Análise

10 questões para entender a crise na Venezuela

A Calle2 entrevistou quatro analistas para entender, ponto a ponto, o que está acontecendo no país dono das maiores reservas de petróleo do mundo

em 23/08/2016 • 01h00
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Muitas incertezas e mitos rondam a Venezuela hoje. O país que passou por uma intensa transformação social e política nos primeiros anos do século XXI hoje vê sua economia em frangalhos e a população passando sufoco. Ainda que o aperto seja grande, o país está longe de poder ser comparado a um cenário pós-guerra ou de desastre natural, como muitos pensam ao ler as notícias sobre a Venezuela.

Informações como as de que venezuelanos estão comendo ração de cachorro, por exemplo, são falsas. Mas é verdade, por outro lado, que muitos deixam seus trabalhos formais com salários miseráveis para atuar como contrabandistas de itens de consumo básicos, em um mercado negro cada vez mais crescente e rentável (leia mais em “A Venezuela voltou no tempo”).

A Calle2 conversou com quatro analistas − Andrés Antillano, da Universidade Central da Venezuela, José Toro Hardy, ex-diretor da Petróleos de Venezuela S.A (PDVSA), Nicholas Watson, economista da consultoria Teneo Inteligence e Carlos Miguel Álvarez, da Ecoanalítica – para você entender, em dez pontos, o que está acontecendo com o país.

Como a Venezuela chegou a esse ponto se é o país com as maiores reservas de petróleo do mundo?

Desde 2014, o preço do petróleo, principal produto da Venezuela que corresponde a 95% de suas exportações, caiu drasticamente. O impacto levou o país dono das maiores reservas da commodity no mundo a sentir sua receita diminuir 40% neste ano. Os dólares que hoje o país possui são utilizados para o pagamento da dívida externa, dificultando a importação de itens de primeira necessidade e o pouco estímulo dado à produção interna. Soma-se ao quadro crítico uma seca causada pela falta de chuvas que prejudica a geração de energia hidrelétrica, piorando a produtividade do país.

“A situação crítica é resultado de um fracasso político no que diz respeito ao enfrentamento de grandes distorções na economia nunca corrigidos: excesso de dependência em relação ao petróleo, moeda sobrevalorizada, controles de capital e preço, instabilidade contratual, corrupção massiva e incompetência gerencial nos principais setores da economia”, avalia Nicholas Watson, economista da consultoria Teneo Inteligence.

Para Carlos Miguel Álvarez, da Ecoanalítica, a crise atual é a pior da história da Venezuela e tem origem no modelo econômico que começou a implementar Chávez quando chegou ao poder, em 1999. “Trata-se de uma dinâmica que depende do gasto público como motor para impulsionar o crescimento econômico. O governo acabou gastando mais do que ingressava, e em 2012 já começamos a ver decrescimento”, observa.

Por que o país, que ganhou U$ 856,4 bilhões com a exportação de petróleo entre 1999 e 2014, hoje enfrenta escassez?

Há diversas razões. Uma delas diz respeito à dependência cada vez maior em relação às exportações petroleiras, o que acaba favorecendo a importação de itens de primeira necessidade – de farinha e arroz a pasta de dente e papel higiênico – em vez de produzi-los internamente.

“A indústria venezuelana hoje produz muito menos do que a sua capacidade”, afirma Álvarez, retomando cifras do Banco Central da Venezuela que falam de um decréscimo de 6,8% da atividade manufatureira em 2015, impulsionada pela queda de 7,45% dessa atividade no setor privado.

Atores do setor privado afirmam que os osbstáculos são a escassez de matéria prima, a falta de divisas, o controle de preços (que fazem, muitas vezes, o valor de venda ser menor que o custo de produção), o racionamento de energia e a incerteza política.

Outra dinâmica que ajudou a contribuir para a queda da produção do setor privado foi a prática de expropriação de indústrias. No ano passado, por exemplo, diretores da Farmatodo foram presos, e o presidente Nicolás Maduro expropriou algumas unidades produtivas.

Para José Toro Hardy, ex-diretor da Petróleos de Venezuela S.A (PDVSA), o governo deveria ter focado em uma mudança de modelo econômico para que pudesse aproveitar o boom de ingressos petroleiros. “Em vez de utilizar os recursos para uma mudança qualitativa da economia, diversificada e autossustentável, preferiu uma política distributivista de proporções épicas”, contesta. “Agora não há receita proveniente do petróleo para importar nada, e o aparato produtivo está em ruínas.”

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Até que ponto a morte de Chávez tem a ver com a crise atual?

Desde que Chávez morreu, em março de 2013, o governo perde força e vê opositores cada vez mais unidos ganharem espaço. Em dezembro, a oposição venceu as eleições legislativas, conquistando a maior parte dos assentos na Assembleia Nacional. Para Andrés Antillano, analista da Universidade Central da Venezuela, a morte de Chávez expõe uma debilidade de liderança no chavismo. “Há dificuldades para manter um marco frente a uma direita nacionalista e uma esquerda radical com setores populares mobilizados, o que não acontecia com Chávez”, explica.

Por que a inflação na Venezuela está tão alta?

Tendo como prioridade preservar as reservas do Banco Central para o pagamento da dívida externa, o governo hoje possui menos dinheiro para importar produtos básicos. Estima-se que a taxa de inflação chegue a 500% neste ano e atinja 1.600% em 2017. Para diminuir o impacto disso na vida da população, o governo buscou aumentar os salários e imprimir mais bolívares − receita para gerar ainda mais inflação, em um processo de desvalorização da moeda venezuelana.

Soma-se a isso a tentativa do Estado em segurar artificialmente a taxa de câmbio, de maneira insustentável, segundo economistas. Enquanto a taxa de câmbio oficial é de 10 bolívares por dólar, no mercado negro 1 dólar vale cerca de 1.100 bolívares.

Uma desvalorização da moeda, no entanto, levaria a uma explosão nos preços em supermercados e lojas estatais, agravando ainda mais a situação econômica de muitos venezuelanos que dependem dos subsídios governamentais para sobreviver.

Como a população é atingida no dia a dia pela crise?

É raro encontrar um venezuelano que não passe um dia da semana em filas de supermercados e farmácias. Em busca de produtos básicos cujos preços são regulados pelo governo, muitos chegam às filas por volta das 2h da manhã para conseguir comprar itens como fraldas, farinha, açúcar e xampu doze horas depois. Como o tempo gasto em filas tem levado muitos venezuelanos a se frustrar e os alimentos subsidiados têm sido vendidos a preços muito menores do que valem, surge uma intensa atividade de contrabando desses produtos a preços até 1.600% maiores do que os controlados pelo Estado. A esses contrabandistas se dá o nome de bachaqueros.

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O que são bachaqueros e por que eles cresceram tanto nos últimos meses?

Os bachaqueros são chamados assim por causa da palavra bachaco, formiga tanajura que corta pedaços de folhas para trazer para seus ninhos. Hoje, observa Antillano, com um quadro marcado pelo preço de consumo controlado, o bolívar artificialmente valorizado e um salário mínimo de 15 mil bolívares (o que no câmbio oficial seriam US$ 1,5 mil, mas no mercado negro significam US$ 15), desviar dólares e itens básicos para revendê-los no mercado negro é tentador.

Segundo Álvarez, os bachaqueros são consequência do excesso de controle do Estado e poderiam ser corrigidos com a liberação dos preços. “Os controles de câmbio e de preços geraram uma destruição da produção nacional frente à queda do preço do petróleo, o que inviabiliza a substituição de produtos importados por aqueles produzidos na Venezuela”, observa. Pesquisa da consultoria venezuelana Datanálisis revela que mais de metade dos venezuelanos compram de bachaqueros.

Como a Venezuela pode sair da crise marcada pela falta de divisas tanto para importar quanto para produzir?

O primeiro passo a ser feito, observa Álvarez, é o governo suspender os controles de preços e de capitais. “Isso dará ao setor privado confiança de que para produzir e gerar lucro poderá recuperar o capital investido”, afirma ao lembrar que a Venezuela de hoje é marcada pela falta de diálogo entre o setor privado e o governo.

Além disso, a Unasul (União das Nações Sul-Americanas) propôs um plano econômico para tirar o país do sufoco, com sugestões como unificação e flutuação cambial, aumentos progressivos de gasolina e eletricidade, ajustes de salários, e um programa de subsídios, por meio de cartões eletrônicos, o que visa reduzir o contrabando de produtos subsidiados, como remédios, combustível e itens da cesta básica.

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O plano foi aceito pelo governo? Em que pé está a sua implementação na Venezuela?

Muitas das propostas da Unasul estão caminhando. Equipes trabalham conjuntamente para aplicá-las. Dos temas que mais têm tido êxito estão o cadastro para registro de programas sociais, a distribuição de um cartão que visa à transferência de subsídios diretos para os venezuelanos (e não para os produtos), além da correção do preço de energia e do aumento do preço da gasolina para financiar essa transferência direta.

O tema cambial, no entanto, continua sendo um grande impasse. Há vozes dentro do governo contrárias à unificação cambial, pois argumentam que quem mais sofrerá será a população mais pobre. Por outro lado, é sabido que tais distorções cambiais fazem muitos lucrarem com desvios para o mercado negro.

Com reservas de divisas baixas e uma dívida externa grande para pagar, por que a Venezuela simplesmente não declara moratória e renegocia com os credores?

A Venezuela tem muito a perder se declarar moratória e deixar de pagar sua dívida externa. “O governo entende que, como um exportador de petróleo, simplesmente não pode se dar ao luxo de um calote em sua dívida. Tanto que uma das principais razões para a escassez atual é o fato de o governo diminuir drasticamente os gastos com as importações a fim de levantar os fundos e cumprir com suas obrigações de dívida”, explica Watson.

Além disso, a dívida do país é em parte da PDVSA, principal geradora de receitas do país. Autoridades temem que um calote prejudique operações da estatal petroleira e resulte em apreensões de ativos no exterior da empresa, como da Citgo Petroleum Corporation, subsidiária em Houston com três grandes refinarias e milhares de postos de gasolina. A Citgo é fundamental para a geração de receita de petróleo que o país ainda recebe.

Recorrer a fundos como o FMI, por sua vez, é descartado pelo governo por ora.

Uma mudança de governo é capaz de tirar o país da situação desesperadora?

Mais do que uma mudança de governo, é fundamental uma mudança de modelo econômico para o país se reerguer. Segundo Antillano, a crise tem a ver com a debilidade do modelo construído na Venezuela nos últimos anos. O chavismo foi marcado pela intervenção do Estado para a distribuição da renda petroleira, diminuindo a pobreza, melhorando a condição de vida das pessoas, mas não causou uma mudança estrutural. “A dependência da renda petroleira continua”, observa, ao apontar a ascensão de um capitalismo de Estado, extremamente atrelado à valorização das matérias primas no mercado internacional.

Muitos analistas acreditam, no entanto, que uma mudança de modelo econômico só será possível quando houver uma mudança política. Nesse sentido, o referendo revogatório que pode tirar Maduro do poder é a opção defendida pela oposição e o setor privado. O governo, por sua vez, conseguiu postergar a votação para 2017. Neste caso, em vez de novas eleições advinda de uma derrota de Maduro, o vice-presidente Aristóbulo Istúriz assume e termina o mandato que acaba em 2019.

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