Brasil, pátria a(r)mada
Análise

Brasil, pátria a(r)mada

País é o quarto maior exportador de armas leves do mundo, cuja indústria produziu 47.912 revólveres em 2015 (alta de 44%); bancada da bala ganha força com governo Temer

em 27/04/2016 • 00h30
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Véspera de Natal de 2015. Diego Santos, de 28 anos, visita a ex-namorada Valdenize Santos, 30 anos, no litoral de São Paulo e, após uma discussão, ela é morta a tiros. Segundo a polícia, a arma de Santos teria disparado sem querer. Dois meses depois desse episódio, outra família vive uma tragédia por motivos torpes. José Ferreira Júnior, 25 anos, foi assassinado por dois homens depois que ele se recusou a diminuir o volume do som do carro, no povoado de Areia Branca, em Alagoas.

Os dois casos são emblemáticos: revelam como uma discussão trivial pode acabar em tragédia pela simples presença de uma arma de fogo, colaborando para colocar o Brasil entre os países mais violentos do mundo. Com apenas 2,8% da população mundial, o país registra a 12ª maior taxa de homicídios do mundo – 25,2 pessoas por 100 mil habitantes, quatro vezes a mais que a média global (6,2).

Em 2014, 52.336 pessoas foram mortas de forma violenta - o equivalente a seis pessoas por hora -, com destaque especial para jovens negros. O Brasil abriga 21 das 50 cidades mais violentas do mundo.

O denominador comum das histórias de Valdenize e José, e da maioria dos homicídios no país, é a presença de armas de fogo leves (revólveres e pistolas) produzidas no próprio Brasil. Pistolas ‘made in Brazil’ teriam sido protagonistas de 42 mil homicídios no ano passado (80% do total). Levantamento realizado pelo Instituto Sou da Paz mostra que três quartos das armas apreendidas em crimes praticados em São Paulo entre 2011 e 2012 foram fabricadas no Brasil.

Dados oficiais com estimativas sobre quantas armas circulam no país são escassos. O Sinram (Sistema Nacional de Armas da Polícia Federal), responsável por monitorar as armas de fogo em poder da população, está defasado tecnologicamente, segundo a própria instituição. O Sinram monitora apenas a quantidade de armas fabricadas. Em 2015, a indústria armamentista brasileira produziu 47.912 revólveres – um aumento de 44% em relação ao ano anterior.

O alto número de armas brasileiras utilizadas em mortes no país não é fruto de mero acaso, mas consequência de políticas públicas tomadas ao longo do século XX – algumas mantidas até hoje – que subsidiaram a indústria nacional e fecharam o mercado interno para produtos estrangeiros.

O resultado é que o país é o quarto maior exportador de armas leves do mundo, ficando atrás apenas dos Estados Unidos, da Itália e da Alemanha, segundo estimativa da Iniciativa Norueguesa em Transferência de Armas Leves (NISAT, na sigla em inglês).

As medidas que criaram o duopólio que domina o mercado – formado pela Forjas Taurus, que produz armas, e a Companhia Brasileira de Cartuchos (CBC), especializada em munições – afetam diretamente as decisões na área de segurança pública, que acabam contaminadas pelos interesses econômicos das duas companhias.

“O papel central que a indústria armamentista teve como um todo nos planos econômicos e estratégicos dos sucessivos governos militares teve um impacto profundo em todos os aspectos de como se lida com armas de pequeno porte no Brasil”, dizem os pesquisadores Benjamin Lessing, Júlio Cesar Purcena e Pablo Dreyfus no estudo “A Indústria Brasileira de armas leves e de pequeno porte: Produção Legal e Comércio”.

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Na América Latina, os produtores brasileiros dominam o setor de armas leves. Essa incrível força da indústria de armas leves começou a ser construída em 1930, na esteira da chamada política de substituição de importações, estratégia aplicada no Brasil durante o século XX, em diversos setores da economia, para incentivar a criação de uma indústria local para produzir internamente tudo aquilo que era importado.

Imigrantes europeus no Sul e Sudeste se tornaram os primeiros produtores privados de armas em 1920, enquanto no primeiro governo de Getúlio Vargas (1930-1945) o Exército abriu sua primeira fábrica de armas leves e de pequeno porte. Foi neste período que surgiram a Taurus e a CBC.

Durante a II Guerra Mundial começou-se a elaborar a chamada Doutrina Brasileira de Segurança Nacional (DSN), que via o desenvolvimento da indústria de armas como um projeto de Estado. “Armas eram identificadas como uma indústria chave para o desenvolvimento”, afirma o estudo.

Este projeto ganhou força durante a ditadura militar, graças a políticas de protecionismo econômico. O fortalecimento da indústria de armas do Brasil se justificava pelo medo do avanço do comunismo no país.

Com o fim do regime militar, a indústria bélica deixou de estar totalmente subordinada à estrutura de defesa do Estado, gerando uma diminuição na quantidade de subsídios governamentais, mas não o seu fim. Em 2013, a presidente Dilma Rousseff publicou um decreto dando isenções tributárias ao setor (entre eles, PIS/Paesp, COFINS e IPI).

Os militares mantiveram o controle do monitoramento e do registro de produção de armas no governo civil. São eles que dão a palavra final sobre que tipo de armas as polícias podem usar e quais podem ser exportadas. “A CBC e a Taurus mantêm contatos próximos com os militares brasileiros, tendo assim uma grande influência nas políticas domésticas e nas relações exteriores”, dizem os pesquisadores.

Todo este cenário fez com que a indústria de armas leves do Brasil se consolidasse como um ator relevante no mercado global de armamentos leves. Segundo dados recentes, as vendas de armas da Taurus aos Estados Unidos, seu maior consumidor estrangeiro, cresceram 11,6% no terceiro trimestre de 2015 na comparação com o segundo trimestre do mesmo ano. Considerando o Brasil e outros mercados, a companhia registrou vendas líquidas de R$ 179,6 milhões, alta de 108,5% em relação ao mesmo período de 2014. A CBC não informa seus resultados financeiros.

A manutenção da hegemonia requer investimentos por parte da indústria no cenário político, especialmente no Congresso, para impedir projetos que possam abalar esse domínio e ameaçar os ganhos econômicos conquistados. A bancada da bala, composta por 35 deputados federais (a maioria deles do PMDB), tem entre seus líderes o deputado Jair Bolsonaro (PSC-RJ) e é fundamentalmente financiada pela indústria de armas leves.

O caso mais recente do lobby das fabricantes de armas no Congresso é o debate em torno do Projeto de Lei (PL) 3.722/2012, que propõe a ‘flexibilização’ do Estatuto do Desarmamento, permitindo o aumento do número de armas que podem ser adquiridas pelo cidadão (de seis para nove), a alta na aquisição de munições (de 300 para 5,4 mil por ano), além da redução da idade mínima para a aquisição de armas (de 25 para 21 anos).

Sob um possível governo de Michel Temer, e com o apoio do presidente da Câmara Eduardo Cunha, a bancada da bala pode ganhar força e conseguir desmontar o Estatuto do Desarmamento, que, segundo o Mapa da Violência, pode ter evitado 160 mil homicídios desde 2003, quando foi sancionado.

O deputado Alberto Fraga (DEM-DF), representante da bancada da bala, afirmou recentemente ao jornal El País Brasil que esteve pessoalmente com o vice-presidente nas últimas semanas e diz não ter dúvidas de que Temer é mais sensível do que a Dilma com relação à flexibilização do Estatuto. “Já tratei disso com ele indiretamente, de maneira informal, é negociável”, disse. Ele também afirmou que sabia que Dilma vetaria o PL caso fosse aprovado no plenário.

Embora nem todos os 24 integrantes da comissão especial que analisa o PL tenham recebido recursos da indústria armamentista, dez deles, ou 40% do total, tiveram ajuda financeira em suas campanhas eleitorais. Outros seis suplentes também foram financiados por fabricantes de armas e munições.

“A lógica econômica de fortalecimento deste setor industrial por meio da promoção da demanda não pode justificar a flexibilização da legislação atual”, diz Robert Muggah, diretor de pesquisa do Instituto Igarapé.

Para Ivan Marques, diretor executivo do Instituto Sou da Paz, o domínio dessas empresas e a falta de qualidade das armas coloca em risco a vida dos próprios policiais, que podem acabar tendo reações imprevisíveis se não confiam em seus equipamentos. Ele se refere a casos em que policiais registraram falhas da pistola Taurus calibre 40 da série 840, forçando a Polícia Civil do Rio de Janeiro a recolher 1.200 unidades.

A principal justificativa da indústria para a manutenção de seus privilégios é o impacto econômico que a atividade possui, especialmente no que tange à criação de empregos. No entanto, segundo estudo de Lessing, Purcena e Dreyfus, a produção de armas leves representa 0,048% da produção industrial total. No quesito emprego, dos 32,5 milhões de postos de trabalhos formais em 2001, quando o estudo foi escrito, o setor era responsável apenas por 0,02%.

Para especialistas em segurança pública, o domínio e a influência do setor de armas arrisca as conquistas obtidas nos últimos anos, principalmente o Estatuto do Desarmamento. “No país que mata mais de 56 mil de seus cidadãos por ano, e onde 71% das mortes por agressão são efetuadas por armas de fogo, é impossível isentar de responsabilidade este setor da indústria, seja pelo impacto de seus produtos na dinâmica da violência armada que assola o Brasil, seja pela agenda legislativa negativa que em grande medida ele impulsiona”, diz Muggah.

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