraima, mas apenas um dos veículos enviados pelo governo federal cruzou o limite entre os países — a tensão aumentou quando Maduro ordenou que as bordas venezuelanas com o estado brasileiro fossem patrulhadas pelo exército.

As várias visões sobre as motivações e consequências da crise na Venezuela podem ser resumidas, de modo amplo, em duas vertentes: os que afirmam, ao lado do presidente Maduro e de sua equipe de governo, que o país enfrenta uma guerra econômica perpetrada pela oposição apoiada pelos Estados Unidos e pelas potências globais, e os que, de outro lado, dizem que a corrupção na PDVSA, a estatal de petróleo, e os desmandos autoritários aliados à incompetência do presidente levam a Venezuela ao caos econômico.

As visões da crise: a guerra econômica da burguesia. O economista espanhol Eduardo Garzón, professor da Universidad Autónoma de Madrid, autor do livro Desmontando los mitos económicos de la derecha: Guía para que no te la den con queso (2017) e assessor informal do partido de esquerda espanhol Podemos, é um dos adeptos à ideia de guerra econômica por parte da burguesia venezuelana.

Segundo ele, o grande erro dos observadores internacionais em relação à crise é que eles não levam em conta as particularidades da economia venezuelana. A questão da inflação, de acordo com Garzón, é um dos erros frequentes dos economistas europeus que analisam a situação atual da Venezuela: ao contrário do que acontece no Velho Continente, ela é uma característica usual da economia do país sul-americano desde a década de 1980, porque nenhum governo conseguiu (ou quis) romper com uma estrutura em que grandes grupos oligopólicos com poder de mercado controlavam determinados setores, em que o Estado era incapaz de intervir em áreas dominadas por empresários e em que a corrupção e a assimetria de poder nas relações entre os centros de trabalho davam o tom das relações econômicas.

A crise na Venezuela, segundo Garzón, também se explica pelo fato da chamada “Revolução Bolivariana” sempre ter representado uma ameaça aos privilégios da elite do país. Na sua análise, a nacionalização e a retomada do controle de boa parte dos setores produtivos (especialmente o do hidrocarbonetos), assim como a iniciativa de distribuir a renda de forma mais equitativa, significaram um duro golpe à estrutura e à riqueza do establishment burguês venezuelano — que agora está por trás das tentativas desenfreadas de derrubar o presidente para recuperar seus privilégios de outrora.

“São exemplos paradigmáticos dessa postura o fracasso do golpe de 2002, a greve petroleira entre 2002 e 2003, os protestos armados, o desabastecimento seletivo e programado de determinados produtos justo antes de comícios eleitorais e a má imagem que eles difundem, por meio dos poderes midiático que possuem dentro e fora da Venezuela”, explica o economista, adicionando que as decisões editoriais recentes de jornais internacionais — como a Folha de S. Paulo, no Brasil — de chamar Maduro de “ditador” é parte desse processo de convencimento que a burguesia venezuelana quer empreender fora do país.

“Nada disso é novo: os grupos de poder utilizaram estratégias parecidas no Chile de [Salvador] Allende nos anos 1970 e na Nicarágua nos anos 1980, para dar apenas dois exemplos”, completa.

Para Garzón, ainda existe uma terceira explicação para a crise econômica no país sul-americano, com a qual concordam a maioria das análises: a Venezuela não possui um setor produtivo diversificado, mas, ao contrário, tem uma economia concentrada em ramos do setor primário e pequenos setores industriais e de serviços de baixo e médio valor agregado. Dessa forma, os venezuelanos precisam importar quase tudo o que consomem. O petróleo, que representa 95% de todos os dólares que entram no país, acaba por tornar a população refém da moeda internacional. “Quando os preços dos barris caíram, em 2014, houve uma ruptura na entrada de dólares que, por sua vez, impactou as importações e o desabastecimento e encarecimento dos produtos no mercado interno”, explica.

O sociólogo português Boaventura de Sousa Santos, professor da Universidade de Coimbra, é outro intelectual inserido na teoria da guerra econômica. Ele adiciona à análise de Garzón que a “grave crise humanitária” na Venezuela é culpa dos Estados Unidos que, em agosto de 2017, colocaram um embargo econômico, financeiro e comercial sobre o país sul-americano, impedindo que o governo venezuelano faça transações com títulos da dívida pública e com ações emitidas pelo Estado e pela PDVSA. O bloqueio, anunciado pelo presidente estadunidense, Donald Trump, ainda não permite que Maduro receba dividendos que tem direito do mercado internacional.

“As sanções impostas pelos EUA são das mais rigorosas e das mais radicais até agora. Muitos países que negociam com a Venezuela têm medo das sanções impostas pelos EUA, como é o caso da Índia, segundo maior cliente do petróleo venezuelano depois dos Estados Unidos”, analisou ele em um vídeo publicado no Brasil pela editora Boitempo.

Boaventura, que admite ser a favor da convocação de eleições gerais na Venezuela como medida de contenção da crise política consequente do caos econômico, também critica a postura dúbia dos Estados Unidos e da União Europeia com relação ao Irã, por exemplo, que expressa, em sua análise, a força dos interesses econômicos em jogo no conflito retórico presente.

“A União Europeia perdeu a vergonha: ela não quer impor sanções [à Venezuela], mas por outro lado reconhece Guaidó. Além disso, na recente Conferência de Varsóvia, que existe praticamente para planejar a próxima guerra, que será contra o Irã, o único país que, depois da Venezuela, que pode oferecer alguma resistência aos EUA, a UE disse à delegação estadunidense que era preciso respeitar os tratados celebrado pela ONU. Como a UE pode invocar o direito internacional para não intervir na crise do Irã e ao mesmo tempo, deitar o direito internacional porta afora para reconhecer Guaidó? (…) Essa incoerência acontece porque a UE quer manter sua ligação com o Irã pelo petróleo, que é fundamental para a Europa, mas, no caso da Venezuela, não há problema, porque ela não depende do mineral venezuelano. A lógica pelo acesso aos recursos naturais é a mesma”, explicou.

As visões da crise: a premeditação e incompetência de Maduro. Do outro lado do espectro, o cientista político estadunidense Javier Corrales, professor do Amherst College, em Massachusetts (EUA), é uma das vozes mais ouvidas pelos meios de imprensa dos EUA com relação à Venezuela (seus pais são venezuelanos). Autor de vários livros sobre o governo do país e sobre o período chavista, ele defende que a crise econômica atual faz parte dos planos de Maduro.

Para ele, isso pode ser visto na indiferença do governo diante dos indicadores econômicos anormais, como a gigantesca taxa de inflação e a sua consequente distribuição “insignificante” de recursos estatais. Corrales diz que a principal resposta de Miraflores (sede presidencial da Venezuela, em Caracas), batizada de “paquete rojo” (“pacote vermelho”), não fez nada além de desvalorizar a moeda em cerca de 95%, renomear o dinheiro tirando cinco zeros e vincular o novo bolívar soberano a uma moeda (o petro) que não é trocável e, por isso, não é utilizada por ninguém. “Essas medidas são uma redecoração inútil”, vociferou em um artigo publicado no começo deste mês no jornal estadunidense New York Times.

O argumento de Corrales é que Maduro preferiu devastar a economia da Venezuela porque, com a miséria, a sociedade civil deixaria de resistir à ditadura imposta por ele. Dessa forma, todas as medidas tomadas pelo governo do país não seriam mais do que fachadas para manter o status quo da crise econômica, que já se arrasta há cinco anos. Para o professor, enfraquecer a ação coletiva é o grande objetivo dos chavistas para se manterem no poder, e é por isso não se pode culpar os antigos empresários nem a imprensa pela atual situação.

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Venezuelanos saem do país pela fronteira com o Brasil. Foto: Marcelo Camargo/Agência Brasil

“Quando as condições econômicas se deterioram, os cidadãos optam por protestar. No entanto, quando as condições econômicas caem a um nível em que as classes médias vivem com menos de US$ 2 ao mês (menos que no Haiti) e vivem perto de um estado de fome, a melhorar opção que elas possuem é sair do país ou se contentar. Se adicionamos a essa receita a repressão, o resultado é um êxodo de 7% da população. A privação econômica, aliada à repressão, muda os incentivos da participação política pelo exílio. É o que Maduro vê com bons olhos”, argumentou o cientista político.

Corrales ainda diz que a estratégia de Maduro serve para outro fim: acabar com o que restou do setor privado na Venezuela. A medida já teve êxitos quando o governo anunciou que seria o responsável pela distribuição de alimentos por meio dos “carnês da pátria”, em 2017, e que, segundo a oposição, só foi entregue aos apoiadores do governo. O presidente ainda decretou um aumento de 3.000% no salário mínimo, medida insuficiente para ajustar a relação entre a renda média e a inflação e que enforcou os pequenos empregadores e empresários que já estavam em apuros por causa da recessão. O controle de preços, a falta de dólares em circulação e os contínuos blecautes são expressões do controle estatal total tentado por Maduro. “Hoje, a indústria privada da Venezuela opera com 10% da capacidade que tinha vinte anos atrás, quando a ‘revolução’ começou. Até os McDonald’s estão fechando”, escreveu o professor.

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Venezuelanos saem do país pela fronteira com o Brasil. Foto: Marcelo Camargo/Agência Brasil

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