‘A reforma política, que era necessária, virou urgente’
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‘A reforma política, que era necessária, virou urgente’

Após aprovação do impeachment na Câmara, o intelectual Eric Nepomuceno afirma que a esquerda deve resistir e preservar o que foi conquistado

em 19/04/2016 • 15h30
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Nas últimas semanas, o jornalista, escritor e tradutor Eric Nepomuceno concedeu entrevistas e participou de eventos, inclusive ao lado do ex-presidente Lula e do compositor Chico Buarque, declarando-se contrário ao impeachment da presidente Dilma Rousseff. Um dia após a Câmara dos Deputados ter aprovado a continuidade do processo contra a presidente, o intelectual conversou com a Calle2. “Foi um circo de horrores”, afirmou, referindo-se aos votos dos deputados.

“Foi uma confirmação do óbvio. Precisamos de uma reforma política. Mas essa reforma depende justamente desse circo de horrores, como vamos confiar? Quem, em tese, deveria fazer essa reforma é esse bando de delinquentes. É uma coisa ridícula.”

Nepomuceno critica também o baixo número de deputados que são eleitos de forma direta. Segundo levantamento da própria Câmara, apenas 36 dos 513 deputados federais foram eleitos com os próprios votos – o restante precisou da ajuda de votos recebidos por outros candidatos do partido, por meio do coeficiente eleitoral.

“Nós temos no Brasil a pior legislatura dos últimos 36 anos. Desde a volta da democracia não havia nada parecido”, afirma o escritor. Ao mesmo tempo, Nepomuceno reconhece que não há como governar sem formar uma maioria no Congresso.

“Como o PT não iria fazer alianças? Sem alianças você não governa. Com esse sistema político atual, você precisa de alianças para governar. E se você faz aliança com o PMDB, o resultado é esse. São vícios de origem do sistema político brasileiro, que precisa ser reformado. Mas quem vai reformar? Ninguém espera que os ratos se condenem”.

O escritor, que foi amigo de grandes nomes como Gabriel García Márquez e Eduardo Galeano (leia mais abaixo), não aposta muitas fichas que a situação possa ser alterada. “A chance de reverter o impeachment no Senado é muito pequena, temos que começar a pensar. Devemos pensar em como resistir, por um lado, e como preservar o que foi conquistado e não foi perdido ainda. E 2018 vem aí”.

A temperatura política exaltada, com relatos de pessoas vestidas de vermelho sendo agredidas nas ruas, também chamou a atenção do intelectual. Ele jantava com seu amigo Chico Buarque, em dezembro passado, quando foram abordados e hostilizados nas ruas. “Tenho 67 anos e não lembro de ter visto um clima exacerbado a esse ponto no Brasil. A direita saiu do armário. Havia um ódio reprimido e esse ódio foi desatado.”

Para ele, a diferença entre o impeachment – movido, em sua avaliação, por uma vingança pessoal do presidente da Câmara, Eduardo Cunha – com o golpe militar de 1964 é que “agora não precisamos mais das forças armadas para derrubar um governo legítimo e constitucional. Contamos com setores da Polícia Federal, setores do Poder Judiciário absolutamente parciais e facciosos e, como em 1964, você conta com a unanimidade da grande mídia hegemônica − principalmente a Rede Globo.”

Seguindo a tendência de acadêmicos como Reginaldo Nasser, professor da PUC-SP, e João Feres Júnior, professor da UERJ, Nepomuceno afirma que não dá mais entrevistas para a Rede Globo, os jornais Folha de São Paulo e Estado de São Paulo, além da revista Veja.

Durante a sessão do impeachment, o deputado Jair Bolsonaro dedicou seu voto ao coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra, presidente do DOI-CODI do II Exército entre 1970 e 1974. A Comissão da Verdade, órgão que foi responsável por investigar os crimes contra a humanidade cometidos pelo Estado brasileiro entre 1946 e 1988, apontou que Ustra foi responsável pelo crimes de execução, tortura e ocultação de cadáver. Pelo menos 60 pessoas morreram no DOI-CODI durante a estadia de Ustra, que costumava orientar as sessões de tortura e esteve envolvido na tortura da então estudante Dilma Rousseff. Nepomuceno classificou Bolsonaro como “uma figura asquerosamente grosseira”.

Para o intelectual, a pior herança da ditadura militar, além da corrupção, é a impunidade. “O Brasil é o único país que não revisitou o passado e que não deu Justiça às vítimas. O empresariado se beneficiou enormemente (da ditadura), as grandes construtoras que hoje estão em julgamento surgiram no período do regime militar. A consequência é que, durante o regime militar, a maior parte das vítimas de assassinatos e torturas eram pessoas de classe média envolvidas na resistência armada ou não.

‎Se você observar hoje o comportamento da Polícia Militar nas ruas, der uma olhada no que acontece nas delegacias de polícia de qualquer lugar desse país, aqueles métodos da ditadura hoje são praticados cotidianamente contra pobres, negros, periféricos e abandonados.

‎Quer dizer, criou-se a cultura da impunidade para a violência do Estado sobre cidadãos brasileiros.”

“Quando você traduz, vê a paisagem por dentro e não pela janela do trem”

Além de escritor com obras publicadas no Brasil, México e Espanha, Nepomuceno traduziu para o português alguns dos autores da língua espanhola mais importantes do século XX, como Eduardo Galeano, Gabriel García Márquez e Julio Cortázar. Ele conta que começou no ofício quando morava em Buenos Aires, nos anos 1970, para fazer uma ponte entre o Brasil e seus novos amigos. “Eu comecei a traduzir assim, por afeto, para que os amigos daqui conhecessem os amigos de lá.”

Seu trabalho como jornalista na revista Crisis, importante revista cultural dirigida por Galeano entre 1973 e 1976 e disponível nesta hemeroteca online, fez com que conhecesse muitas dessas importantes figuras da literatura. Em 1974, Nepomuceno lembra que recebeu uma ligação daquele que viria a ser o Prêmio Nobel Gabriel García Márquez: “Ele ligou me encomendando um trabalho para ser feito de maneira clandestina no Chile do General Pinochet, que era escrever uma série de reportagens e fazer entrevistas com a resistência política – não a armada – da ditadura. Esse trabalho foi feito e a gente manteve um contato distante até que, em 1978, nos conhecemos em Cuba. Quando eu mudei para o México, em setembro de 1979, a gente se encontrou e não se desgrudou mais até a sua morte em abril de 2014”.

Já Galeano, falecido 2015, teve mais de 15 livros traduzidos para o português pelo antigo colega de redação. Atualmente, Nepomuceno está finalizando a tradução do livro póstumo de Galeano “O caçador de histórias”. “O Eduardo não foi meu amigo, foi meu irmão mais velho, eram laços além de amizade.”

Nepomuceno acredita que os brasileiros leem muito pouco as obras dos nossos países vizinhos − e que o Estado brasileiro falha na divulgação da cultura nacional, além de nossos escritores não terem interesse em serem publicados na América Latina.

Juan Villoro (México), Samantha Schweblin, Juan Forn e Hector Tizon (Argentina), Sergio Ramirez (Nicarágua), Eduardo Heras León (Cuba), Augusto Monterroso e Rodrigo Rey Rosa (Guatemala) e Alejandra Costamagna (Chile) são alguns escritores que o autor brasileiro destaca e que são pouco conhecidos e traduzidos em terras nacionais.

“O autor daqui quer ser editado na França, Alemanha, Inglaterra, o que eu acho ótimo. Mas não tem o menor interesse em ser editado no universo que a gente pertence, que é o universo latino-americano. Nós somos o único país que eu conheço que se refere aos vizinhos como latinos, como se nós fôssemos nórdicos ou austríacos.”

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