Um debate sobre estupro, aborto e Justiça
Cultura

Um filme sobre estupro, aborto e Justiça

Latino ‘Paulina’, que venceu dois prêmios em Cannes, estreia nos cinemas brasileiros; diretor argentino Santiago Mitre, que trabalhou com Walter Salles, fala com exclusividade à Calle2

em 15/06/2016 • 01h30
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Com uma temática forte e extremamente atual, sobre estupro coletivo e violência contra a mulher, o filme argentino “Paulina” (no original, “La Patota”) chega esta semana ao Brasil com duas premiações importantes no currículo, ambas obtidas no Festival de Cannes 2015: o Grande Prêmio da Semana da Crítica e o da Federação Internacional de Críticos de Cinema (Fipresci). A Calle2 conferiu o longa em outubro do ano passado, quando ele foi exibido na 39ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo, e fez uma entrevista exclusiva com o diretor Santiago Mitre, que veio ao país para acompanhar o lançamento.

Produzido em parceria entre Argentina, Brasil e França, o filme é um remake do homônimo “La Patota”, de 1960, com Mirtha Legrand no papel principal. Ambos se concentram na história de uma mulher idealista (na primeira versão, uma professora de filosofia; na segunda, uma advogada) que resolve dar aulas em uma escola da periferia, contrariando a vontade do pai, um poderoso juiz de Buenos Aires. Ao ser confundida com outra jovem, cujo ex-namorado não aceitava o fim do relacionamento, Paula é estuprada por um grupo de alunos em um edifício abandonado. Apesar da brutalidade do ataque, ela não vai embora da cidade, mas se mantém firme em suas convicções sobre política, Justiça e direitos humanos.

Segundo Mitre, de 35 anos, a nova versão se concentra mais na decisão da protagonista de tentar entender a violência, seus agressores, as motivações deles, e de conviver com as consequências do abuso. Paulina faz uma análise crítica sobre si mesma (uma jovem branca de classe alta), a desigualdade social e a realidade em que vive.

Para a personagem, de nada adianta ser uma profissional brilhante se isso não for capaz de mudar a vida de alguém. Em outro momento, ela diz: “Quando os envolvidos são pessoas pobres, o Judiciário não procura Justiça, mas sim culpados”.

Já o primeiro longa, dirigido por Daniel Tinayre (1910-1994), tem um lado moral mais forte e fala sobre perdão, em uma época em que a mulher começava a liberar-se sexualmente e a lutar cada vez mais pela igualdade de direitos. Quando o filme estreou, o voto feminino já vigorava na Argentina, Simone de Beauvoir já havia publicado o “O Segundo Sexo” e as mulheres começavam a deixar o lar em busca de uma carreira e realização profissional.

“Como é um remake, peguei o tema e me pus a pensar sobre como produzir um novo filme. Encontrei uma abordagem através da convicção da protagonista, que é levada a um limite cruel. ‘Paulina’ está estruturado em uma ideia de tragédia grega, foi inspirado também em ‘Antígona’ [de Sófocles], mas não há a morte final típica das histórias trágicas”, explica o cineasta, que estreou no circuito em 2011, com “El Estudiante”, e nos últimos anos tem colaborado como roteirista de vários filmes de Pablo Trapero, como “Leonera” (2008), “Abutres” (2010) e “Elefante Branco” (2012) – estes dois últimos protagonizados por Ricardo Darín. Em 2017, Mitre será um dos jurados do Festival de Cannes.

foto por: Aline Arruda
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O brasileiro Walter Salles e o argentino Santiago Mittre que trabalharam juntos em 'Paulina'

Na sessão que a Calle2 acompanhou, algumas pessoas saíram da sala no momento do estupro coletivo – uma cena longa, com alta carga dramática. Na visão do diretor, porém, não há apenas uma forma de reagir ao filme. “Há pessoas que ficam impressionadas, interessadas, emocionadas, que se revoltam com a protagonista, que a entendem. Parece-me que todas essas impressões são possíveis e todas são ok. O problema é quando [a história] causa indiferença, desinteresse. Esse filme, de algum modo, mobiliza o espectador”, destaca Mitre.

“O cinema é também uma marca social, razão pela qual manifesta problemas e questões como a violência. São preocupações que vêm da sociedade”, completa.

O cineasta lembra que “Paulina” chega às telas em um período de profundo debate, na imprensa e nas redes sociais (tanto no Brasil quanto na Argentina), sobre feminismo, defesa dos direitos da mulher, cultura do estupro e violência contra a mulher – como o caso do estupro coletivo de uma adolescente no Rio de Janeiro, em maio. No ano passado, o tema da redação do Exame Nacional do Ensino Médio (Enem) foi justamente “a persistência da violência contra a mulher na sociedade brasileira”. Além disso, em 3 de junho de 2015, uma marcha em protesto contra a violência de gênero e feminicídios foi realizada em várias cidades da Argentina, do Chile e do Uruguai, com a hashtag #NiUnaMenos. A manifestação, que contou com a participação de 200 mil pessoas só em Buenos Aires, ocorreu após a morte da adolescente Chiara Páez, de 14 anos, que estava grávida. Ela foi assassinada pelo próprio namorado, de 16 anos, na província argentina de Santa Fé.

“[Como homem] Assumi o tema com a responsabilidade que deveria, tive duas assessoras que foram muito importantes, entramos em contato com grupos de mulheres que passaram por situações de abuso, algo que me ajudou muito a escrever o roteiro. Estou rodeado de mulheres com quem trabalho, como Dolores [Fonzi, a protagonista e sua namorada desde as gravações] e Agustina [Llambi Campbell, produtora]”, conta Mitre. Ele revela que, por sorte, nenhuma amiga ou familiar sua sofreu abuso sexual. “Conheço casos, mas não tão próximos de mim, felizmente.”

Sobre a discussão do aborto, que também está presente no filme, o diretor considera que essa é uma decisão exclusiva da mulher e que precisa ser respeitada, seja para continuar a gravidez ou para interrompê-la. “A resolução da personagem nesse sentido pode ser difícil de compreender, mas é a opinião dela e deve ser acatada”, diz.

Parceria com Walter Salles

Em “Paulina”, o diretor brasileiro Walter Salles, de “Central do Brasil” (1998) e “Diários de Motocicleta” (2004), trabalha como produtor associado. Para Mitre, essa parceria foi extremamente útil e produtiva. “Ele é muito generoso, ajudou a pensar nas rotinas de produção e em como executá-las, e colaborou também com seu olhar, experiência e sensibilidade como diretor”, aponta o argentino.

‎Mitre também comemora as alianças de países para incentivar a produção de cinema, como essa firmada entre a Agência Nacional do Cinema (Ancine) e o Instituto Nacional de Cine y Artes Audiovisuales (Incaa), da Argentina. “Há nações latino-americanas que, por falta de tradição, não tinham uma cinematografia e leis de incentivo à produção, mas que agora estão começando a ter e a entender a importância dessa indústria”.

“Fico feliz em ver filmes reconhecidos internacionalmente vindos de países onde não havia muitos, como Colômbia e Venezuela. É um bom sinal”.

O diretor revela, ainda, que gosta de trabalhar muito próximo dos atores e focar na preparação deles antes das gravações. “Eu e Dolores lemos o roteiro juntos muitas vezes, trocamos textos, vimos filmes, discutimos muito. Quando necessário, reescrevíamos algumas cenas”, diz.

Novidade com Darín

O próximo filme de Mitre, “La Cordillera”, ainda nem foi rodado, mas já ganhou um prêmio de melhor roteiro: o Prix ARTE International, concedido pelo Atelier da Cinéfondation do Festival de Cannes 2016, em maio. O longa será estrelado por Ricardo Darín, na pele de um presidente (chamado Hernán Blanco) que sofre uma crise pessoal – envolvendo sua filha – bem no meio de uma conferência política. A história terá Dolores Fonzi como coadjuvante, no papel da assistente do presidente.

As gravações devem começar em setembro, no Chile, e ir até meados de novembro. As sequências planejadas ao ar livre precisam ser feitas quando ainda tiver bastante neve nos Andes. Segundo Mitre, “La Cordillera” terá participação de atores chilenos, mexicanos e brasileiros.

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Ficha técnica:

“Paulina” (“La Patota”) – 2015, ficção

Estreia no Brasil: 16 de junho de 2016

Direção: Santiago Mitre

Roteiro: Santiago Mitre, Mariano LLinás e Eduardo Borrás (primeira versão)

Produção: Argentina/Brasil/França – Santiago Mitre, Walter Salles, Agustina Llambi Campbell, Fernando Brom, Lita Stantic e Axel Kuschevatzky

Duração: 103 minutos

Classificação indicativa: 16 anos

Distribuição: Esfera Filmes

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