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‘O Brasil é de costas para a América Latina’

Para Ney Matogrosso, o anseio brasileiro pela América do Norte é uma chatice, que revela uma mentalidade deturpada

em 04/01/2016 • 21h00
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Num final de tarde ensolarado, o maior intérprete vivo da música popular brasileira abriu as portas de sua casa no Leblon, no Rio de Janeiro, para receber a equipe da Calle2. Das amplas janelas de sua cobertura é possível contemplar o Cristo Redentor e observar uma grande extensão das águas daquele mar azul tão cantado em prosa e verso, que continua a encantar.

De calças jeans, camiseta branca e um tipo de alpargatas azul claro de pano estampadas com diminutas listras de cores diversas, Ney Matogrosso apareceu na ampla sala, olhou o trio à sua frente e logo perguntou ao fotógrafo Zarella Neto se ele havia trazido iluminação. Mestre da luz, responsável por iluminar shows de vários astros como Chico Buarque, Ney, claro, se preocupa com ela. “Nessa época do ano escurece muito cedo no Rio”. Ao ver o primeiro fotograma, se tranquiliza. Ficou intrigado com o tom esverdeado, mas logo começou a discorrer sobre o melhor lugar para se dar um mergulho na orla carioca.

“O Arpoador tem as águas mais limpas para o banho”, diz para o cantor RaphaZ, vocalista da banda Zabomba, que fez a ponte para a entrevista e com quem realizou um dueto em um show memorável em São Paulo. Ney, aliás, costuma apoiar novos grupos com os quais se identifica e incentivar novos talentos.

Sua figura magérrima, num primeiro momento, pode fazer com que se acredite ser ele um homem frágil. Nem de longe. Quando fala, mostra com a força de suas palavras o porquê despontou para a arte como um mestre da subversão e fez da transgressão sua maior arma para enfrentar o conservadorismo. “A América Latina é machista”, sintetiza o cantor, neto de avô argentino e avó paraguaia.

Verdadeiro meteoro da MPB, Ney surgiu no cenário musical com os Secos & Molhados, arrebatando uma legião de fãs com sua postura comportamental, que o seguem até hoje e lotam seus shows onde quer que se apresente. Em 1975, já fora dos Secos & Molhados, Ney lançou “Água do Céu-Pássaro”, seu primeiro disco solo. E cantou no feminino “Barco Negro” um fado eternizado pela cantora portuguesa Amália Rodrigues, que ouvia suas vizinhas portuguesas cantarem no subúrbio do Rio, onde foi criado. O disco foi mal recebido pela crítica à época, mas é uma obra-prima do artista.

Quarenta anos depois, foi a partir do disco que a Calle2 iniciou a entrevista com Ney, hoje com 74 anos, que se prepara para cantar Carlos Gomes e Heitor Villa-Lobos em um espetáculo com previsão de estreia para setembro deste ano, com direção da cineasta Ana Carolina Soares.

O que foi para você gravar “Água do Céu-Pássaro” após sair dos Secos & Molhados e cantar no feminino “Barco Negro”, um fado eternizado por Amália Rodrigues? Como foi isso?

Foi tudo o que eu queria fazer num disco de música. Cantar só o que me interessava além do repertório dos Secos & Molhados. A primeira vez que ouvi essa música foi aos 13 anos, quando vi um filme francês chamado “Amantes do Tejo”. A Amália Rodrigues aparecia cantando e aquela música era uma viagem. Quando fui fazer o meu primeiro disco, um amigo de Mato Grosso veio um dia na minha casa com um álbum dela e perguntou se eu conhecia. Quando ouvi o “Barco Negro” eu disse: “Meu Deus do Céu, chegou na hora certa” (risos). Porque aquela música nunca saiu da minha cabeça. Fui criado num subúrbio do Rio e tinha umas vizinhas portuguesas que cantavam aquela música e eu ficava ouvindo.

Você nasceu na fronteira com o Paraguai [em Bela Vista-MS]. Qual a influência dessa fronteira na sua vida e na sua música?

Minha avó era paraguaia e meu avô era argentino. Cresci ouvindo falar guarani e castelhano. Para mim, quando cheguei à música, eu queria oferecer também essa perspectiva de uma fronteira. Quando surgi no cenário artístico, o Centro-Oeste do Brasil era desconhecido completamente, era misterioso, era floresta, não era soja. Era um cerrado alto que ia virando floresta. E eu queria trazer isso. O cantar em espanhol fazia parte do meu ser. Porque lá todo mundo cantava, tocava violão nas festas, nas casas e dançava canções em guarani e em castelhano. Isso tudo me influenciou e faz parte da minha memória, da minha infância e adolescência.

O que você conhece hoje de música latino-americana?

Não sei muito. Nós perdemos o contato. Quando eu era criança e vim morar no Rio de Janeiro se ouvia nas estações de rádio músicas do mundo inteiro. Música francesa, portuguesa, espanhola, argentina. Se ouvia de tudo. Agora nós perdemos o contato. A gente não sabe de nada do que acontece ao nosso redor. O Brasil é de costas para a América Latina e anseia pela América do Norte. Eu acho isso uma chatice, uma mentalidade  muito chata, muito deturpada.

foto por: Zarella Neto
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Em qual trabalho seu você vê uma influência musical latina?

Talvez no disco “Seu Tipo”, quando usei um grupo de bolivianos com flautas. Mas fiz algumas participações com artistas da Argentina, canto músicas do Jorge Drexler [cantor uruguaio que ganhou um Oscar por melhor canção original]. Mas, por exemplo, eu não conheço o Chile. Vou agora em maio. Vou voltar de novo para o Uruguai e Argentina e encerrar a turnê do show “Atento aos Sinais”. Tem uma música de Pablo Neruda muito linda que a Mercedes Sosa canta que eu vou cantar um dia, chamada “Poema 15”.

No show “Atento aos Sinais”, o público sai do teatro querendo mais. E você não para um minuto. Qual o segredo da tua eterna juventude em cima do palco?

Acho que é a minha cabeça. Todos os repertórios que canto sou  eu que faço. Não tem ninguém que me diga ou dirija. Sou eu que invento. Quando eu vi essas músicas todas juntas eu percebi o tamanho da confusão que tinha me metido (risos). Porque era uma estiva, bem puxado. Aí disse para mim na frente do espelho: ‘Inventou, faz!’. Não tem essa. Entro no palco e dou conta. Claro que saio cansado, mas sempre saí cansado. No tempo dos Secos & Molhados, tinha que entrar numa banheira de água quente após me apresentar. E nesse show viajo com 26 pessoas, para ter tudo em cima funcionando. Ganho menos, não tem importância, mas tudo funciona.

Você pensa em fazer um tributo a um artista como fez com Chico Buarque, por exemplo?

Penso sim na possibilidade, mas não consigo me decidir. Quando começo a ouvir o Caetano Veloso eu tenho vontade de fazer porque o Caetano foi o único artista que eu prestei atenção num determinado momento da minha vida. Quando eu prestei atenção nele na Tropicália eu pensei assim: “Se eu fosse artista queria ser alguma coisa assim”. Eu não queria ser ele, mas eu queria provocar nas pessoas o que ele tinha provocado em mim porque a primeira vez que eu vi o Caetano fora daquela coisa toda da televisão foi em Brasília no auge da ditadura militar. Eu fui à única sorveteria que tinha na cidade e quando estou entrando vejo ele saindo do único hotel que existia na cidade vestido inteiro de cor de rosa do pescoço até o pé. Essa cor um homem jamais poria. Aquilo foi uma perturbação na minha cabeça porque era uma transgressão absoluta. Homem não usava aquela cor nem dentro do tênis, nem escondido na cueca. E eu entendia que a perseguição ao Caetano não era política, mas comportamental. O Caetano acendeu uma coisa dentro de mim. E quando vi o Caetano eu era um funcionário público, cantava num coral só para encontrar os amigos e ter alguma coisa para me divertir porque não tinha o que fazer em Brasília. E quando fui chamado para os Secos & Molhados eu não sabia o que ia fazer. Havia uma proposta de a gente vir com boinas de Che Guevara e eu disse que não ia por e iria fazer o que eu quisesse. Eu queria me liberar porque a gente vivia num país onde não se podia ter uma opinião, sair do rebanho.

 Olhando para trás e olhando hoje como você vê no Brasil a questão dos gêneros?

O Brasil encaretou, houve uma regressão. Na América Latina não tenho noção porque a América Latina é realmente muito machista de maneira geral. Deve haver alguns lugares mais liberados, mas aqui no Brasil vejo um retrocesso. Ao mesmo tempo  em que tudo aparece, os direitos são exigidos, e tudo isso está exposto, os evangélicos estão dentro do Congresso brasileiro. E aí?

Existem épocas de transgressão e de regressão. Nós estamos num momento de regressão, mas daremos outros passos em direção à liberação. Acredito muito nisso e a gente tem que ser paciente porque queremos tudo para hoje, as transformações e mudanças todas para agora. Mas não são assim que elas funcionam. Elas têm um prazo. É como o mar. Vem e vai.

Estamos entrando na Era de Aquarius, que promoverá toda essa liberação. Toda essa sordidez que a gente está vivendo no mundo faz parte do processo para Aquarius se instalar e colocar para fora toda a imundície humana. Tudo vai ser visível para depois acontecer outra coisa. A gente viu policiais batendo em crianças em São Paulo durante a ocupação das escolas. Quem poderia pensar que isso iria acontecer? É um absurdo, mas isso também gera uma reação nessas crianças, que estão chegando ao mundo e vendo qual é a situação do planetinha que elas estão vivendo. E elas são crianças, que vão crescer e vão mandar.

Você chegou a sofrer algum tipo de agressão em sua carreira?

Nunca. Só recentemente quando dei uma entrevista em Portugal criticando o governo Dilma e fui chamado de esquerdista maconheiro a fascista de direita.

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Como foi aparecer seminu com os Secos & Molhados na TV, no programa Silvio Santos, por exemplo?

Acho que hoje um grupo como os Secos & Molhados apanharia na rua. Não sei… Naquela época eu observei que, como o Brasil vivia sufocado, senti que emanava do povo uma simpatia muito grande por aquela maneira da gente se apresentar. E as crianças gostaram muito daquilo. Enquanto os adultos achavam que aquilo era sexualizado, as crianças não viam isso. Na cabeça delas a gente era um desenho animado. E eu não queria ocupar o espaço da mulher. Eu queria ocupar um espaço híbrido, onde eu pudesse ser qualquer coisa, ser compreendido de qualquer maneira, como um inseto, um unicórnio. Às vezes vinha com um chifre na testa, antenas, não era uma figura humano. Era sexualizado porque eu tinha 30 anos. Como eu ia conter? (risos).

Toda essa criatividade tem muito a ver com a sua imersão no teatro. Você é um ator, iluminador, diretor…

O teatro me preparou para isso. Porque antes dos Secos & Molhados cheguei a fazer algumas peças e por acaso todas eram musicais onde eu tinha que cantar e dançar. Em uma eu saía de cena três vezes e voltava como outro personagem. Então cheguei nos Secos & Molhados e criei aquele personagem que não era um só porque cada dia era um. Não tinha uma única maquiagem. Cada dia eu me pintava do jeito que eu queria, colocava em cima de mim o que eu queria, era muito livre. As primeiras vezes eu usei calça, mas eu quase morri de tanto calor. Aí tirei as calças e vesti um tapa-sexo e por cima dele eu pendurava panos e outras coisas. Fazia os adereços e alguns amigos começaram a fazer objetos para mim como testas com bicos de passarinho, asas de passarinho.

Você sempre usou figurinos exuberantes. Onde estão eles?

Alguns estão comigo, outros no Senac em São Paulo. No show “Feitiço”, por exemplo, eu descia uma escada num palco cheio de bananeiras e eu usava uma calça toda de babado amarelo e uma roupa de moedas que pesava dez quilos. O colete eu tenho guardado até hoje, mas eu tinha uma cabeça linda, que estupidamente eu desmanchei, com um dólar de prata gigante bem no meio da minha testa (risos). E essas roupas todas estão no Senac, numa sala ambientada com ar condicionado. Mas as roupas  mais lindas, com crina de cavalo, se perderam.

O que você canta em casa?

Nada. Raramente eu cantarolo em casa. Não ouço muita música. Escuto mais quando vou gravar, quando estou procurando repertório. Porque como eu recebo muita coisa eu guardo, e quando vou fazer um disco eu dou uma geral.  Mas coloco para tocar e vou fazer as minhas coisas. Se algo chama a minha  atenção aí vou lá, vejo que música é aquela, marco o nome, seleciono, depois ouço de novo e vou formando o repertório assim. Mas não sou de ouvir muita música não.

Você está pronto para fazer um novo trabalho ou vai dar uma parada após o “Atento aos Sinais”?

Já tive época de fazer dois trabalhos ao mesmo tempo. Ia começar agora um trabalho novo, mas vai atrasar para depois das Olimpíadas. Era para acontecer em abril, um repertório muito difícil, e foi adiado para setembro, o que me deixou tranquilo. Ainda tenho muitos shows do “Atento aos Sinais” e se o novo espetáculo fosse em abril ia chegar um momento em que eu teria que fazer os dois ao mesmo tempo. Seria praticamente impossível porque preciso estar com minha voz descansada para poder cantar um repertório dificílimo. É um projeto da Ana Carolina Soares, diretora de cinema, que me convidou para participar e eu vou cantar Carlos Gomes e Heitor Villa-Lobos e um ator vai falar poemas de Gonçalves Dias.

Muitos artistas decidem em algum momento de sua carreira interpretar no palco, na íntegra, um disco que consideram significativos em suas trajetórias. Você nunca pensou em fazer isso?

Eu tive vontade de reprisar o “Bandido”, que foi o show mais abusado da minha vida. Eu trocava de roupa toda, inclusive de tapa-sexo, na frente da plateia. Tinha um biombo que se eu ficasse na ponta do pé os pentelhos pulavam para cima. Havia um espelho oval atrás de mim que quem sentasse de um determinado ângulo na plateia me via nu pelo espelho. Mas eu estou velho para fazer isso. Gosto dessa brincadeira de trocar de roupa, de provocar.  Naquele show eu pegava um abano de acender brasa, ficava me abanando e cantando “Boneca Cobiçada” (risos). Era tudo uma provocação do começo ao fim, porque eu não me considerava a boneca cobiçada, mas as pessoas achavam que eu estava falando de mim. Isso era uma subversão. E quando vi que as pessoas viam dessa maneira eu achei mais subversivo ainda. E estamos falando de 1976, o auge da repressão política. E a subversão é inerente à arte, mas não é obrigatória. ‘Tem Gente com Fome’, que era uma música dos Secos & Molhados, eu só consegui gravar em 1986. Todo ano eu mandava para a censura, até que liberaram.

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Quem você ainda não gravou e gostaria de gravar?

Tenho muita vontade de cantar alguma coisa do repertório do Fagner porque tem coisas dele que eu adoro. Mas isso qualquer hora rola.

Como foi viver o “Bandido da Luz Vermelha” no cinema? Você vai ao cinema, acompanha as produções latinas?

Adorei fazer o “Bandido”. E também fiz o “Ralé” com a mesma diretora, Helena Ignez. Ela é danada. Para fazer o “Bandido da Luz Vermelha” não teve muito ensaio porque ela não queria. O cinema dela é de outra maneira. Ela prefere que você não ensaie. Eu decorava o texto e ela pedia para eu decorar sem intenção. Mas na hora de falar você vai botar a sua intenção. E eu entrei naquele personagem que tinha toda a descrição que ela havia me dado: ele está há 35 anos preso, é mal-humorado, rancoroso, é das trevas (risos), então é isso que você tem que ser. E eu assisto muito cinema latino-americano no Canal Brasil. Sei que tem coisas boas recentes do cinema argentino, mas não tenho visto. Eu quase não vou ao cinema, quase não saio de casa, porque também paro muito pouco na minha casa. Queria muito ter visto “Que Horas Ela Volta?”, da Ana Muylaert. A Regina Casé é muito boa atriz. Muito melhor do que ela pensa.

Você cantou “Deus salve a América do Sul”. Acha isso profético?

Tivemos a ilusão de que tinha acontecido uma mudança na América Latina. Mas tudo que vemos agora acontecer na Venezuela, no Brasil, na Argentina, que achávamos que seria uma coisa maravilhosa, está caindo em toda parte.

Como o público latino recebe você?

Fui muitas vezes à Argentina, sempre muito bem recebido, mas quando fui cantar pela primeira vez em Montevidéu o público do Uruguai foi de uma tal extroversão e receptividade que, na terceira música, depois que eu cantei “Vida Louca”, parecia que o show havia terminado. Foi uma coisa muito louca, extrovertida. Eu já tinha ido muitas vezes ao Uruguai para cantar em cassinos até que eu achei que se fosse para cantar em cassinos eu não voltava mais. E nunca mais fui. E ter ido agora foi maravilhoso.

No Uruguai, você teve um encontro com o ex-presidente Pepe Mujica? Qual a sua impressão?

Foi tranquilíssimo. Aconteceu no final de 2014, antes das eleições. A produtora que me levou para fazer o show é casada com um senador. Eu não sabia de nada disso. E ela perguntou se eu gostaria de conhecer o presidente. Eu disse que sim, mas perguntei por que ele me receberia. E ela falou que o Mujica queria me conhecer porque ele gosta muito de determinadas opiniões minhas. Depois eu entendi tudo. Fui ler uma biografia dele e vi que falo coisas que ele também fala sobre direitos humanos, por exemplo. Ele é um homem maravilhoso e eu fiquei muito feliz de ter ido lá. (leia aqui entrevista que a Calle2 fez com Pepe Mujica)

Aliás, você fez um show em São Paulo pelos Direitos Humanos recentemente.

Sim, e aconteceu uma coisa estranha depois do show. Eu saí de lá com um amigo e fomos até uma lanchonete nos Jardins. Eu estava lá sentado e veio um japonesinho com uma camiseta amarela que eu nem olhei e pediu para tirar uma foto comigo. Eu disse que sim, como digo para qualquer pessoa. No dia seguinte, vários amigos me mandaram a foto com ele, que estava nas redes sociais, me dizendo que o menino era um tal de Kim Kataguiri, de extrema-direita, com a legenda “um grande ídolo e defensor do impeachment”. Aí eu falei com a Belinha, que faz minha divulgação, e ela disse que era melhor esperar porque se colocasse o foco nele e reagisse essa talvez fosse a intenção dele. Como eu ia adivinhar quem era aquele menino? Nunca tinha ouvido falar nele.

Você costuma criar muito à noite? Lê? Escreve?

Não. Eu tenho que tomar um ansiolítico porque senão minha cabeça destapa. Eu faço três shows numa noite só na cabeça. É muito criativo, mas é muito desgastante. Preciso de uma coisa para a cabeça aquietar. Quando viajo levo comigo uma fita crepe para lacrar as janelas porque se entrar uma fresta de luz eu acordo e não durmo mais. Eu mesmo prego porque tenho vergonha de pedir (risos). E peço para deixar como está. Tenho a cabeça muito ligada, por isso não tomo drogas que me liguem. Eu gostava de Mandrix [droga feita a base de metaqualona, um sedativo usado em comprimidos para dormir nos anos 70], um remédio maravilhoso que você tomava e não dormia, mas ficava sem censura absolutamente nenhuma (risos). Ficava cheio de amor para dar. ” Mas não tem mais no mundo. Era a droga do amor. Todo mundo tomava. Eu já provei de tudo, tomei de tudo, mas nunca gostei de nada que me acendesse. Eu gosto de coisa que me relaxa, que me acalma.

Como é isso de ir para o meio do mato?

Eu gosto muito de bicho. Essa está comigo há quase trinta anos [Ney aponta para Garota, uma fêmea de macaco prego dentro de uma gaiola gigante que fica na varanda de sua cobertura e vive solta pelo local]. Ela anda por tudo. Ganhei do Manoel Poladian [famoso empresário de artistas]. Cheguei em casa, tinha uma encomenda dentro de gaiola de gato. Quando abri ela estava com um cintinho de couro que serve como coleira. Aí falei: ah não!  Coloquei ela de volta na gaiola, fui pegar uma tesoura, voltei, e ela já estava dormindo. Ela acordou, veio na minha mão, eu cortei o cinto e ela entendeu tudo na mesma hora. Agora, sabe o que está acontecendo lá no meu sítio em Sampaio Corrêa? Eu estou soltando passarinhos que foram domesticados, foram recolhidos pelo Ibama por conta do tráfico de animais e foram levados para lá. O Ibama recolhe, leva para um centro de triagem de animais que está numa situação horrorosa, sem dinheiro para dar comida para os bichos. Eles ficam numa quarentena, eu banco todos os exames deles porque se você soltar um bicho doente você contamina toda a mata. Se não tiver doença eles vão para um espaço de transição no meio da mata, com telinha e água corrente. Numa certa hora vamos lá e abrimos a porta para eles saírem. A maioria vai embora, mas muitos estão ficando por ali. E eu gravo horas e horas de sons dos pássaros. E eu solto todos. Dessa última leva foram soltos uns 60. Um deles não foi embora porque não estava voando e ficou dentro de uma gaiola grande na cozinha de casa. E esse que não foi embora canta e os outros vêm. E a minha casa está sendo invadida por passarinhos. O redor dela está virando uma sinfonia de passarinhos. E eu gravo todos aqueles sons. Tenho horas e horas de gravação.

Você lida bem com o estar só?

Não tenho nenhum problema em ficar sozinho. Sempre gostei. Preciso. Não que eu seja antissocial. Sou uma pessoa normal, gosto de gente. Mas não tenho problemas de ficar sozinho porque as pessoas têm, principalmente dentro do mato. As pessoas acham que detrás de cada árvore tem uma cobra pronta para lhe atacar quando você passar. E as pessoas deveriam ter medo de estar no Leblon.

O que falta pro dia nascer feliz?

Está tudo errado. Falando em termos do nosso país. São milhões de reais desviados pela corrupção. Se esse dinheiro tivesse sido posto a favor do povo brasileiro nós teríamos uma saúde, educação, transporte e moradia exemplares. Vejo coisas absurdas porque viajo pelo país inteiro. No Pará vi uma fila por volta das duas horas da tarde só com gente idosa, num calor absurdo. E me disseram que as pessoas estavam na fila para tomar uma sopa. Isso é imperdoável num país onde se joga grãos de milho no meio do entulho e brotam pés nos escombros de concreto.

É possível definir o Brasil numa frase?

Está muito difícil. A situação está muito cínica. O cinismo impera. Mas tem São Paulo. Apesar de tudo, São Paulo é desregrada. Um dia desses passei numa esquina e só tinha meninas lésbicas adolescentes diante de um bar. Então São Paulo é tipo rompe e rasga (risos).

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