A odisseia de um terceirizado da Petrobras contra o desemprego
Sociedade

A odisseia de um terceirizado contra o desemprego

Desde a explosão da Operação Lava Jato, cerca de 130 mil terceirizados da Petrobras foram demitidos; Raimundo Lima, caldeireiro, não está entre eles, mas não se sabe até quando

em 15/03/2016 • 23h59
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A história de Ceará na Petrobras está guardada num sulfite A4. No bolso de trás da calça jeans, o currículo produzido para livrá-lo das assustadoras estatísticas de desemprego no país é apresentável. Está dentro de um papel pardo dobrado sem muito esmero, é verdade, mas esse detalhe parece ser capricho na vida de um operário que corre contra o tempo para não interromper uma história de 19 anos na Refinaria Presidente Bernardes de Cubatão, que fica encravada no pé da Serra do Mar, no litoral de São Paulo.

Ceará, que é Raimundo Lima na certidão de nascimento, entrou em greve no dia 14 de fevereiro com uma tarefa espinhosa: escapar de um exército cada vez mais numeroso, o de terceirizados demitidos no Sistema Petrobras. E não se meteu sozinho nessa briga. Todos os dias, por volta das 7 da manhã, passou a se reunir com os colegas de trabalho na porta da refinaria para − religiosamente − tomar a mesma decisão: permanecer em greve. Assim que os dirigentes do Sintracomos (Sindicato dos Trabalhadores na Construção Civil, Montagem e Manutenção Industrial) fechavam a assembleia, perguntando quem era a favor de seguir com o movimento grevista, erguiam os braços simultaneamente e soltavam gritos eufóricos para dizer em alto e bom som que ninguém ali abandonaria a luta. Certo dia, para surpresa e tristeza geral, um dos operários levantou o braço em defesa do retorno ao trabalho. Todos olharam pra trás, procurando o infeliz que resolveu quebrar a unanimidade. Era brincadeira.

Envolvendo cerca de 220 operários, não foram poucas as razões para a deflagração da greve. No fim do ano passado, a empresa em que Ceará trabalha, a MCE Engenharia − prestadora de serviços de manutenção na refinaria −, demitiu cerca de 20 trabalhadores e atrasou o pagamento de salários, participação nos lucros e benefícios. A situação, aparentemente pontual, se agravou. Calote no pagamento das férias de alguns funcionários, calote nas verbas rescisórias dos demitidos, calote no vale-alimentação. Os gerentes, que antes pediam compreensão, adotaram uma postura escorregadia e ignoravam os questionamentos sobre os atrasos. “Só repetiam não sei, não sei”. A quebra definitiva parecia uma questão de dias, mera formalidade. “Chegou uma hora que não tinha mais luva pra trabalhar, não tinha copo descartável pra tomar água”, lembra Ceará.

Alguns dizem que a ficha demorou a cair, percepção reforçada pela lembrança daqueles que até hoje buscam na Justiça as verbas rescisórias da Calorisol − empresa que antecedeu a MCE. Dessa experiência, ficaram duas lições. A primeira, garantir o pagamento de todos os direitos antes que a empresa resolva sumir − o que acontece com certa frequência. E, a segunda, lutar para que todos sejam admitidos pela empresa que for assumir o contrato com a Petrobras.

Por isso, Ceará não perdeu tempo e enfiou o seu currículo no bolso. Mas seria besteira reduzir sua história e chance de futuro a um pedaço de papel. O destino de um terceirizado que trabalha na manutenção da Petrobras depende muito mais do fiscal do contrato − função ocupada por um petroleiro concursado − do que de qualquer avaliação da empresa que irá assumir o serviço. Sempre foi assim, a nova empreiteira é oficialmente quem escolhe os funcionários, mas na prática o fiscal tem o poder de estipular quem ele quer que permaneça na Petrobras. A batalha, portanto, é ser um dos escolhidos para continuar na refinaria.

Ceará parece ter algumas vantagens. Experiência e dedicação são as mais visíveis. Dos quase 20 anos dentro da refinaria, com passagem por sete empresas, os três primeiros foram como ajudante de caldeiraria e os demais (até hoje) como caldeireiro. Ao falar sobre o trabalho, demonstra uma preocupação genuína com a qualidade das tarefas que realiza. “Se eu estou no meio de um trampo fico até terminar. Pode estar chegando a hora do almoço, não tem problema”, disse com um orgulho sincero. Com os braços abertos, o dedo indicador da mão direita esticado, aponta com facilidade cada área da refinaria em que trabalhou. Tem prazer no que faz. “Se hoje tenho duas casas, o meu carro, é graças a esse trabalho”, disse com serenidade.

Serenidade que é substituída, volta e meia, por um semblante mais preocupado quando relata sua luta contra o desemprego. Nesses momentos, os olhos miúdos parecem ainda menores e os lábios finos se movimentam sem parar, transformando palavras em frases, frases em história. Ainda assim, sua situação está longe de ser a pior. “Tem companheiros com conta atrasada, pegando empréstimo. Eu ainda tenho minha renda com o aluguel da segunda casa…”. Depois de uns segundos, completou. “Mas o inquilino é um amigo que trabalha comigo. Ele falou: ‘Aí, Ceará, esse mês não vou te pagar não, hein’. Acontece, o que eu vou fazer?”, disse sorrindo.

Ceará tem 43 anos. É um cara gentil, prestativo e excessivamente humilde, o que muitas vezes se transforma em insegurança. O dia em que o conheci estava do lado de fora da refinaria, conversando com outros operários. Era o mais articulado e relatou a situação da MCE por mais de uma hora. Quando decidi pedir uma entrevista, após conversar informalmente sem caderno ou gravador, ficou visivelmente constrangido e disse que não era bom pra essas coisas. Baixinho, não mais que 1,70 de altura, pareceu ainda menor conforme tentava justificar a recusa. E enrubesceu. “Tem bastante gente boa que você pode conversar. Já deve ter percebido, não sou bom com as palavras”. Enquanto tirava fotos da refinaria, numa estratégia para ganhar tempo e não receber o “não” definitivo, observei-o pulando de grupo em grupo de grevistas na esperança de encontrar alguém disposto a falar. Ninguém quis. Todos eles, falastrões em conversas informais, preferiam se calar diante da frase entrevista-para-o-jornalista. Resignado, veio ao meu encontro: “Ok, podemos conversar”.

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Cemitério de empreiteiras

Desde a explosão da Operação Lava Jato, que fez uma devassa nas empreiteiras envolvidas com a corrupção na Petrobras, cerca de 130 mil terceirizados foram demitidos. Se considerarmos que cada trabalhador demitido tem família, com uma média de três dependentes, estaríamos falando de praticamente 400 mil pessoas afetadas. Os números, alarmantes, são de dezembro de 2013 a junho de 2015, quando diversas obras importantes e algumas quase concluídas como no Comperj, em Itaboraí (RJ), foram interrompidas. Hoje, o número deve ser ainda maior.

“A Petrobras virou um cemitério de empreiteiras”, sentencia repetidamente Marcos Braz, o Macaé, que preside o Sintracomos, responsável por representar boa parte dos terceirizados na Baixada Santista.

Além de suspender obras estratégicas para sua expansão, a Petrobras anunciou em janeiro “ajustes” no Plano de Negócios e Gestão 2015-2019, que visam gerar caixa através da venda de ativos importantes no que é chamado de desinvestimento. A empresa pretende cortar em quase 25% os investimentos – de US$ 130,3 bilhões a US$ 98,4 bilhões. É o segundo corte no plano, que em 2014 tinha como meta investimentos na ordem de R$ 220 bilhões. Para o movimento sindical, o plano adotado pelo governo para a empresa aprofunda a sua privatização, repercutindo negativamente na segurança dos trabalhadores. Ao reduzir investimentos na manutenção das unidades, eleva-se o risco de acidentes. Não por acaso, além do medo de serem demitidos, os terceirizados convivem com outra sombra que não é menor: o medo de sofrer um acidente.  Nos últimos 14 anos, a companhia registrou 350 mortes – sendo as principais vítimas os trabalhadores terceirizados. Ceará, que nunca sofreu um acidente, atribui esse feito mais ao acaso do que a um talento individual especial.

Eles não têm green card

O drama dos terceirizados se explica em boa medida por algo que eles não possuem: o green card − crachá verde dos trabalhadores concursados da Petrobras. É pela cor do crachá que identificamos e diferenciamos um petroleiro concursado de um petroleiro terceirizado, que usa crachá marrom.

Além do crachá, o uniforme e equipamentos de segurança são diferentes. E de pior qualidade. O ônibus que transporta os trabalhadores até a unidade também é diferente. E de pior qualidade. O salário é diferente, os direitos são diferentes. E, claro, nesses dois casos também de “pior qualidade”.

A discriminação é evidente e muitas vezes se reproduz entre os próprios trabalhadores. Em alguns casos, petroleiros de crachá verde se comportam como chefes e dispensam um tratamento frio e preconceituoso. “A gente já viu cada cena de cortar o coração. Uma vez um operador da Petrobras não deixou um terceirizado tomar água na central de controle da refinaria. Disse que aquela água era deles (petroleiros diretos)”, relembrou Ceará.

Seria compreensível um desabafo ácido, que misturasse uma boa dose de raiva e mágoa, ao falar sobre o preconceito que os terceirizados sofrem, sobre o calote que a MCE está aplicando ou sobre o sentimento de abandono que muitos sentem diante das representações sindicais. Mas nem mesmo quando relata fatos dessa natureza Ceará perde a cordialidade. Ele é conciliador até na diferença e de tão diplomáticas, livres de paixão, suas críticas mais parecem conselhos.

Uma dessas críticas, que se repetiu nos relatos de outros trabalhadores, está na forma como a Petrobras conduz a fiscalização dos contratos. Para eles, há uma demagogia na postura da companhia. É extremamente punitiva na fiscalização dos serviços, “por qualquer besteirinha aplica multa”, mas omissa quando se trata de questões trabalhistas, “finge que não tem nenhuma responsabilidade sobre a gente”. Além disso, criticam duramente os critérios de contratação das prestadoras de serviço. “Na licitação do contrato atual a diferença do primeiro colocado pro segundo foi muito grande. A Calorisol jogou R$ 118 milhões. A MCE jogou R$ 89 milhões e ficou com o contrato”, disse um dos operários, para depois completar. “A empresa fixa um preço e acha que consegue bancar. Mas quando chega aqui dentro é outra história. Se não tiver bala na agulha, quebra”.

Independentemente da precisão das cifras citadas, todos concordam que a MCE forçou a mão ao estipular um valor abaixo da realidade e que a Petrobras fingiu não saber que terminaria em dor de cabeça. No final, quem está pagando por esse erro é o lado mais fraco da corda: os operários.

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O desencanto

Após 19 dias com os braços cruzados, no dia 3 de março os trabalhadores receberam a informação de que a MCE havia “jogado a tolha”. Sem que fosse necessária nenhuma votação, a greve teve fim. Diante disso, o sindicato resolveu organizar a rescisão do vínculo empregatício dos mais de 200 operários. O objetivo era ao menos agilizar o pagamento do FGTS e do seguro-desemprego. Para muitos, cujo desemprego deixou de ser uma ameaça e virou realidade, seria um grande respiro.

Em solidariedade, o Sindicato dos Petroleiros organizou uma campanha para a compra de cestas básicas aos desempregados. Além disso, distribuiu panfletos de apoio à greve denunciando a omissão da Petrobras e chamando os petroleiros de crachá verde a apoiarem os terceirizados. A iniciativa sensibilizou uma parte importante da força de trabalho concursada, demonstrando que nem todos tratam com indiferença o drama do petroleiro-crachá-marrom.

Por ora, tudo parece ser feito no improviso. Foi implantado um contrato emergencial com a Marte Engenharia, que já atua na refinaria, mas não se sabe por quanto tempo. Alguns falam em três meses, outros falam em quarenta dias, porém a única certeza é que será em caráter provisório. “Muita conversa, muito boato, a gente não sabe de nada”, desabafa Ceará. Cogita-se após este período um novo contrato (também emergencial) de seis meses e somente após esta janela a abertura de licitação. “É uma baita sacanagem da Petrobras. Deveria chamar imediatamente a empresa que ficou em segundo lugar, não ficar fazendo contrato tampão atrás de contrato tampão”, disse por telefone Macaé, presidente do Sintracomos.

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Ceará foi um dos selecionados para retornar à refinaria. Pelas circunstâncias, um privilégio. Dos mais de 200 trabalhadores, menos de 30 voltaram a trabalhar. A situação é tão precária que o retorno ao trabalho aconteceu antes mesmo da rescisão com a MCE. Além disso, Ceará ainda não sabe qual será o seu salário e boa parte das ferramentas usadas é emprestada. “Não sei até quando, mas estou trabalhando. É bom, né?!”.

A indefinição sobre por quanto tempo continuará na refinaria, se continuará na refinaria, afeta diretamente o sonho de vida de Ceará: voltar para terra natal. Ao lado da esposa, Rita de Cássia, com quem é casado há 23 anos, alimenta quase diariamente esse desejo. Eles não têm filhos e por algum tempo a ausência de um herdeiro foi motivo de frustração. Mas Ceará, que nunca teve coragem de fazer o exame para saber em quem estava o problema, prefere não pensar e nem falar muito sobre isso.

Os dois vieram juntos do simpático município de Morada Nova, no interior do Ceará, onde moram os seus pais. Uma vez por ano pegam a estrada e enfrentam uma viagem de 30 horas até a cidade natal. Matam a saudade, mas a despedida é sempre dolorida. Ceará quer cuidar dos pais, ser vizinho deles, estar com eles, cuidar deles. Afinal, se é verdade que não tem filhos para criar, não é menos verdadeiro o fato de que após uma certa idade nossos pais ocupam um pouco essa função.

A data do reencontro definitivo com o Estado que lhe serve de nome há quase duas décadas ainda é incerta. Se tiver sucesso na luta contra os calotes que sofreu da Calorisol, três anos atrás, e da MCE, mais recentemente, o regresso fica mais perto. Se conquistar a indenização que busca na Justiça pela audição afetada nos dois ouvidos, fruto de tantos anos de trabalho na indústria, é praticamente fazer as malas pra nunca mais voltar. Caso contrário, admite desolado, “vou ter que passar mais 15 anos batendo marreta”.

No mundo ideal, Ceará gostaria muito de ser um petroleiro crachá verde. Mas há muitos anos não existe concurso público na Petrobrás para a função de caldeireiro e desde o início da década de 1990 a terceirização vem dominando cada vez mais a companhia.

Hoje, é apontada como uma das principais portas de entrada para a corrupção através de contratos superfaturados, como demonstrou a Lava Jato. Ainda assim, a ampliação da terceirização tem sido reivindicada por amplos setores do empresariado como resposta à crise. É um desejo antigo que voltou com força na atual conjuntura através do Projeto de Lei 4.330 − aprovado na Câmara e encaminhado ao Senado, que ainda não apreciou a proposta. No movimento sindical, o consenso é de que a terceirização representa um grande retrocesso ao flexibilizar direitos trabalhistas fundamentais.

Os terceirizados recebem piores salários, são submetidos a piores condições de trabalho, sofrem com a alta rotatividade, com as demissões e perseguições − se organizar sindicalmente em muitas empresas é impossível. Isso explica, por exemplo, por que muitos trabalhadores decidem não contar suas histórias.

Não foram poucas as vezes em que cogitei a possibilidade de Ceará recuar e pedir para não ter o seu relato divulgado. Em meu último encontro com ele fiz duas perguntas que desde o início relutei em fazer. A primeira, se poderia usar o seu nome verdadeiro na reportagem; a segunda, se poderia tirar uma foto dele para ilustrar o texto. Muito diferente do operário encabulado de alguns dias antes, no início da greve, Ceará abriu um sorriso e disse que sim sem qualquer hesitação. “Não sei por que o pessoal tem medo de dar entrevista. Parece até presidiário”, disse sorrindo. “Não tem porque se esconder não, não fiz nada de errado. Eu sou trabalhador”.

Se Euclides da Cunha fosse um escritor do século 21, imerso nos dramas dos canteiros de obra da Petrobras, poderia dizer que o petroleiro terceirizado é, antes de tudo, um forte.

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