Cortázar, Gabo, Llosa e Neruda: os caminhos dos escritores por Paris
Cultura

Cortázar, Gabo, Llosa e Neruda: os caminhos dos escritores por Paris

Entre o Sena, os cafés de Montparnasse, os bulevares e as ruas esquecidas, a cidade-luz foi um dos centros do boom literário latino-americano

em 14/02/2019 • 16h44
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A primeira parte do livro Rayuela (Jogo da Amarelinha, Civilização Brasileira, 1970), o grande clássico do escritor franco-argentino Julio Cortázar, se passa inteiramente em Paris, onde o casal Horácio Oliveira e Maga faz parte de uma cadeia inquebrável edificada em belos cenários: bairros, praças, ruas, pontes, cafés e passagens secretas da capital francesa. Lugares que os visitantes podem reviver hoje com a ajuda de uma rota criada pelo Instituto Cervantes pelos lugares citados na obra e que fazem parte de alguns pacotes de viagens oferecidos na cidade.

A lista começa no Quai de Conti, nas margens do Sena, descrita no livro pelo autor, e termina no Cemitério de Montparnasse, onde Cortázar está enterrado, passando por todos os mínimos lugares citados por ele no romance, como a Rue de l’Estrapade – em que Horácio acompanha Berthe Trépat, uma velha pianista de quem viu um concerto em uma sala vazia, até sua casa, ou a Pont des Arts, em frente ao Museu do Louvre, um emblema de Rayuela. A ponte, que abrigava milhares de cadeados colocados por namorados para simbolizar o amor, é também o lugar em que o Horácio Oliveira e Maga foram se tornando um casal. “Ela sofre em alguma parte. Sempre sofreu. É muito alegre, adora o amarelo, seu pássaro é o melro, sua hora é a noite, sua ponte é a Pont des Arts”, narra Horácio em outro trecho do livro.

Cortázar se mudou para Paris em 1951, quando tinha 37 anos, após o governo francês aceitá-lo para um período de estudos na cidade. Viveu em vários lugares diferentes e se casou duas vezes no período que viveu na capital francesa: com uma tradutora argentina e com uma artista francesa. Sua obra, quiçá, é uma das que mais possuem referências parisienses: restaurantes, bares, galerias, ruas, pontes, prédios, vielas – tudo está devidamente indicado em seus contos.

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“Caminhar por Paris – e, por isso, qualifico a cidade como mítica – significa avançar para dentro de mim. Isso é impossível de dizer com palavras”, disse ele em uma entrevista à TVE nos anos 1980. “É à noite, depois da meia-noite especialmente, que se produzem a paisagem, a ponte, a osmose, os signos, os descobrimentos, e tudo isso é o que gerou, em grande parte, o que eu escrevi em forma de novelas ou contos”, completou.

Além de Rayuela, contos famosos do escritor franco-argentino, como Manuscrito achado num bolso, que foi adaptado para o cinema em 1988, O Perseguidor e Autopista do sul, que narra uma espécie de ficção caótica sobre um trânsito eterno no subúrbio da capital, têm como pano de fundo a cidade-luz.

Leitor de Cortázar, um jovem colombiano Gabriel García Márquez (foto principal) foi um dos que, por várias vezes, seguindo os sinais dos contos de Bestiário (Nova Fronteira, 1986), esperava pelo escritor no Café Old Navy, no Boulevard Saint-Germain, um dos poucos estabelecimentos abertos nas madrugadas parisienses e onde o autor franco-argentino costumava sentar para escrever. Em 1956, depois de ter publicado Relato de um náufrago em seu país, García Márquez precisou se exilar na França para fugir das ameaças da ditadura do general Rojas Pinilla, com quem havia entrado em conflito por causa do livro. À época repórter do jornal colombiano El Espectador, ele foi enviado pela diretoria do periódico como correspondente à capital francesa até que a poeira baixasse em Bogotá.

“Gabo” (como era conhecido entre seus amigos) já havia dito que Cortázar era “o escritor que ele gostaria de ser quando fosse grande”, muito por causa de Bestiário. Estando na mesma cidade que ele, pensou que poderia ter a chance de conhecê-lo. Anos depois, ele relataria que, durante uma noite, viu Cortázar entrar no café Old Navy com um “sobretudo negro a cobri-lo da cabeça aos pés e carregando um olhar de criança perversa”, e decidiu não abordá-lo, com medo de uma reação irritada do seu ídolo. Ao contrário: sentou-se em uma mesa próxima e ficou observando-o tomar seu café e escrever durante toda a madrugada.

“Os ídolos infundem respeito, admiração, carinho e, claro, uma grande inveja. Cortázar inspirava todos esses sentimentos como poucos escritores e ainda outro muito menos frequente: a devoção”, escreveu em um artigo por ocasião da morte do escritor franco-argentino, em 1984. O encontro entre eles seria adiado para anos depois, quando “Gabo” já era um escritor latino-americano famoso na Europa, durante uma viagem de trem de Paris a Praga, na República Tcheca.

Foi na capital francesa em que “Gabo” entrou em contato com outros escritores latino-americanos exilados de regimes autoritários da região, que conheceu a neve, no Boulevard Saint-Michel – um dos episódios mais famosos de sua juventude –, e onde também passou pela pobreza mais crítica.

“Ele se hospedava em um sótão do desorganizado Hotel de Flandre, comia nos restaurantes Acrópole ou Capoulade, que eram atestados da pobreza estudantil, caminhava pelas ruas do Quartier Latin, passando longe das vitrines cheias de livros que não podia comprar e parava no bar L’Escale, em cujo ambiente lhe servia para cantar boleros, vallenatos e rancheras”, escreveu o amigo Plinio Apuleyo Mendoza, lembrando não apenas da saudade que Gabo tinha da Colômbia como da falta de dinheiro.

O próprio Gabo, em um dos poucos relatos pessoais sobre sua vida na capital francesa chamado Desde Paris, con amor, conta sobre uma noite em que saiu para caminhar pelos bulevares com a esperança de que a polícia lhe prendesse confundindo-o com um dos árabes ilegais que, à época, chegavam à cidade fugidos do Oriente Médio. Os migrantes em Paris eram levados para abrigos onde, apesar de ficarem presos, tinham cama, banho e comida.

Em 2017, o então presidente da Colômbia, Juan Manuel Santos, foi chamado pelas autoridades da cidade para inaugurar a Place Gabriel García Márquez, no sétimo arrondissement, no Quartier Latin, entre as ruas Montalembert e Du Bac, onde o escritor colombiano viveu naqueles anos 1950 e escreveu seu primeiro grande livro, Ninguém escreve ao coronel (Record, 1980).

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O ex-amigo de Gabo, o peruano Mário Vargas Llosa foi outro escritor sul-americano a sonhar com Paris muito tempo antes de conhecê-la. Quando jovem, devorou boa parte dos clássicos literários franceses, como Gustave Flaubert, Victor Hugo e Alexandre Dumas, e eles logo se converteram em um ato de rebeldia diante da oposição do seu pai, militar de carreira, que não entendia as inclinações literárias do filho. “Paris era um requisito indispensável se alguém queria se tornar um escritor”, escreveu ele em um texto de memórias.

Llosa desembarcou pela primeira vez na cidade-luz em 1958, logo após seu conto El desafío ganhar um concurso da Revue Française, cujo prêmio era uma viagem de 15 dias por Paris, mas que acabou se arrastando por um mês. “Ali tinha sido a grande cidade cultural do mundo e ainda era”, disse. Em 1960, acompanhado de sua primeira mulher, Julia, ele se mudou em definitivo para a metrópole francesa.

O casal se hospedou no Hotel Wetter, um lugar barato do Quartier Latin, onde ele escreveu seu primeiro romance, La ciudad e los perros (A cidade e os cachorros, Alfaguara, 2007), publicado em 1963 e com o qual ele venceria o prêmio Biblioteca Breve. Cansados dos hotéis, logo se mudaram para o número 17 da Rue Tournon, onde Llosa seguiu escrevendo. Saint-Sulpice, perto de Saint-Germain-des-Prés, se tornou seu bairro, onde ele caminhava pelos cafés e esperava por um ansiado encontro com a atriz francesa Catherine Deneuve.

Era também um assíduo frequentador dos vendedores de livros do Sena, onde aproveitava para contemplar a arquitetura da Ile de la Cité, “uma emocionante aventura espiritual e estética”. A falta de recursos – como todo escritor boêmio – o fez conhecer outros cantos de Paris, como o restaurante La Petite Hostellerie, que aparece no romance Travesuras de la Niña Mala (Travessuras da menina má, Alfaguara, 2006), ambientado na cidade, ou a pastelaria Gérard Mulot, onde tomava café da manhã. O restaurante La Coupole, inaugurado em 1927 no Boulevard du Montparnasse, era o lugar das comemorações: “Eu dedicava todos os domingos a escrever um artigo. Quando acabava, me premiava indo ao La Coupole comer um ‘curry d’agneau’”, conta.

Há ainda os cafés, como o La Rhumerie, que aparece em Travessuras da Menina Má, ou o clássico Les Deux Magots, um dos lugares de encontro dos escritores de Paris até hoje. Pela proximidade, Llosa gostava de conhecer os cafés de Saint-Germain-des-Prés, que geralmente ficavam mais vazios. “Eu gostava de escrever neles e, nesse sentido, Paris é um paraíso”.

Assim como com Cortázar, o Instituto Cervantes oferece um guia online que explica todos os passos do escritor peruano – prêmio Nobel de literatura de 2010 – por Paris. O passeio começa na Catedral de Notre-Dame, na Place du Parvis, na Ile de la Cité, passando pelos hotéis e casas onde viveu, os cafés que frequentava, os Jardins de Luxemburgo, “um lugar mágico para escritores”, e terminando no La Coupole.

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O poeta chileno Pablo Neruda, por sua vez, escreveu pouco sobre Paris em sua autobiografia Confeso que he vivido (Confesso que vivi, Difel 1977), se comparado com o período que viveu na capital francesa: da década de 1920 até o final da vida, ele residiu ao menos uma vez por década na metrópole. “Para a gente, boêmios, provincianos da América do Sul, Paris, França, Europa, eram duzentos metros e duas esquinas: Montparnasse, La Rotonde, Le Dôme, La Coupole e mais três ou quatro cafés”, diz um trecho da obra.

A primeira vez que Neruda pisou na cidade-luz foi em 1927, quando fazia escala em direção a Rangum, capital da antiga Birmânia, hoje Myanmar, onde ele exerceria seu primeiro cargo diplomático. O poeta passou algumas noites no bairro de Montparnasse, que naquela época já tinha sido adotado pelos boêmios artistas, escritores e músicos da capital francesa saídos de Montmartre. Quando chegou, porém, já tinha noções de língua francesa oriundas das aulas em Temuco, no interior do Chile, e das obras poéticas clássicas francesas, como os livros de Baudelaire e Rimbaud, além de ter lido Victor Hugo.

Entre 1936 e 1939, Neruda se instalou em um apartamento na Quai de L’Horloge, na Ile de la Cité, para atuar como cônsul do Chile para refugiados da Guerra Civil Espanhola na embaixada do país sul-americano em Paris. Dividia o imóvel com o poeta espanhol Rafael Alberti e com sua esposa, María Teresa León. “Eu via a Pont Neuf, a estátua de Henrique IV e os pescadores que saíam de todas as margens do Sena”, escreveu na autobiografia.

Nessa época, Neruda ajudou cerca de dois mil fugitivos do conflito na Espanha a saírem da Europa em direção ao Chile. “Esse período foi muito importante na sua poesia, porque foi quando deu um giro para a política das coisas. Seus primeiros atos combatentes foram gestados na França, de onde chegou vindo de Madri chocado com a guerra e com o assassinato de Federico García Lorca, seu amigo”, contou o poeta chileno Felipe Tupper, que organizou a rota de Neruda para o Instituto Cervantes em Paris.

Nos anos 1960 e 1970, Neruda voltou à cidade várias vezes em viagens de lazer, acompanhado de sua esposa, Matilde Urrutia. Se hospedava em dois hotéis: um na Quai Voltaire, na frente ao Sena e ao Louvre, e o da Rue Mont Blanc, no Quartier Latin. Ia de duas a três vezes por ano à Europa, em viagens que sempre terminavam em Moscou, capital da comunista URSS.

Em 1971, quando era embaixador do Chile na França (1971-1973), recebeu do escritório na Avenue La Motte Picquet a notícia de que havia vencido o prêmio Nobel de literatura, e cerca de 48 horas depois, ele seria entrevistado ali por um jovem Gabriel García Márquez. O “Mausoléu”, como ele chamava a embaixada, perto do Palais des Invalides, foi também onde ele descobriu um câncer de próstata e de onde voltaria ao seu país para morrer dois anos depois.‎

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