“Playa hippie Colômbia”. Foi essa combinação de palavras jogadas no Google que me levaram a Taganga. A busca não era simples. Escolher um bom lugar para morar. Um relacionamento estável entre dois jornalistas freelancers, que só precisavam de acesso à internet para trabalhar, e critérios pouco ortodoxos na seleção do destino nos levaram a essa prainha de pescadores na costa do caribe colombiano.
Primeira parada: Cartagena. Com suas muralhas e histórias de piratas, andar pelas charmosas ruas do centro histórico da cidade, por onde caminhou Gabriel Garcia Márquez, é como um curso intensivo de Caribe, ou do povo colombiano-caribenho.
A salsa exageradamente alta tocada e o calor de uma população que muitas vezes nos lembra de casa, acompanhado sempre de muita malícia. Saber desenrolar bem diante da fala apressada dos vendedores de passeios a garrafas d’água, que apelam para o terror psicológico e liquidez extrema de preços, equivale a um bom número de aulas de espanhol, e de vida.
Cinco dias e uma van apertada cheia de mochileiros de nacionalidades diversas depois, chegamos à cidade na qual passaríamos os próximos dois meses. Uma vila de pescadores, Taganga é na prática um bairro de Santa Marta, a capital do departamento de Magdalena. O Distrito Turístico, Cultural e Histórico de Santa Marta é uma cidade que tem um pouco de agricultura e um pequeno porto, mas como seu nome já diz, tem no turismo sua principal força. Seu centro histórico se junta à beleza natural do caribe, se tornando um importante destino de turístico.
A praia do centro em si, onde fica o porto, não é das mais bonitas. Famílias da classe média colombiana e estrangeiros que buscam hotéis e restaurantes mais sofisticados, escolhem normalmente a praia de Rodadeiro, com sua água azul clara que contrasta com a areia escura, seus milhares de guarda-sóis e um cinturão de prédios altos que cobre todo o arredor. Mochileiros, hippies, artesãos, e quem se sente mais confortável com um estilo mais simples, vão para Taganga.
Povoado descendente dos índios Koguis, que ainda hoje habitam a Serra Nevada de Santa Marta, foi um dos primeiros a ser fundado pelos invasores espanhóis no século XVI (junto com a própria Santa Marta). Somente na década de 60 ganhou o acesso por terra com uma estrada até o centro. Carros, táxis e pequenos e coloridos ônibus fazem o trajeto em 15 minutos.
Na década de 70, porém, Taganga entrou de vez no mapa. Era a época da chamada bonanza marimbera. As terras da Serra Nevada de Santa Marta, usada por tanto tempo para o cultivo de coca para uso ritualístico dos indígenas, começaram a dar espaço (à força) às plantações de maconha. As águas calmas da bela baía de Taganga usadas para o escoamento da produção (em uma viagem pescadores ganhavam o equivalente a uma vida de trabalho). A fartura atraiu muita gente para a cidade, até 1985, quando os maiores compradores, EUA, começaram a diversificar seus fornecedores. A bonança chegou ao fim.
Coincidência ou não, foi nessa é época que começaram a surgir os primeiros hostels e hotéis. Além de ser opção mais orgânica na histórica Santa Marta, Taganga passou a ser ponto de parada para centenas de turistas estrangeiros, principalmente europeus, israelenses e americanos, que querem conhecer o paradisíaco vizinho Parque Tayrona ou a Serra Nevada de Santa Marta e seus povos indígenas.
Para completar a confusão que é o povoado de cerca de três mil pessoas, Taganga é parte indispensável do roteiro de quem viaja pela América Latina, sejam eles vendedores de artesanato, músicos, malabaristas ou mochileiros. Para esses, além de conhecer lugares incríveis, um outro fator colocava aquela vilinha de pescadores na rota: a festa.
O nosso primeiro amigo por lá se chamava Felipe. Taganga tem três ruas asfaltadas. Uma que liga a entrada da cidade até a praia, outra na orla e outra até a igreja. Quiosques e um calçadão separam a areia da praia do restante da cidade. A rua, já que em uma parte o trânsito de carros é proibido, fica ocupada por vendedores de artesanato, bebidas e comidas. Do outro lado, lojinhas de presentes e tranqueiras, restaurantes e mercadinhos fechavam o cenário beira-mar.
Em um desses mercadinhos, com a cerveja barata, um vendedor de artesanato semi-calvo, com dreads no restante do cabelo e olhos gigantes se posicionou estrategicamente, utilizando sua desenvoltura e bom portunhol para conseguir pelo menos uma cerveja de quem não queria comprar seus brincos e pulseiras. Era o campineiro Felipe.
Depois vieram outros tantos amigos. Bastava descer umas ruas para chegar à beira da praia e encontrar dezenas de pessoas, conhecidas da noite anterior ou recém-chegados, para conversar, dividir uma cerveja e entrar na festa.
Foi fácil encontrar uma casa em Taganga. São diversas as opções de hospedagem por lá, de hotéis confortáveis, a pousadas, hostels festeiros, campings, e, para quem quer ficar mais tempo, dá para alugar uma casa.
Entre as ofertas estava uma casinha rosa e verde, do lado do rio que só enche quando chove. Dentro dela, televisão de sei-lá-quantas-polegadas, ar condicionado, geladeira, internet sem fio, computador e mais conforto do que precisávamos. Nosso aluguel era bem menor que o de São Paulo.
Tirando a Taganga turística, as casas são em sua maioria bem simples, sem grandes televisões e computadores. O pessoal não tem dinheiro não. O lado direito da praia é dominado por barcos dos pescadores, impossibilitando o banho e afastando os turistas. Ali estavam os setores mais pobres de Taganga. Lado que turistas deveriam evitar, principalmente o bairro chamado Hollywood, que subia os morros que cercam Taganga. Pouco espaço pra tanta desigualdade.
“Sorte” dos turistas, que como nós, aproveitavam os preços baratos nas lojas, nos restaurantes, na fartura de peixes. Perambulando por lá, vendedores de cocaína e maconha, igualmente baratas, que trabalhavam intensamente.
Como primeiro destino de nossa viagem, não podia ter escolha mais perfeita. Nas manhãs que acordávamos com mais disposição, uma caminhada nos levava à bela Praia Grande. Que nem é tão grande assim, mas não tem ruas, calçadão nem dezenas de barcos, somente alguns restaurantes de madeira, lona e chão de areia. A água era azul clara, transparente, e a areia branca.
Em uma segunda-feira de sol, Taganga estava vazia. A água que toda noite chegava ao povoado, fazia dias que não vinha. Os moradores reclamavam que a que chegava só dava para encher a caixa d’água dos hotéis, comandados por gringos. Nem uma gota para os nativos. Pedindo providências do poder público, fecharam a estrada que dá acesso à Taganga. Ninguém chegava ou saía da cidade que não fosse de lancha pelo mar ou a pé. Os turistas não chegaram.
Por volta do meio-dia, sem vontade nenhuma de trabalhar, fui para a Praia Grande. O caminho é pela encosta da montanha. Estava sozinho e tranquilo na trilha, até que uma curva escondia um adolescente branco, meio gordo e com uma 38 na mão. Olhei para trás e havia um outro jovem, magrinho, com uma faca. Me mandaram caminhar em silêncio por outra trilha, subindo a montanha. “Onde vocês tão me levando?”.
Me mandaram ajoelhar com a cabeça quase colada no chão. A ordem era não olhar para cima. “O que vocês querem comigo?”. Apareceram mais uns três sujeitos, que viraram e reviraram minha mochila. Tchau máscara de mergulho. Tchau celular comprado na semana anterior. Tchau 20 mil pesos. “Por que diabos eu levei o celular pra praia também heim?”. “Ainda bem que não estava com a minha câmera”.
Pra botar pânico em todo mundo, ainda ficaram ameaçando me amarrar. “Não. Não precisa amarrar ninguém não. Deixa meu celular. Preciso dele pra trabalhar. É importante”, tentei por em prática os ensinamentos adquiridos, desenrolando em espanhol. Deixaram o chip. “Pô… mancada me roubar. Sou brasileiro. Europeu que é cheio da grana”. Não é daqui, é tudo a mesma coisa. Cállate.
Uns minutos depois de todos sumirem, levantei e voltei sofrendo pelo calor das pedras queimando meus pés descalços (ah.. levaram meu chinelo também). Já em Taganga, um grupo ouvia atentamente a história de um casal que acabava de ser assaltado quando ia para a Praia Grande. Na polícia, fizeram questão de anotar tudo em um caderninho. Só dá para fazer alguma coisa quando é flagrante.
Depois disso, não sei se por assunto em comum, ou se pela crescente onda de assaltos, todos tinham uma história de violência para contar. Roubaram um, entraram na casa de outro. Ficávamos esperando o dia que íamos chegar em casa e tchau TV de não sei quantas polegadas, tchau ar-condicionado, tchau nossas roupas, tchau nossos computadores.
Em um povoado pequeno, todos sabem de tudo. Todo mundo sabia quem assaltava, quem vendia droga, quem traía a mulher, quem bebia demais. Um amigo tagangueiro até me procurou para ver se eu reconhecia um gordinho como o assaltante. Não quis nem ver quem era. Se a polícia não faz nada, o que diabos eu ia fazer?
O paraíso que vivíamos foi perdendo a graça.
Ainda passamos por outras três cidades colombianas, mais Equador e Peru antes de, seis meses depois de deixar Taganga, voltar para o Brasil. Nunca mais a água foi tão clara, as praias tão bonitas, a noite tão divertida, os amigos tão variados, a droga tão farta, a desigualdade tão gritante. É verdade que a grande maioria de quem passa por lá só volta com fotos lindas e histórias de festas e amores, mas mergulhar nessa confusão chamada Taganga faz um bom cenário da América Latina de veias abertas.
FOTOS: FELIPE FLORESTI