A premissa de quem não ajuda não deve atrapalhar parece nortear a visão de Celso Amorim, o ex-ministro das Relações Exteriores de Luiz Inácio Lula da Silva e ex-ministro da Defesa de Dilma Rousseff, sobre os altos decibéis da troca de acusações entre os países-membros do Mercosul. Segundo o calendário oficial, a presidência do bloco corresponderia à Venezuela. Mas Argentina, Brasil e Paraguai se negam a passar a presidência a Caracas utilizando argumentos como a demora na adequação às normas do bloco e violações aos direitos humanos no país de Nicolás Maduro.
A chancelaria venezuelana acusou os três países de “reeditar uma espécie de Operação Condor” (aliança de ditaduras da região para perseguir opositores) contra o país; por sua vez, José Serra, o chanceler interino brasileiro, afirmou que a Venezuela não é uma democracia.
“Se começarmos a adotar posições extremadas, de condenação, nos desqualificamos para ajudar. Não é que tenha que ser neutro, mas entendendo que para poder ajudar, não se pode adotar uma atitude que leve ao isolamento, o que só cria mais radicalismo”, diz Amorim em entrevista exclusiva à Calle2 na última quinta-feira, durante passagem por Buenos Aires. Ele reprova a retórica exagerada da Venezuela, mas afirma que Brasília aparenta não querer atuar como mediador, e que o caminho para uma solução é o diálogo, e não a condenação. O diplomata defende ainda que se passe a presidência do bloco à Venezuela em troca de contrapartidas.
Sobre a afirmação do chanceler interino José Serra, que ao assumir disse que o Itamaraty já não refletirá preferências ideológicas de um partido político e aliados, Amorim evidencia a ironia: “Ideologia sempre é a dos outros. A nossa é a boa doutrina, a dos outros é ideologia”.
Ele diz que não houve nada de ideológico na inserção da Venezuela ao Mercosul. “Tem um cunho estratégico, econômico, de acesso ao Caribe”. E espera ajuda do papa Francisco para ajudar no conflito – e na complexa situação venezuelana.
O Brasil desempenhou, nos últimos anos, um papel de mediador de conflitos na região. O senhor acha que, com a nova orientação da chancelaria, pode-se perder esse reconhecimento no cenário internacional?
Para atuar como mediador tem que haver duas condições: uma é ter características específicas que facilitem ser mediador, que o Brasil tem e continuará a ter; a segunda é querer.
Pelas ações que têm sido tomadas, não me parece que o Brasil queira ser mediador, porque um requisito essencial para poder atuar como mediador é evitar condenações e expressões muito radicais para manter o diálogo com as partes que estão no conflito.
Isso é o que me preocupa. Pode ser que mude. Muita coisa que foi dita já parece ter alguma modulação. Também não sabemos o que vai acontecer com o impeachment [da presidente afastada Dilma Rousseff], mas supondo que prevaleça, vamos ver se as coisas evoluem.
Qual é a vantagem da Venezuela no Mercosul?
Eu costumava dizer que você vai das geleiras antárticas ao Caribe, isso é uma situação geográfica que nenhuma outra região tem, com todos os climas e todo o tipo de biodiversidade. Obviamente, a Venezuela é um país importante, que pode estar passando por uma crise agora, mas tem uma história. A revolução do [falecido presidente Hugo] Chávez inicialmente não foi contestada, o próprio governo [do Fernando Henrique] Cardoso não quis condenar.
Agora estamos vivendo uma situação realmente muito difícil, acho que há erros dos vários lados, mas a solução não pode ser isolar, condenar e inviabilizar o diálogo.
Há um esforço do ex-presidente [colombiano, Ernesto] Samper, secretário-geral da Unasul [União de Nações Sul-Americanas] e de outros ex-presidentes, e lamento que os países do Mercosul, pelo menos Brasil ou Paraguai − acho que a Argentina está um pouquinho mais cuidadosa − se inviabilizem como potenciais mediadores.
A Unasul tem algumas propostas, e eu espero que a Venezuela perceba que isso é importante pra ela, para uma reforma econômica, terminando com as taxas múltiplas de câmbio e criando uma compensação através de um programa tipo Bolsa Família.
Oxalá também haja apoio da Santa Sé. Temos um papa que tem tido muito boa ação internacional, que ajudou no reestabelecimento de relações entre Cuba e Estados Unidos. Então por que não ajudar também na pacificação da Venezuela? O papa Francisco seguramente tem uma sensibilidade especial para isso, de modo que eu tenho esperança. Agora, acho que os outros países que talvez não tenham tanta condição de ajudar, pelo menos que não atrapalhem com ações que radicalizem a situação.
A postura adotada pelo uruguaio Luis Almagro inviabilizou o papel da OEA na mediação desse conflito? Pode-se reverter isso, ou todas as esperanças estão depositadas na Unasul? E o que o Mercosul poderia fazer para ajudar a Venezuela?
Primeiro, não atrapalhar. Acho que qualquer tentativa de isolar, criar dificuldades para a Venezuela, como essa de não permitir que assuma a presidência, é negativa. O Mercosul como mediador é um pouco mais difícil porque ele não se exercitou muito para isso, mas não excluo que isso possa ocorrer. A Unasul já nasceu mais com esse perfil e, pela própria pluralidade de países, talvez tenha mais chance de contribuir. A Unasul tem um histórico, atuou na crise entre Venezuela e Colômbia, e na Bolívia. Cada situação é uma, mas há necessidade de uma mediação além do plano político, como a que está sendo feita pelo Samper no plano econômico. Em vez de ficar só nessa disputa de se vai ou não fazer o referendo, pensar numa transição mediada, um plano mais complexo, feito junto com os venezuelanos. É preciso encontrar pontos comuns. Estou distante da negociação e é difícil dizer quais seriam, mas questões que incluam garantias de que sejam mantidos programas sociais, por exemplo, que deram certo.
A Unesco deu um prêmio para a Venezuela por acabar com o analfabetismo, isso não é pouca coisa na América Latina. Não podemos ver só o lado negativo.
A Venezuela se tornou um símbolo. Hoje não se fala mais em marxista, comunista, mas que é bolivariano, que o governo do Lula, da Dilma, eram bolivarianos, o que não era exatamente o que o Chávez pensava.
Podemos ter programas sociais e devemos ter, mas o Brasil é um país capitalista. Mas isso é usado para criticar os governos anteriores e a Venezuela entra como bode expiatório, o que é muito ruim para nossa integração e para consolidação da democracia no nosso continente.
O senhor mencionou que as áreas de livre comércio vão e vêm, e que a união aduaneira é importante porque pode ser um passo para uma união política. No Mercosul agora temos uma troca de acusações bem grave. É possível uma união política nesse contexto?
Acho que é uma fase. Como não sofremos nenhuma grande ameaça externa e felizmente não temos nenhum conflito grave nas últimas décadas, essa necessidade da união talvez não apareça de maneira tão clara quanto para os países que formaram a União Europeia. Mas tem que se agir preventivamente. Enquanto existirem Estados Nações, pode haver tensões e desembocar em conflitos, e acho que a melhor maneira de evitá-los é integrando. Por isso que eu dizia que dentro da nossa região a melhor dissuasão é a cooperação. Vimos durante vários momentos uma situação grave entre Venezuela e Colômbia, entre 2005 e 2010, tivemos que agir mediando, de maneira bastante firme e efetiva, nos valendo de todas as pessoas ou países que pudessem ajudar, inclusive Cuba, e conseguimos evitar.
Agora, se começarmos a adotar posições extremadas, de condenação, nos desqualificamos para ajudar.
Não é que tenha que ser neutro, mas entendendo que para poder ajudar, não se pode adotar uma atitude que leve ao isolamento, o que só cria mais radicalismo.
E a questão do inimigo externo pode até piorar a situação na Venezuela.
Seguramente. Até porque não é algo abstrato, você está falando de um país onde houve um golpe de Estado, que foi frustrado depois, mas houve. E com apoio externo. Agora, eu também não aprovo a retórica exagerada da Venezuela, acho que também não ajuda. A Venezuela poderia fazer alguns gestos. Na área econômica, na área política, não sei por que até hoje eles não ratificaram o protocolo de Assunção sobre promoção de Direitos Humanos do Mercosul. Eles se gabam de terem promovido direitos sociais e políticos, então que ratifiquem [o protocolo].
Sobre o conflito que envolve a presidência do Mercosul, qual acha que é a intenção final dos países que não querem a Venezuela na presidência?
Não sei, vejo que houve muita resistência no Brasil, durante um bom período, a deixar a Venezuela ser membro do Mercosul. Depois, no Paraguai, foi mais forte ainda. Há uma questão ideológica indiscutivelmente presente. Mesmo que você creia que uma visão política não é democrática segundo seu entendimento, a tentativa de impor democracia pela força não dá certo, seja pela força militar como vimos no Iraque e em outros lugares, seja por pressão econômica. Agora, na nossa época havia um esforço para ajudar a Venezuela com projetos de desenvolvimento industrial ou de pequena agricultura. Acho que é dessa forma que a gente vai poder ter uma influência, não pela condenação.
Mas não vejo que mal faz à Venezuela assinar o pacto, se isso é um gesto que satisfaria. Vai haver uma discussão e, se houver um equivalente ao Conselho de Direitos Humanos na América do Sul, a Venezuela levanta casos, e os de cá e outros levantarão o caso do [opositor preso na Venezuela, Leopoldo] López, ou de algum prisioneiro político. Também não justifica ter prisioneiros políticos. Na época do Chávez, ele se gabava de não ter nenhum e me lembro de ter intercedido em função de uma pessoa de uma ONG, por exemplo, e ele resolveu. Para conseguir resultados práticos, tem que ter diálogo, o resto, na minha opinião, é discurso para uso interno.
O senhor menciona também preocupação com grandes acordos comerciais como o Acordo Transpacífico (TPP, na sigla em inglês) e que as consequências em geral se sentem depois, como aconteceu com o Brexit.
O Acordo Transpacífico contém cláusulas que seriam muito danosas para o Brasil, sobretudo na questão de saúde. Durante o governo Cardoso, um dos pontos fortes da política foi defender a possibilidade de tratamento de AIDS com remédios genéricos e para isso foi preciso enfrentar a pressão dos grandes laboratórios. Se você assinar um acordo desse tipo (TPP), há cláusulas que no Brasil seriam inaceitáveis. Eles falam que tudo que nós fizemos foi ideológico, ouvi dizer que até a OMC [Organização Mundial do Comércio] era uma opção ideológica. Gente, a OMC é uma criação dos EUA, da UE, vem do GATT [Acordo Geral sobre Aduanas e Comércio], mas na cabeça de quem quer criticar, tudo é ideológico. Entrar num desses grandes acordos significa sacrifícios, não só em política industrial, mas em políticas sociais, como a de saúde. O nosso atual chanceler [José Serra], que foi ministro da Saúde − não quero dar lições a ele − sabe bem o que foi a luta para conseguir a declaração de Doha, que consagrou as flexibilidades em matéria de propriedade intelectual e saúde.
Preocupa a Aliança do Pacífico?
Não. Só me preocupa o nome, porque aliança dá a impressão que é contra alguém. Depois, fizemos tanto esforço para unir a América do Sul e agora vamos dividir de novo, entre o Pacífico e o Atlântico? [Comercialmente] Não tenho nenhum problema. Outro dia o atual secretário-geral do Itamaraty, um homem de muita competência técnica, o Marcos Galvão, estava dizendo isso, nossos acordos com os países sul-americanos que fazem parte da Aliança do Pacífico − o México é um caso à parte −, terão tarifa zero dentro de dois, três anos, porque já temos esses acordos, foram negociados na época do governo Lula. Ao contrário do que se diz, nunca houve uma submissão à ideia do bolivarianismo. Nós dissemos que só podemos fazer uma comunidade sul-americana com uma base econômica sólida. Como não podíamos ter união aduaneira entre todos, porque alguns já tinham acordos de livre-comércio com países desenvolvidos, fizemos uma área de livre-comércio entre os países da América do Sul.
O que temos que fazer com esses países são acordos em outras áreas, como o de investimentos e compras governamentais.
Com o México houve oscilações, mas durante o governo Lula propusemos um acordo de livre-comércio Mercosul-México e quem não quis foi o México. Não tenho nada contra que se negocie. Claro que tem que tomar cuidado porque é um país que já tem um acordo de livre-comércio com os EUA e, portanto, tem que tomar cuidado com triangulações. Aliás, a razão pela qual a gente defende a tarifa externa comum no Mercosul é para não ter que aplicar regras de origem mais severas, o que trava o comércio. Essas coisas têm uma razão de ser, não é mera preferência ideológica. Aliás, nunca ouvi dizer que as pessoas que pensaram em tarifa externa comum, os fundadores da União Europeia, tivessem qualquer preferência ideológica pelo marxismo, pela esquerda.
O chanceler interino, na cerimônia de transferência de comando da chancelaria, mencionou que agora o Itamaraty não ia mais atuar de acordo com ideologia de um partido. O que opina disso?
Eu não falo muito sobre o chanceler porque não é o caso, mas também é como o ditado em francês “Cet animal est très méchant; Quand on l’attaque il se défend” (Este animal é muito malvado, quando o atacamos ele se defende). Se eles estão dizendo que a nossa era preferência ideológica, tenho que responder. Vou dizer o que é óbvio: ideologia sempre é a dos outros. A nossa é a ‘boa doutrina’, a dos outros é ideologia. A direita [diz que] faz política de Estado e que a esquerda faz política ideológica. Não houve nada de ideológico. Se você pega toda a argumentação, a visão, de por que tem que incluir a Venezuela, tem um cunho estratégico, econômico, de acesso ao Caribe. Nós temos fronteiras com a Venezuela, o que quer que ocorra, vamos continuar tendo fronteira, então nos interessa que as coisas corram bem lá. Não podemos ficar lá lutando pelo partido a ou b e, se o Chávez estivesse vivo, poderia testemunhar quantas vezes dissemos a ele que era preciso dialogar com a oposição.
Quando fizemos a proposta de Unasul, que antes se chamava CASA [Comunidade Sul-Americana de Nações], não tinha nada de bolivariano, gente. Como você pode imaginar que é bolivariana uma associação onde entrava o Peru do Alan García, a Colômbia do Uribe? É muito grave isso, porque não só revela ignorância, mas essa ignorância é transmitida para as pessoas que leem. É uma função até de deseducação da população. Isso tudo preocupa, mas enfim, o que a gente pode fazer? A gente tem que lutar. Eu acredito na humanidade, acredito que no longo prazo vamos conseguir superar estes problemas, mas estes reveses não deixam de ser desagradáveis.
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