No palco, sempre descalça, Totó La Momposina desfila sua majestade. O lenço no cabelo e o longo vestido bordado com as cores de seu país, típicos das dançarinas de cúmbia, fazem lembrar uma espécie de Carmen Miranda do Caribe. Aos 78 anos, ainda dança com energia de menina acompanhada do ritmo dos instrumentistas com seus “sombreros vueltiaos”, modelo típico de chapéu de povoados do litoral colombiano.
O que os pés descalços revelam é de onde veio e como tudo começou. Sonia Bazanta Vides, de apelido Totó, ganhou no nome artístico também o gentílico de sua terra natal, a Ilha de Mompox, no caribenho estado de Bolívar, na Colômbia. De família de músicos tradicionais, quando criança já cantava descalça pelas ruas da ilha. A violência da guerra fez com que a família tivesse que ir morar em Bogotá, onde sua mãe, hoje com 97 anos, comandou um grupo para difundir a música e cultura da costa colombiana, do qual seus filhos participavam.
Já como jovem estudante universitária, Totó voltaria a viajar pelos longínquos povoados colombianos buscando aprender mais dos ritmos, danças e forma de vida no interior e no litoral do país.
“Quando comecei a cantar, a música que eu tocava não existia para a Colômbia. Mesmo para músicos famosos dessa época, essa música não existia”, disse à Calle2 falando da invisibilidade da música ancestral, como gosta de chamar os ritmos populares surgidos fora dos grandes centros do país.
Ainda hoje se define como “cantadora”, como as bravas mulheres que mantém viva a música e a cultura tradicional nesses locais. Leva no corpo e no ritmo a marca da mestiçagem afroindígena: os olhos ligeiramente puxados, cabelos cacheados, pele negra e nariz grosso. Assim como a cúmbia, carro-chefe de seu repertório, que surgiu da mistura dos tambores africanos com a gaita tipicamente indígena, incorporando também os instrumentos de corda de origem europeia.
Mas o show de Totó vai além. É uma verdadeira viagem pelos ritmos tradicionais colombianos, incluindo o porro, o mapale, a chalupa e outros. Curiosamente, essa música, originada das comunidades e invisível no próprio país, foi ganhando o mundo com Totó e outros artistas. “Sempre fui uma senhora aventureira. Não sei por quê. Acho que era o que tinha que fazer”, analisa. A primeira viagem internacional veio com o convite para participar de um evento na França, quando a companhia aérea Air France inaugurava um voo à Bogotá e queria atrair os franceses para viajarem à Colômbia.
Nos anos 70, realizou uma turnê pelas diversas repúblicas da então União Soviética, onde diz ter feito cerca de 180 shows. Em 1982, foi uma das convidadas para integrar a delegação de artistas populares de diversas regiões colombianas que se apresentou na cerimônia de entrega do Prêmio Nobel de Literatura para Gabriel García Márquez (1927-2014).
De voz calma e jeito suave fora dos palcos, Totó gosta de preâmbulos. Quando pergunto sobre esse convite ela prefere desviar e começar falando de Gabo, apelido do autor de “Cem Anos de Solidão”. “O que ele fez foi organizar todo esse acervo popular no contexto do modo de vida de uma pessoa da costa que sai do campo mas que mantém uma filosofia que vem de geração em geração”, pontua.
Ri sozinha ao lembrar do “maricômetro”, que aparece na obra de Gabo e ela atesta que sim existe no interior do país. Seu riso me contagia, e ela o transforma em gargalhadas, entre as quais conta que o “maricômetro” é um pêndulo que as mães colocam sobre a barriga das filhas grávidas, que dependendo da inclinação diz se o filho será homem, mulher ou “maricón” (gay em espanhol, na maneira mais popular, embora pejorativa, de se dizer).
A viajante Totó ainda se aventurou em voltar à França, dessa vez para aprofundar seus estudos na área musical na renomada Universidade de Sorbonne, em Paris. Seguiram também muitas apresentações pela Europa. Mesmo deixando as ruas de seu povoado para ganhar os palcos do mundo, é do saber popular que Totó continua se nutrindo para preparar seu repertório. Acredita que a música é algo inato da pessoa, que vem do coração e do meio em que nasce. Que o tocar e cantar vem da intuição, da curiosidade, do imitar dos animais e da natureza. E que o ritmo vem do caminhar. “O bonito da música ancestral é que está transmitindo o cotidiano do homem popular, do homem que tem tempo para contemplação. Então as composições expressam tudo que o rodeia e também seu cotidiano e modo de viver”, diz.
Ela lembra que nos tempos da colônia a cultura tradicional não tinha espaço nos templos religiosos ou artísticos mas se mantinha nas esquinas das igrejas ou das casas das cantadoras. Assim como entende que a guerra interna que praticamente permeia toda a história do país subjuga o povo, o dispersa e apaga as tradições. “Conseguiram destruir várias regiões, mas quando há sentimento de pertencimento, essas manifestações culturais voltam a aparecer, porque têm que aparecer”, afirma. Para a cantora, o povo já assinou a paz. “Antes que virasse tema de políticos, o povo já queria a paz”, afirma. Ela acredita que isso foi provado quando diante da derrota em plebiscito dos acordos entre o governo e as Farc, centenas de milhares de pessoas foram às ruas pedindo a paz.
Para ela, a cultura ancestral resiste à colonização, às guerras. “Quando a música nasce do povo, está envolvida toda uma academia popular, em que o dono é o povo mas também há os mestres dentro do mesmo povo, pois o conhecimento passa de geração em geração”, avalia.
Aluna e professora dessa universidade popular e informal, Totó leva adiante a herança. Em Sorbonne, pensava em como projetar a música ancestral, não só nos palcos mundo, mas principalmente na Colômbia, onde existia e ainda existe dificuldade em reconhecer as manifestações populares, e ainda mais aceitar que podem estar em qualquer lugar do planeta. “Em qualquer parte do mundo pode estar, mas terá que ser bem feita, porque é a representação de um país”, afirma.
Representar a cultura tradicional de um país. Quanta responsabilidade. Cantar e dançar, quanta naturalidade. “Nunca pensei em fazer outra coisa”, diz. Logo se corrige: “Alguma vez pensei em ser instrumentadora, auxiliar de cirurgias…mas por fim, sim me casei com um médico”, se corrige Totó. “Só mudou de instrumento”, brinca sua produtora. Do casamento já vieram três filhos e nove netos. Muitos deles seguem na música. “Tenho uma boa reserva”, diz. Que siga la cumbia. Que siga adiante a música ancestral.