Chile e Argentina brigam pelo rótulo de "produtor de vinho mais austral do mundo"
Sociedade

Chile e Argentina brigam pelo rótulo de “produtor de vinho mais austral do mundo”

Discussão é pano de fundo para outra: a de qual cidade dos dois países está mais ao sul do planeta

em 09/01/2019 • 13h48
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Entre as muitas rivalidades entre Argentina e Chile, que vão de limites geográficos ao longo da Cordilheira dos Andes a questões históricas envolvendo guerras, recentemente uma nova discussão passou a mobilizar as vinícolas localizadas no chamado “fim do mundo”, territórios dos dois países próximos à Antártida: quem produz os vinhos mais austrais – ou mais ao sul – do planeta?

Segundo ampelógrafos, os vinhos de regiões austrais são caracterizados por acidez, texturas e aromas próprios, muito distintos dos tradicionais merlot e cabernet sauvignon, produzidos em quase todos os lugares do mundo. “Fica como um jogo de cerejas flutuando na língua: os mesmos sabores e a mesma acidez”, diz o especialista chileno Fabrício Tapia.

Entre os vinhos mais comuns dessas regiões estão o sauvignon blanc, syrah, riesling e chardonnay, além do pinot noir, que só amadurece em climas frios. No caso chileno, um dos vinhos desse tipo é produzido às margens do Rio Bío-Bío, onde estão localizados vales menos conhecidos do grande público – especialmente do brasileiro. “A vinicultura em Bío-Bío requer mais paciência, habilidades e determinação do que em qualquer outro vale chileno”, diz um artigo do famoso site Bodegas y Viños. Em alguns casos, mesmo com o clima frio, as frutas ficam em estufas em que o clima é controlado por um condicionador de ar.

A produção do vinho mais austral do mundo, no entanto, é objeto de debate: os cultivadores argentinos dizem que são as regiões próximas ao Rio Nant y Fall, onde fica o Valle Hermoso, próximo à cidade de Trevelin, a quase 2 mil quilômetros da capital Buenos Aires. Já os chilenos acreditam que é ao redor do município de Puelo, a 1 mil quilômetros de Santiago, mas não tão distante da importante cidade de Puerto Montt. Em linha reta, a distância entre as duas é de 170 quilômetros, sendo que Trevelin fica mais abaixo.

Para os argentinos, há ainda a cidade de Trelew, na mesma linha horizontal de Trevelin, mas do outro lado do território do país, próximo ao Oceano Atlântico. Tanto em uma como na outra, a produção de vinhos foi motivada pelo Instituto Nacional de Tecnologia Agropecuária (Inta) do governo da Argentina, que injetou dinheiro e equipes para iniciar o cultivo das uvas na província de Chubut, onde ambas as cidades estão.

O projeto começou em 2003 e se destacou pelo cultivo da uva pinot noir, com notas florais, frutais e vegetais. Tipos mais comuns de vinho, como o próprio cabernet sauvignon, também foram introduzidos na região, apesar de possibilitarem resultados distintos. “O objetivo é que o cultivo de videiras se complemente com a produção dos vinhos da região. Não recomendamos que se cultive para vender as uvas às lojas, mas para que os produtores se sintam à vontade para elaborar seus próprios vinhos”, disse a coordenadora do projeto, Belén Pugh, ao jornal argentino Mercurio.

No Chile, o vale de Puelo produz cerca de 1,5 mil garrafas de pinot noir por ano, mas aumentou a safra neste ano para lidar com a demanda dos mercados europeu e asiático, encantados com as características do vinho austral. “O vale é protegido pelas montanhas, o que permite que a temperatura não seja tão fria e seja constante durante o ano. Isso evita que a neve ou as geadas caiam com tanta força sobre as plantas”, revela o diretor da vinícola Villaseñor, a principal da região.

Em Puelo e em Cochamó, cidade vizinha, há até um roteiro turístico em torno da árvore que deu origem ao projeto de cultivar as uvas no local. No entanto, as ações das autoridades agrícolas argentinas fizeram os chilenos responderem à mesma altura: hoje, possivelmente é no Chile que se faz o vinho mais austral do globo terrestre.

Há pouco tempo, o Instituto de Investigações Agropecuárias (Inia) do governo chileno levou mudas de uvas sauvignon blanc e pinot noir para a cidade de Chile Chico, na província de Aisén, a 2 mil quilômetros de Santiago, 1 mil de Puelo e 600 de Trevelin, na Argentina. Com elas, foi possível produzir os primeiros litros de vinho da região e iniciar um projeto de desenvolver a produção na área. O plano agora é levar as uvas para regiões ainda mais austrais, como Bahía Jara e Levicán. Até o momento, esse é o vinho feito mais ao sul do planeta possível.

A cidade mais ao sul

A discussão sobre a produção do vinho mais austral do planeta é apenas o pano de fundo para uma briga maior: a de qual país possui a cidade mais ao sul do mundo. Do lado do Chile, está Puerto Williams, entre as falésias dos Dentes de Navarino, no arquipélago da Terra do Fogo. A Argentina, por sua vez, diz que é Ushuaia, a 3,1 mil quilômetros de Buenos Aires e menos de mil em relação à Antártida – e que, ao contrário, é uma cidade movimentada desde os anos 1990, quando já possuía mais de 50 mil habitantes. A distância entre ela e Puerto Williams é de 46 quilômetros.

A remota localidade chilena situada na Isla Navarino e em frente ao mar de águas calmas que banham as costas do Canal de Beagle é considerada o último povoado ao Sul do continente americano, 10 quilômetros mais austral do que a cidade argentina. A metade de seus 2,2 mil habitantes é da marinha chilena e trabalha na base naval localizada no povoado. A outra metade se dedica ao turismo ou à investigação científica, já que a localidade se encontra em uma das últimas 24 regiões virgens do planeta: a Reserva de Biosfera Cabo de Hornos.

No entanto, o que impede que Puerto Williams receba o rótulo de cidade mais ao Sul do mundo é a própria lei chilena: segundo ela, só pode ser considerada “cidade” uma comunidade que reúna mais de 5 mil pessoas. Os parâmetros instituídos em 2005 ainda indicam que uma união entre 2 e 5 mil habitantes é considerada um “povoado” (pueblo, em espanhol). De acordo com o censo chileno, portanto, a comunidade nas margens do Canal de Beagle não pode ser registrada como cidade. Assim, ao menos até o momento, a Argentina parece ganhar a discussão.

Segundo dados oficiais, em 2015, chegaram a Ushuaia 440 mil visitantes, a imensa maioria de países como Estados Unidos, Alemanha, França, Espanha e Brasil. Somente na última temporada de verão, no início deste ano, cerca de 280 mil pessoas desembarcaram em Ushuaia – uma média de 1,5 mil turistas por dia.

Para atender à demanda, em Ushuaia, há pubs irlandeses, restaurantes de comidas típicas de diversas partes do mundo, baladas, bancos internacionais e casas de câmbio. “A vida é bem agitada para uma cidade relativamente pequena situada quase no fim do mundo”, comenta o jornalista Guilherme Henrique, que viajou com a família para a região no último Natal. “É uma cidade cercada de montanhas nevadas. O vento, mesmo no verão, é gelado. O centro é movimentado, com agências de turismo, lojas de roupa de inverno e restaurantes”, continua.

De qualquer forma, os chilenos não deixam de afirmar que o povoado mais ao sul do planeta está em seu território. “Houve algo com Ushuaia que o Estado chileno deveria imitar, uma preocupação em convertê-la em cidade, com uma funcionalidade definida e a aplicação de uma série de políticas públicas associadas a fortalecê-la que, no caso argentino, teve êxito”, explicou o professor Goran Lausic, do departamento de História da Universidad de Magallanes, do Chile, ao jornal chileno Bío-Bío.

Para ele, se as autoridades do seu país se preocupassem com a região, poderiam transformá-la em um grande assentamento urbano, assim como foi feito em diversas outras regiões “virgens” do território nacional. “É necessária a implementação de políticas públicas que apoiem um maior assentamento urbano e a presença de uma população civil, não militar”, completou.

Ao mesmo periódico, o prefeito de Cabo de Hornos, Patricio Fernández, declarou que os moradores de Puerto Williams se sentem vivendo em uma cidade. “Cada cidadão põe seu grão de areia no que é turismo, no que é pesca, na marinha. Nós somos uma cidade.”‎

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