Quem são os Pucci e porque eles causam comoção na Argentina?
Cultura

Por que os Puccio causam comoção na Argentina?

Filme “O Clã”, de Pablo Trapero, narra os sequestros cometidos pela família Puccio nos anos 80 e se torna maior sucesso desde "Relatos Selvagens"

em 15/12/2015 • 20h31
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Em 23 agosto de 1985, a sociedade argentina ficou horrorizada com a revelação de quem eram os culpados pelo sequestro e assassinato, mesmo após o pagamento do resgate, de cidadãos endinheirados no município de classe média alta San Isidro, na zona norte da região metropolitana de Buenos Aires. A razão de tanto assombro não foi inesperada, afinal de contas o país ainda se recuperava da traumática ditadura militar (1976-1983), responsável por mais de 30 mil mortos e desaparecidos.

Os responsáveis pela morte de Ricardo Manoukian (filho de donos de supermercados), do engenheiro industrial Eduardo Aulet e do empresário Emilio Naum foi a família Puccio, que, aparentemente, não apresentava nenhum desvio social. O patriarca Arquímedes era bem-visto por seus vizinhos e, já aposentado, passava as tardes ajudando a filha mais nova, Adriana, nos deveres escolares. Um de seus filhos, Alejandro, chegou a fazer parte de Los Pumas, a seleção argentina de rúgbi, um dos esportes mais populares no país. Era ele, inclusive, quem fornecia informações fundamentais dos possíveis sequestrados, pertencentes às classes mais abastadas. A esposa Epifanía e os filhos Guillermo, Silvia e Daniel “Maguila” completavam o núcleo familiar.

Trinta anos depois, os crimes da família Puccio voltaram à luz na Argentina e ganharam repercussão no mundo todo. Isso não se deve à novas revelações acerca do caso, que, inclusive, é estudado em escolas policiais. Tanto alvoroço foi provocado pelo filme “O Clã”, dirigido por Pablo Trapero, que estreou no país de Maradona em agosto deste ano e levou quase 2 milhões de espectadores aos cinemas. Com esses números, o longa tornou-se a segunda maior bilheteria de todos os tempos do cinema argentino, superando o sucesso de “O Segredo dos Seus Olhos” e ficando atrás somente do pop e sensação “Relatos Selvagens” (2014). Diferente desses filmes, o novo sucesso argentino não conta com o onipresente Ricardo Darín no elenco. No Brasil, o filme está em cartaz desde 10 de dezembro.

Em eventos internacionais, “O Clã” também tem colecionado prêmios. Além de ser o indicado argentino a uma vaga no Oscar – o anúncio dos finalistas na categoria melhor filme estrangeiro acontecerá no dia 14 de janeiro de 2016 –, o longa foi laureado nos festivais de Toronto e de Veneza. Neste último, Trapero levou para casa o Leão de Prata de melhor diretor.

“Eu já estava em Buenos Aires quando a produção do festival me ligou pedindo que retornasse à Itália”, contou o cineasta em entrevista exclusiva por telefone à revista Calle2. O reconhecimento no festival italiano teve um significado a mais para ele, uma vez que foi lá que Trapero exibiu “Mundo Grúa” (1999), seu primeiro longa-metragem como diretor.

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A primeira vez que Trapero tomou conhecimento da violência dos Puccio foi aos 13 anos de idade, quando os crimes foram desvendados e a história ganhou as manchetes de jornais e revistas. Já o início da pesquisa para transformar os horríveis assassinatos em filme teve início quando ele dirigia “Leonera” (2008).

“Comecei a investigar mais a fundo os acontecimentos envolvendo Arquímedes e seus filhos e a conversar com advogados, amigos dos sequestrados e treinadores de Alejandro. Como, até então, não havia muitos detalhes sobre as mortes, além daqueles publicados na mídia, foi necessária essa pesquisa, até mesmo para eu montar o roteiro e, sobretudo, os diálogos entre os membros daquela família.”

O que se vê em “O Clã”, mais do que toda a movimentação para concretizar os sequestros, é a relação esquizofrênica entre Arquímedes (papel de Guillermo Francella), seus parentes e, claro, suas atitudes. Embora as vítimas ficassem presas em cômodos da própria residência da família, no banheiro ou no sótão, por exemplo, Epifanía (Lili Popovich) e os filhos mais novos pareciam ignorar a presença de um corpo estranho por lá: eram cúmplices silenciosos. Alejandro (Peter Lanzani), o filho mais velho, já era parceiro do pai nos atos violentos. Depois, entraria no grupo Daniel “Maguila” (Gastón Cocchiarale), que, após passar um tempo na Nova Zelândia, retornaria à casa dos pais.

“O que mais chama a atenção é que os Puccio, aparentemente, eram uma família normal. Faziam parte da classe média, moravam em um bairro tradicional argentino, eram amigos dos vizinhos, iam à missa. Alejandro tinha fãs, todo o mundo o adorava. Foi complicado para a sociedade entender que ele e seu pai estavam por trás daquelas mortes”, diz o cineasta, que, durante a pré-produção de “O Clã”, não teve tempo de entrevistar Arquímedes. Um fato curioso: ao saber da intenção de Trapero de transformar em filme sua história, Arquímedes teria declarado que adoraria encontrá-lo para contar a sua versão dos fatos. No entanto, o chefe do clã morreu antes desta reunião.

Quem teve a sorte de conversar com Arquímedes foi o jornalista Rodolfo Palacios, autor do livro “El Clan Puccio – Historia Definitiva” (editora Planeta), lançado também em agosto. Ele o encontrou em uma pensão do município General Pico, localizado na província La Pampa, onde Arquímedes viria a morrer, em maio de 2013, pobre e sozinho, aos 83 anos de idade.

“Ele era a imagem grotesca de um ditador em seus últimos dias. Era uma pessoa muito inteligente – foi contador público, advogado, diplomático, colecionador de arte -, que divagava sem parar e, por meio dessas declarações, inventava parte de seu passado. Havia provado que tinha integrado a Triple A [Aliança Anticomunista Argentina, um grupo de extrema-direita que atuou a partir de 1974, durante os governos de Juan Domingo Perón e Isabelita Perón, e teria sido responsável pelo desaparecimento de centenas de artistas, peronistas e intelectuais], mas também assegurava que havia militado nos Montoneros [guerrilha urbana, cujo objetivo era desestabilizar a ditadura militar], e que os sequestros faziam parte de um peronismo revolucionário”, conta Palacios, em entrevista para o jornal argentino “Clarín” publicada em julho deste ano.

O jornalista acrescenta: “Arquímedes teria sequestrado os empresários, que teriam vínculos com os militares, para se vingar de seus companheiros desaparecidos. Apresentava-se como vítima de uma conspiração política-judicial. Não tinha ideologia e usava a política para esconder a finalidade exclusivamente econômica de seus sequestros.”

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Devido ao êxito do filme de Trapero, de seu próprio livro e da minissérie televisiva “Historia de um Clan”, exibida pela Telefe, uma das principais emissoras da Argentina, entre setembro e novembro deste ano, Palacios definiu esse interesse pela história da família Puccio como “Pucciomania”. Essa obsessão transformou a residência onde eles moravam, localizada no cruzamento das ruas 25 de Mayo e Martín y Omar, no centro de San Isidro, em atração turística. Segundo reportagem publicada em agosto pelo jornal “Clarín”, tornou-se comum ver curiosos de plantão fazendo “selfies” em frente ao casarão.

Desde o lançamento do filme, Trapero conta que nenhum parente dos Puccio o procurou. Situação nada surpreendente, diga-se de passagem. Arquímedes ficou 23 anos preso, sempre alegando inocência. Faleceu devido a uma complicação derivada de um acidente cardiovascular e foi enterrado, sem a presença de nenhum familiar, em um cemitério público de General Pico. Alejandro morreu em 2008 – a saúde do primogênito era frágil em decorrência das várias tentativas de suicídio. Silvia foi vítima de câncer em 2011.

Sabe-se, por enquanto, somente do paradeiro de Epifanía, hoje com 83 anos, e de Adriana, a caçula. Até a “Pucciomania”, a matriarca morava em uma casa localizada em San Telmo, bairro boêmio de Buenos Aires – com as estreias do filme e da série de TV, crê-se que ela tenha se mudado, pois havia tornado frequente a presença de jornalistas em frente à residência. Já Adriana, hoje com 45 anos, passou a utilizar um outro sobrenome, provavelmente o da mãe, “Calvo”.

Daniel “Maguila” foi condenado a 13 anos de prisão. Porém, conseguiu fugir, e, mesmo depois de reaparecer em Buenos Aires para buscar um documento que indicava a extinção de sua pena, voltou a sumir – há quem diga que ele more no sul do Brasil. Já sobre Guillermo, o mais jovem entre os filhos homens, não há notícia: o garoto, ciente das atrocidades cometidas por seu pai, aproveitou uma viagem de sua equipe de rúgbi pela Austrália, à época dos sequestros, para fugir da Argentina. Acredita-se que ele nunca voltou ao país em que nasceu.

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