Logo que sentou à mesa improvisada, com dois ou três cartazes de seu filme ao fundo, Alê Abreu lançou um sorriso tímido e girou a cabeça, como quem procura um conhecido em uma festa estranha. Quando terminou de se ajeitar, pegou o microfone oferecido e fez uma revelação tão sincera quanto significativa, especialmente para alguém que agora tinha chances reais de entrar para a história do cinema mundial: “Essa é a primeira entrevista coletiva da minha vida”, disse, surpreendendo os quase 50 jornalistas que haviam se deslocado até ali para repercutir a indicação de sua animação “O Menino e o Mundo” ao Oscar, ocorrida na véspera.
“Quer dizer, teve uma outra coletiva em Annecy, mas essa certamente é maior”, corrigiu, citando a cidade francesa onde acontece o mais importante festival de cinema de animação do mundo. Lá, em 2014, “O Menino…” foi aclamado como melhor filme por público e crítica. O resultado chamou a atenção da imprensa especializada, curiosa por saber qual fermento estava sendo usado na animação brasileira, uma vez que outro filme do país havia levado o prêmio no ano anterior – “Uma História de Amor e Fúria”, de Luiz Bolognesi.
Para Alê, o recente sucesso da animação brasileira é consequência de uma “construção feita por vários colegas” nas últimas décadas. “O diferencial é que sempre buscamos fazer os nossos próprios filmes, nunca aceitamos ser o braço barato de produtoras estrangeiras. Eu mesmo tive a chance de mandar meu trabalho para a Disney, mas nunca fiz. Sempre acreditei que o meu lugar era o Brasil”, conta o diretor, que teve o primeiro contato com animação profissional aos 11 anos, quando estagiou por alguns meses nos estúdios de Maurício de Souza, criador da Turma da Mônica. Aos 13, venceu um concurso e produziu seu primeiro trabalho autoral, o micro-curta “Memória de Elefante” (1984).
Nos anos 90, além de trabalhar como ilustrador em publicidade e jornalismo, Alê produziu dois curtas: Sírius (1993) e Espantalho (1998). Em 2000, iniciou seu primeiro projeto de longa-metragem, “O Garoto Cósmico”. Produzido em 2D e praticamente todo feito na ponta do lápis, o filme levou sete anos para ser finalizado e lançado, uma prova da dificuldade enfrentada pela animação brasileira no início do século. Para efeito de comparação, “O Menino e o Mundo” demorou “apenas” três anos e meio para ficar pronto.
Encerrado todo o processo do primeiro filme, Alê logo começou a imaginar como seria o segundo. E decidiu que gostaria de fazer um documentário animado sobre músicas de protesto latino-americanas, assunto que ele havia passado a se interessar visceralmente após conhecer artistas como a chilena Violeta Parra e o cubano Victor Jara. Ao filme, deu o nome provisório de “Canto Latino”, referência direta à música de Milton Nascimento, escrita em parceria com o cineasta Ruy Guerra nos anos 70.
No entanto, a obrigação de ser fiel à realidade limitava a criatividade do traço de Alê, fazendo-o questionar os rumos do projeto. Foi quando, entre os rascunhos do filme, encontrou o desenho de um menino. Criado a partir de poucos traços, tinha a cabeça circular, dois riscos como olhos e membros que remetem ao famoso boneco-palito. Um desenho infantil, basicamente. Infantil de corpo e alma.
“Quando eu encontrei esse menino rabiscado, falei: ‘caramba! que vontade de abandonar esse filme e fazer outro!’. E por que não? Se ele [o filme] está querendo se transformar, deixa. O que eu captei para o ‘Canto Latino’ estava ali, vivo. Então, dei a mão a esse menino e pensei: ‘vou descobrir a história dele.”’
E assim foi. Alê engavetou o projeto original e passou a se dedicar à jornada do Menino em busca do pai, que deixou a família no campo para buscar trabalho na cidade. Quando desembarca na metrópole, o Menino assiste às mais diversas formas de exploração, sempre com o olhar inocente e curioso. Para representar a diversidade do mundo, a animação recorreu à diferentes técnicas e materiais, como aquarela, giz de cera e até colagem. Recursos que, quando misturados com a trilha sonora, transformam o filme em uma pequena obra prima.
“Ficou uma fábula latino-americana, eu acho. As roupas, a geografia, os personagens, tudo veio das referências que colhi para o “Canto Latino”. A imagem da cidade vista de longe, por exemplo, é idêntica ao gráfico de renda do Darcy Ribeiro, no livro ‘O Povo Brasileiro'”, contou Alê, surpreendendo novamente.
Até mesmo a involuntária escolha do tema – a busca de um filho pelo pai – acabou sendo uma referência à América Latina. “Não foi algo pensado. Quando vi, já estava falando da busca do pai. Diretores como [os argentinos Fernando] Solanas, [Fernando] Birri e tantos outros já fizeram filmes em que a busca do pai é a simbologia da busca da pátria, do entendimento de um país que nasceu sem pátria, desgovernado”, explica.
O filme, aliás, não foi criado a partir de um roteiro prévio. Pelo contrário: foi nascendo da mistura dos desenhos de Alê com as composições da dupla de músicos Ruben Feffer e Gustavo Kurlat, que assinam a trilha sonora do filme. Ora os traços guiavam os sons, ora os sons guiavam os traços. O resultado? Um filme tão sensível e universal que até mesmo a intenção de inserir diálogos foi abolida.
“É um filme que comunica facilmente e que chega por outra porta de entendimento nas pessoas. É isso que torna o filme muito forte, e é o que eu tenho visto e sentido por onde tenho passado. Ele atinge pessoas de várias idades, não apenas as crianças. Acredito muito nisso: que ele conquiste por si só”, analisa o diretor.
“Muitas vezes a gente vive um cinema muito balizado pela razão, que precisa ter um sentido. Mas não precisa existir um sentido. O cinema pode ser como música: são simplesmente acordes que você coloca numa história, cores, movimentos, e aquilo te causa uma emoção. Isso é que interessa.”
Vencedor de 46 prêmios em 36 festivais de 23 países diferentes – e contando. Mesmo antes de receber a indicação ao Oscar, este era o “cartel” de conquistas de “O Menino e o Mundo”, que já foi lançado em 80 países e acumula centenas de milhares de espectadores – somente na França, o filme já superou a marca dos 100 mil.
No Brasil, porém, a audiência e a repercussão a respeito de “O Menino…” ainda frustram seus produtores. O filme estreou no início de 2014 e ficou em cartaz durante sete meses em poucas salas de algumas capitais – em geral, no circuito alternativo, longe dos multiplexes de shopping. Com isso, registrou apenas 35 mil espectadores, número que pode chegar a 50 mil devido às projeções gratuitas realizadas em projetos escolares, que não são contabilizadas comercialmente.
“Fizemos o possível, mas não depende só da boa vontade de alguns. Muita gente pedia pelo Facebook que o filme fosse exibido no Cinemark, em outras redes, mas o exibidor não queria. Em geral, o público não vai assistir a um filme específico e nem se desloca para isso; ele vai em uma rede, em um cinema específico, e escolhe entre o que está à disposição. Se está com as crianças, assiste “Divertida Mente” ou o filme do dinossauro, não “O Menino…”, que nem está lá. Portanto, me parece que o problema da distribuição no país é uma questão de prateleira”, analisa.
Por isso mesmo, Alê Abreu considera que a maior recompensa que o filme poderia receber com a indicação ao Oscar seria a possibilidade de ser visto pelos brasileiros. Deu certo: na mesma semana, o circuito de salas do Espaço Itaú de Cinemas, que havia abraçado o filme já no lançamento em 2014, anunciou que voltaria a exibir “O Menino…” em São Paulo, Rio de Janeiro e algumas outras capitais pelo menos até a data da premiação. Além disso, o filme também foi exibido no canal fechado HBO, no serviço sob demanda NET Now e em espaços alternativos como a Cinemateca Brasileira, onde cerca de duas mil pessoas se reuniram para a exibição e quebraram o recorde de público do local.
Desde então, a torcida brasileira pelo Menino vem crescendo diariamente. O maior indicativo talvez seja a forte adesão à campanha de crowdfunding criada pela produtora do filme para ajudar a distribuidora norte-americana na divulgação do filme nos Estados Unidos, prática necessária para atingir os eleitores do Oscar e gerar repercussão, aumentando as chances de vitória. Até o fechamento desta edição, o filme já tinha arrecadado R$ 155 mil reais, superando a meta inicial de R$ 100 mil. Entre os prêmios oferecidos aos apoiadores estão cópias autografadas do filme, bonequinhos de feltro do Menino e até quadros exclusivos pintados por Alê.
Enquanto isso, Alê segue à risca o planejamento de divulgação do filme elaborado pela GKids, a mais importante distribuidora de filmes de animação independentes dos EUA. Seu fundador, aliás, tem uma história particular com a animação brasileira. “Todo ano eles fazem um festival de cinema infantil em Nova York e o Eric [Beckman] costuma por o filho pequeno para ajudar na pré-seleção. Um dia, o garoto correu até a cozinha e disse: ‘Pai, pai! Pausei porque quero que você veja comigo. É o filme mais legal que eu já vi’. Quando ele chegou na sala, era “O Menino…”. Então, só o fato de estar com eles já dá uma segurança danada”, conta.
Mas e o Oscar? Será que há alguma chance? Alê acredita que sim, apesar do enorme abismo econômico entre as produções. “Esse ano é um ano especialmente difícil porque nós temos um filme que é realmente bom, que é o Divertida Mente. Não acho ótimo, mas é bom. Mesmo assim vamos brigar, vamos para lá e tentar fazer uma coisa meio guerrilha”, diz, satisfeito pela indicação compreender filmes tão distintos. “Acho legal a possibilidade de ter um filme como “O Menino…”, lado a lado com outros que custaram US$ 200 milhões e foram feitos de outra forma. O nosso foi feito sem roteiro, radicalmente, algo que ele próprio pedia. A ideia pedia isso, ser um outro caminho. O meio de produção já era a própria mensagem dele.”
Mesmo custando cerca de US$ 500 mil, 400 vezes menos do que Divertida Mente e ⅓ do que provavelmente gastará a Disney apenas para promovê-lo ao Oscar, o fato é que “O Menino e o Mundo” está em pé de igualdade com os adversários na disputa pelo “careca dourado”, como diz a produção do filme. Já está na festa e poderá estar no palco. Quem sabe? Afinal, sonhar não custa nada…
CURIOSIDADES SOBRE O FILME:
Amoidi
A língua falada no filme não existe na vida real. Quer dizer, existe: é português, só que invertido. Airgela, por exemplo, é alegria. A ideia surgiu somente na fase final da produção e os músicos Feffer e Kurlat chegaram a compor uma música nessa língua estranha. A letra e seu significado estão aqui.
Boicote?
Horas antes de uma exibição especial do filme em Los Angeles (EUA), onde estariam jurados do Oscar, a distribuidora GKids avisou Alê que talvez fosse preciso cancelar a sessão. Motivo? A Pixar, produtora de Divertida Mente, havia decidido marcar um evento exatamente para o mesmo dia e horário. “Pode ter sido coincidência, mas a gente sabe que eles pegam pesado. Talvez tenham ficaram com medo”, disse, rindo.
Banho de lavanda
Mesmo com tantos prêmios, Alê Abreu não apostava que o filme poderia concorrer ao Oscar – pelo menos até véspera do anúncio. “Não achava que fosse rolar, mas naquele dia, não sei porquê, acordei com a intuição de que a gente seria indicado. Acho que foi o banho de lavanda do final do ano.” O diretor acompanhou o anúncio pela internet, isolado em um chalé da Serra da Mantiqueira.
Canseira
Durante três anos e meio, Alê Abreu e sua enxuta equipe se desdobraram para realizar o filme, que é um dos mais baratos na disputa pelo Oscar (R$ 1,5 milhão de produção + R$ 500 mil de divulgação). Hoje ele admite ser impossível realizar outro filme com essa estrutura. “Queria ter uma foto aqui para que vocês vissem o tamanho das nossas olheiras! É só uma vez na vida que a gente consegue fazer isso.”
Da telona para a TV
O filme fez tanto sucesso na França que será adaptado para a TV. A série, que que se chamará “Menino”, irá misturar dois longas, “O Menino…” e “On the Way to School” [2013, não lançado no Brasil], documentário de Pascal Plisson sobre quatro crianças de várias partes do mundo e o caminho árduo que enfrentam para chegar até a escola.
Próximo longa
Em 2016, Alê Abreu pretende se dedicar apenas a seu próximo longa, que deve se chamar “Viajantes do Bosque Encantado”. Ele explica: “Será um filme sobre duas crianças-bicho, que estão perdidas em uma floresta onde coisas estranhas acontecem. Elas são de dois reinos diferentes que estão em guerra (Sol e Lua) e se encontram em um lugar neutro, perigosíssimo e mágico, onde tem como principal desafio ficarem amigos. É um pouco dessa coisa de judeus e palestinos, talvez.”
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