A diretora responsável pela retomada do cinema paraguaio
Cultura

A diretora responsável pela retomada do cinema paraguaio

Dez anos após o premiado “Hamaca Paraguaya”, Paz Encina, responsável pela retomada do cinema paraguaio, joga luz sobre ditadura militar no país

em 23/01/2019 • 11h41
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Pioneira. Difícil encontrar o nome de Paz Encina sem estar acompanhado desta palavra. E razões não faltam para isso. Foi ela quem, em 2006, retomou a produção audiovisual do Paraguai ao lançar “Hamaca Paraguaya”. O longa, que levaria os prêmios da crítica na mostra Um Certo Olhar do prestigiado Festival de Cannes e na 30ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo, quebrou um jejum do audiovisual paraguaio que já durava 28 anos. O antecessor de “Hamaca” é “Cerro Cora”, de Guillermo Vera, lançado em 1978.

“A minha vida, sem dúvida, se divide entre antes e depois de ‘Hamaca Paraguaya’. Até o seu lançamento, eu posso afirmar que não tinha a mínima ideia de que poderia fazer e viver de cinema”, contou Encina à Calle 2, em entrevista realizada no hall do prédio do Centro Cultural Banco do Brasil, na capital paulista.

“‘Hamaca’, eu me lembro, causou uma comoção enorme no Paraguai. Havia aquele sentimento de que, depois de tantos filmes em inglês, podíamos nos ver na telona. Em Assunção, a euforia foi menor se comparada ao êxtase que o filme provocou na zona rural”, diz Encina, que exibiu o longa em diversas cidades do país por meio de um “cinemóvel”.

A diretora, que é também a primeira paraguaia com licenciatura em audiovisual – ela se formou na Universidade de Cinema de Buenos Aires -, lançou seu segundo longa-metragem em 2016, o documentário experimental “Exercícios de Memória”. O filme fez sua estreia mundial no Festival de San Sebastian e foi uma das 322 atrações da 40ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo.

Se em sua primeira produção Encina mira sua câmera, praticamente estática e em plano aberto, para um casal de idosos camponeses que aguardam o retorno do filho que foi lutar na guerra do Chaco, conflito armado entre Bolívia e Paraguai que durou de 1932 a 1935, em “Exercícios de Memória” a diretora se volta para uma questão mais duradoura e ainda nebulosa da história do Paraguai. Trata-se da ditadura militar de Alfredo Stroessner que se estendeu de 1954 a 1989.

Para o filme, ela entrevista, sem mostrar seus rostos, Rogelio, Rolando e Jazmín, filhos do médico Agustín Goiburú, um dos mais ferrenhos opositores do regime stroinista. Os restos mortais dele, que foi dirigente do Movimento Popular Colorado (Mopoco) e que lutava, entre outras reivindicações, pelo retorno da democracia, permanecem desaparecidos e são alvo de busca dos filhos, sobretudo Rogelio, diretor-titular da Direção de Memória Histórica e Reparação do Ministério da Justiça do Paraguai.

“A mim me interessava mais a família do que a militância de Agustín. Tinha interesse em saber do vazio deixado por ele depois de seu desaparecimento”, conta Encina, que teve a ideia de realizar este documentário antes mesmo de “Hamaca Paraguaya”. A primeira entrevista para “Exercícios de Memória”, segundo ela, foi feita em 1998. “Não dei prosseguimento ao projeto, pois eu não me sentia madura o suficiente para mergulhar neste assunto”, confessa. No documentário, Rogelio, Rolando e Jazmín, cada um a seu modo, relembram dos momentos em que precisaram fugir da polícia, como era o dia a dia nos locais em que tiveram que se esconder e de quando Goiburú foi sequestrado em 1977. Ele seria assassinado no mesmo ano.

Durante o processo de pesquisa, Encina mergulhou nos chamados Arquivos do Terror, descobertos em 1992 no Departamento de Produção da Polícia, uma pequena delegacia localizada na cidade de Lambaré. Diferentemente das outras ditaduras da região, a paraguaia não queimou documentos relacionados ao Estado de exceção. As três toneladas de papéis contêm fichas de prisioneiros e provas de prisões clandestinas, de torturas e da articulação do Plano Condor, aliança entre os regimes militares da Argentina, do Brasil, do Uruguai e do Paraguai. Liberados para o público em 2009 a mando do ex-presidente Fernando Lugo, esses documentos estão catalogados e disponíveis para consulta no Museu da Justiça, sob o nome de Centro de Documentação e Arquivo para Defesa dos Direitos Humanos.

Ler os detalhes de tudo o que aconteceu na ditadura paraguaia foi muito forte para mim. Há detalhes das torturas e dos interrogatórios. Diante destes arquivos, eu entendi que tinha em mãos a história da repressão”, afirma a cineasta. De acordo com ela, se na Argentina, que, por meio do trabalho incansável das Mães da Praça de Maio, o assunto ditadura está sempre em discussão na sociedade, no Paraguai tal questão é ainda um tabu.

O que tem ajudado a mudar esta realidade é justamente a revelação do conteúdo dos Arquivos do Terror – “é impossível negar a história com esses documentos”, acredita – e também a identificação das pessoas desaparecidas. Ela se lembra, por exemplo, da história da socialista italiana Rafaela Giuliana Filipazzi Rossini, que morava em Buenos Aires e que foi sequestrada no Uruguai, antes de ser levada para o Centro de Investigações em Assunção, onde teria sido assassinada. “Isso mostra o quanto o Plano Condor era eficaz”, lamenta. A identidade de Filipazzi foi reconhecida em agosto de 2016 – os restos mortais de outros três desaparecidos (Miguel Angel Soler, Cástulo Vera Báez e José Agustín Potenza) também foram identificados em 2016.

Oscar para quê?

Fã de toda a cinematografia de Glauber Rocha e de Karim Ainouz – “gosto, principalmente, de ‘Viajo Porque Preciso, Volto Porque Te Amo’ e de ‘Madame Satã’”, conta -, Encina vive na expectativa da repercussão de “Exercícios de Memória”. Quem sabe um Oscar?

“Olha, adoraria ganhar um Oscar, mas penso que é muito mais importante ganhar uma Palma de Ouro em Cannes, um Urso de Ouro no Festival de Berlim, um Leão no Festival de Veneza ou um Leopardo em Locarno. E sabe por quê? Porque lá eu estou em uma competição com todas as potências mundiais”, afirma. “No Oscar, há apenas uma categoria para filmes estrangeiros, é como se fosse uma exceção que a Academia oferecesse à cinematografia dos outros países. Sim, o Oscar é um prêmio importante, mas não é o mais importante. É Hollywood que nos faz acreditar isso”, completa.

Encina quase foi se aventurar na indústria audiovisual norte-americana. Ela chegou a ser convidada para ser bolsista do projeto Rolex Mentor and Protégé Arts, no qual jovens talentos têm a oportunidade de trabalhar por um período com grandes cineastas – os premiados com a estatueta dourada Martin Scorsese e Alejandro Iñárritu serviram de guias de estudo no projeto. “Não fui escolhida porque não sei falar inglês. Eu me senti discriminada, mas tudo bem. Eles consideram que não falar inglês é uma limitação. Não para mim. Eles também saíram perdendo”.

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