O abraço da serpente
Cultura

O abraço da serpente

Filme colombiano deixa para trás o brasileiro “Que Horas Ela Volta” e é o único latino na disputa pelo Oscar de melhor filme estrangeiro

em 22/12/2015 • 21h00
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Evans, um pesquisador norte-americano, busca uma planta exótica (a yakruna) na labiríntica floresta amazônica. Em seu percurso, encontra o xamã Karamakate, que, depois de demonstrar pouca simpatia pelo viajante, decide ajudá-lo. Ambos iniciam uma jornada que desperta a memória difusa de Karamakate, já idoso. Surgem suas lembranças de outra viagem ocorrida muitos anos antes, em que ele foi o guia de outro expedicionário, o alemão Theo, enfermo e que precisava de auxílio. Karamakate, Theo e Manduca (índio que auxiliava Theo) saíram em busca da mesma yakruna que Evans procura, cujos segredos estão escondidos na selva.

Embora o enredo se aproxime ao de um filme brasileiro, esta é a história de O abraço da serpente, co-produção entre Colômbia, Argentina e Venezuela, dirigida pelo colombiano Ciro Guerra e que levou cinco anos para se concretizar, devido aos cuidados próprios de uma filmagem na floresta.

Com roteiro baseado nos diários de viagem dos exploradores Richard Evans Schultes e Theodor Koch-Grunberg, o filme estreou na Colômbia em maio, logo após chamativa passagem pelo Festival de Cannes, onde recebeu o prêmio C.I.C.A.E. (Confédération Internationale des Cinémas d’Art et d’Essai, na Quinzena dos Realizadores).

Agora, ele volta ao debate por ser o único título latino-americano presente na lista do Oscar de melhor filme em língua estrangeira. É a primeira vez que um colombiano foi indicado ao prêmio, que acontecerá no dia 28 de fevereiro de 2016.

O Abraço da Serpente concorre com títulos de peso, como o húngaro Son of Saul e o francês Cinco GraçasMas, por outro lado, conseguiu se destacar frente a outros fortes candidatos da América Latina, como O Clã (de Pablo Trapero), sensação argentina que já levou mais de 2,5 milhões de espectadores aos cinemas, o brasileiro Que Horas Ela Volta? (de Anna Muylaert), premiado nos festivais de Sundance e Berlim, e o chileno O Clube (de Pablo Larraín).

Há algo de inebriante em O Abraço da Serpente. Sua atmosfera é angustiante, enigmática, e a morte parece rondar alguns cenários como uma observadora paciente. De início, pode ser difícil mergulhar no gigantesco território da selva, mas, aos poucos, não resta alternativa senão embarcar em uma viagem sensorial. Ao final, acordar do transe e sair do cinema para a rua não é tarefa simples.

Isto se dá, em boa medida, pela imersão promovida pela impecável fotografia em preto e branco (e em 35mm!), que valoriza os contrastes e os detalhes da floresta e de seus rios, e também pelo cuidadoso desenho de som, que amplifica a sensação de deslocamento rumo ao desconhecido.

Neste cenário belo e, ao mesmo tempo, inóspito, Karamakate, Theo e Manduca seguem em busca de uma possível cura para a enfermidade do cientista alemão (em interpretação primorosa do belga Jan Bijvoet), passando por locais e situações que testam a racionalidade. O xamã Karamakate, último sobrevivente de seu povo, é o eixo desta narrativa não-linear. Suas memórias e, em alguns momentos, sua luta para resgatá-las, promovem a conexão entre o presente com o explorador Evans e os fragmentos do passado com Theo, em que três níveis distintos de acúmulo de conhecimento se chocam.

Karamakate tem a sabedoria ancestral que não pode ser transmitida adiante, pois seu povo foi dizimado pelo colonizador branco. Ele não deposita confiança nem em Theo, que pensa no benefício mútuo, nem em Evans, cujos objetivos parecem pouco nobres. Este conflito entre saberes sustenta a narrativa do filme.

Algumas cenas são desoladoras e se situam na fronteira entre a realidade e o delírio, com personagens perdidos (algo grotescos), como consequência dos descaminhos de uma colonização forçada e problemática.

Outro fator relevante é o desdém com que Karamakate trata Manduca, tanto pela ajuda prestada a Theo quanto pelo período em que ele viveu na cidade, antes de retornar à selva. O xamã o desqualifica por se deixar usar pelo homem branco, embora Manduca esteja tentando se reaproximar de suas raízes.

Esta rusga se explica pela violência do colonizador ao promover o extermínio das populações indígenas, que Karamakate não está disposto a perdoar, afinal, o contato com o explorador colombiano é sempre sentido como um perigo iminente.

Mas, apesar de apresentar este quadro adverso, o filme propõe uma reflexão sobre o uso correto dos recursos naturais disponíveis. Aponta problemas, questiona a colonização irracional que desrespeita os limites da natureza, mas, sobretudo, aborda a necessidade de uma exploração sustentável que as comunidades indígenas fazem da floresta.

Ciro Guerra entende que este é um dos aprendizados do processo de filmagem de O Abraço da Serpente, como comentou em entrevistas na época da estréia. É um grande ensinamento deste jovem cineasta (nascido em 1981) que já é um veterano neste momento de ascensão do cinema da Colômbia. Seus três longas-metragens viajaram o mundo em festivais e os dois primeiros (La Sombra del Caminante, de 2005, e Los Viajes del Viento, de 2009), foram apoiados por importantes fundos internacionais de fomento, como o Ibermedia, o Hubert Bals Fund (Festival de Rotterdam) e Cine en Construcción (Festival de San Sebastián).

A boa notícia é que O Abraço da Serpente terá distribuição comercial no Brasil em fevereiro pela Esfera Filmes.

Outro filme colombiano que também foi premiado é A Terra e a Sombra, sobre a história de um pai que retorna a um vilarejo do interior para retomar contato com a família deixada para trás. Lá, encontra o filho doente pelo contato direto com a fumaça das queimadas em canaviais, em outro enredo que poderia ser visto em um filme brasileiro. Estes dois ótimos títulos atestam não apenas a crescente qualidade do cinema colombiano contemporâneo, mas também a imediata comunicação com a realidade do Brasil e dos demais países da América Latina.

Leia este artigo em espanhol em Pressenza

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