Uma viagem ao Pescoço da Lua
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Uma viagem ao Pescoço da Lua

O Cotopaxi, no Equador, segundo maior vulcão ativo do mundo, ameaça despertar e nos remete à nossa delicada existência

em 24/11/2015 • 20h07
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Das voltas que o mundo dá. E quantas seriam até subirmos 4.600 metros de altura? Fazia um frio tremendo, cinco graus, tempo fechado, neblina por todo lado.

Naquela manhã, saímos de Quito, a capital do Equador, pela estrada Panamericana Sur. O objetivo final: visitar o segundo maior vulcão ativo do mundo, o gigante que dá nome ao Parque Nacional Cotopaxi.  Depois de 60 quilômetros e uma hora e meia de viagem já estávamos na cidade de Latacunga (Estado de Cotopaxi), entrando em sua casa.

A camionete engasgou em mais um lamaçal. Eu e minha recém-formada família equatoriana, os Terneus, acabamos atolados. O sorridente Ramiro, conhecido como a “enciclopédia humana”, guia oficial das nossas expedições, mas engenheiro de profissão, era o copiloto da rodada.

Sebastián, seu filho mais velho, estava no volante. O aventureiro de bota e de coração tentava manter o controle e o bom humor. Saul, o caçula da família, gritava com o motorista, mas do porta-malas. Coitado, tinha sido esse seu destino já que estávamos com lotação máxima no veículo, resultado da minha presença.

No banco traseiro: eu, Belinda, amiga que conheci em Barcelona há alguns anos, e sua mãe Iliana. Foi para Beli a promessa que cumpria de visitá-la e naquele momento entendia o quanto a amava. Não pelo lamaçal, disso nunca tive medo. Mas só pensava numa coisa: tanto lugar no mundo e a amiga nasce em um país com 84 vulcões?

O Equador pertence ao Círculo de Fogo do Pacífico. A área de 40 mil quilômetros, que circunda vários países na bacia do Pacífico, possui a maior atividade sísmica do mundo, sendo responsável pela maioria dos terremotos, tsunamis e erupções vulcânicas que ocorrem no globo. Japão, Filipinas, Tailândia, Indonésia, Nova Zelândia e ilhas do Pacífico Sul estão nessa região. Na América Latina, o Círculo do Fogo abarca toda a costa oeste, do México ao Chile.

Estar rodeada por vulcões me parecia assustador, despertava em mim as fragilidades mais infantis. Apesar da apreensão que isso me causava, o Equador, com cerca de 16 milhões de habitantes, me impressionava também pela sua beleza natural e biodiversidade.

Em uma extensão territorial pouco maior do que a do Estado de São Paulo, se passeia por diferentes ecossistemas. Das inspiradoras Ilhas Galápagos (de Charles Darwin) à Amazônia. Passando pela Cordilheira dos Andes, de solo fértil e dos grandes vulcões, que recorta seu mapa de norte a sul. E haja fôlego para desfrutar das praias da Costa do Pacífico. Como diz Belinda, incansavelmente, com muito orgulho e toda razão: “¡Mi hermoso y chiquito pais!”.

Mas tudo isso não tirava meu foco! E os vulcões? Informação que, descontextualizada, gera desconforto. Para mim, certo arrepio até.

foto por: Marko Bizarro (capa); demais fotos: Lívia Velasco
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Todos são monitorados por laboratórios de diferentes níveis de vigilância, de acordo com a iminência de uma erupção ou do risco que oferecem à população.

Sessenta deles são inativos, com a última erupção há más de 10 mil anos. Isso inclui o maior de todos, o Chimborazo, com 6.268 metros de altura. Amém. Dezesseis são potencialmente ativos, pois despertaram há menos de 10 mil anos. Quatro são considerados ativos, com a última erupção há mais de 500 anos.

E outros quatro estão neste momento em erupção: Sangay (5.260 metros), Tungurahua (5.023 metros), Reventador (3.562 metros) e Cotopaxi (5.897 metros).

Ele, o nosso anfitrião, é dono do seu próprio parque, reina com seus 20 quilômetros de largura, um anel de fogo de 22 quilômetros de comprimento e com um glacial que cobre seu cone. Por estar em uma região densamente povoada, já que o parque cruza os estados de Cotopaxi, Pichincha e Napo, é o gigante que mais apresenta risco para a população.

Medo é bicho instruído, precisa ser domado. Eu ainda tentava domar o meu. Por isso fiquei quieta, muda e calada nos primeiros minutos dentro da casa dele. Não conseguia interagir muito. Queria passar desapercebida, com medo de que minha voz pudesse despertá-lo.

Como os demais em erupção no país, o Cotopaxi é monitorado pelo Instituto Geofísico de la Escuela Politécnica Nacional (IGEPN). Mas o medo faz tudo parecer improviso, mesmo sabendo dos Comitês de Operações de Emergências (COE) espalhados pelas 24 províncias do Equador (e um de âmbito federal).

Eu, pouco a pouco, domava meu bicho. Com a respiração mais lenta, já conseguia trocar algumas palavras com Beli. A medida que me sentia mais segura, recuperava minha vontade de interagir. As sensações foram se invertendo junto com as imagens capturadas pela retina: havia sim algo de majestoso naquilo tudo. Pedras vulcânicas gigantes destoam da paisagem, as montanhas e lagoas verdes e límpidas são coadjuvantes.‎

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Depois de uns 40 minutos dentro do parque, meus ombros já não pesavam. Naquele janeiro de 2015, tinha aprendido a olhar um vulcão, a encará-lo, me esqueci até da sua força mortal. Ele me enganchou. Foi-se o medo infantil, a vontade de ir embora, só queria estar ali, mesmo sabendo que pelos olhos dele minha existência era de uma bestialidade tremenda. Ramiro me explicava: “Em Quechua, idioma falado pelos índios andinos, Cotopaxi significa Pescoço da Lua e é considerado uma montanha sagrada”.

A caminhonete seguia seu curso sem engasgar. A vegetação parecia não ter tanta vaidade, depois de já ter recebido gases tóxicos, oceanos de lava, virar cinza e se reinventar novamente.

Paramos em um descampado à beira de um lago para um piquenique. Comemos e seguimos até o pé da alteza, a 4.600 metros. Lá,  um estacionamento dá acesso ao vulcão. Há duas opções neste caso: caminhar até uma próxima parada onde há um museu sobre a história do parque ou escalar o vulcão, para os realmente destemidos e preparados fisicamente.

Pelo frio que fazia, optamos por ficar no estacionamento. Descemos do carro. Arrisquei um sorriso, que naquela altura quase congelou, e fizemos uma foto. Fui até onde minha coragem alcançou, mas fui recompensada. A paisagem se preenchia de vulcão e nuvem. A própria onipresença materializada. Ali terminava minha viagem ao Pescoço da Lua.

Lembrei do deserto do Saara, onde justamente, o nada me arrebatou. A ausência de outra matéria, que não a areia, fez eco dentro de mim. Diante do Pescoço da Lua, a sensação foi inversamente deliciosa. Tive a certeza que cabia a ele ser o todo, e a nós, o nada.

O gigante pode ser visto de Quito e dos vales que rodeiam a cidade. Além dele, é possível avistar os vulcões Cayambe, Guagua Pichincha, Antisana, Pasochoa, Iliniza Norte e Iliniza Sul . Os vi como entidades ancestrais, verdadeiros talismãs, velhos sentados olhando o movimento ao seu redor. Não se contentam em desenhar horizontes, porque também são detentores de suas histórias, e ao mesmo tempo, vilões; já que depois de séculos ou anos calados, podem exigir a nossa atenção.

Ramiro e Iliana são um exemplo dessas narrativas que cercam os vulcões já que, não fosse o Cotopaxi, eles não teriam se conhecido, não transbordariam em amor tão puro. É que após sua última erupção, em 1877, os bisavôs dele vieram da Bélgica para o Equador na missão de reconstruir uma fábrica têxtil.

Na época, o Pescoço da Lua passou meses resmungando, dando sinais de que sairia do seu sono profundo, o que fez a população se acostumar com pequenas emissões de gases e cinzas, ruídos e tremores, ignorando o iminente perigo, ignorando a força do sublime.

Os dias 25 e 26 de junho de 1877 entraram para a história, em um capítulo triste. O majestoso acordou devastando tudo e todos, formando uma impressionante nuvem piroclástica, de gás quente, cinzas e pedras.

A mistura mortífera pode se alastrar pelo solo ou ser jogada na atmosfera, com temperaturas que variam entre 100 a 1.500 graus Celsius, chegando a 160 quilômetros por hora. Horas depois, as cinzas chegaram à capital do país, que escureceu imediatamente.

“(…) Todo o trecho [do parque do Cotopaxi a Latacunga] foi reduzido a um vasto campo coberto de lava, de cascalho e de pedras. Os casebres, que eram muitos pela região da grande planície, foram em grande parte destruídos; um número grande de pessoas e quase todo o gado foi arrebatado pela corrente; as plantações foram ou arrasadas ou destruídas”, relata o jesuíta e botânico Luis Sodiro, que a pedido do governo organizou, apenas dois meses após a erupção, um extenso relato.

Se a história tivesse terminado por aí, caberia a ela só um passado. Mas, em 14 de agosto deste ano, o Cotopaxi voltou a dar sinal de que poderia acordar novamente.

“Tudo mudaria na vida de todos nós, entraríamos em um colapso. Teríamos que usar máscara por causa das cinzas, proteger os olhos com óculos, usar botas, ter uma mochila de emergência com roupa para alguns dias, alimentos com conservantes, água, lanterna, rádio, soro fisiológico. E o mais difícil: estar mentalmente preparada para reagir sem pânico”, comenta a doce Iliana, que mora em uma região “segura” em Quito.

Desde então, o país ficou sob Estado de Exceção. O presidente Rafael Correa limitou a veiculação de todas as informações sobre o vulcão ao canais de comunicação do governo. O ato foi duramente criticado por muitos equatorianos – já que foi considerado como uma forte censura.

Atualmente, segue o alerta amarelo, a primeira fase de atenção adotada em casos como esse (posteriormente seguidos pelos alertas laranja e vermelho). Se ele acordar, 110 mil habitantes do estado de Cotopaxi, 100 mil de Pichincha e cerca de 15 mil em Napo podem ser afetados.

“O que vai acontecer com a minha família, meus amigos? Onde estaremos? Estaremos dormindo? Será de dia ou de noite? Me aterroriza saber que algo que pode acontecer, a qualquer momento, irá mudar nossas vidas para sempre”, desabafa Belinda.

Ramiro, como um bom engenheiro, pensa naquilo que não necessariamente está visível aos olhos. “Hoje, grande parte da infraestrutura perto do vulcão serve à Quito. As fontes de abastecimento de água, a rede eléctrica, dutos que levam gasolina e gás. A principal estrada que liga o sul ao norte do país, os aeroportos. Uma erupção pode ser muito mais catastrófica do que já foi no passado. Sem contar que falamos de zonas agrícolas que seriam destruídas e de cabeças de gado que morreriam, afetando o abastecimento de outras cidades”.

Para reduzir ao máximo a possível tragédia que o Pescoço da Lua pode causar e garantir toda segurança possível à população, órgãos oficiais também estão em intensa atividade. Instituições de saúde, forças armadas, comitês de operações de emergências, prefeituras e governos estaduais atuam em conjunto com o Ministério Coordenador de Segurança e o Instituto Geofísico.

Comunicados oficiais são divulgados duas vezes ao dia, há uma agenda intensa de visitas e palestras para a população, treinamentos de evacuação, divulgação das zonas de fuga e também informações sobre os vários albergues.

Não se acostumar com o sono profundo do gigante é uma questão de segurança, não se deixar levar por sua beleza é fundamental. É preciso estar sempre alerta.

“Quando esse dia chegar, se ele chegar, pegaria minha mochila de emergência que está pronta no meu quarto e iria com minha família e meus cachorros até uma zona alta. Minha casa fica em uma região segura, mas temos medo de ficar nela porque é bem próxima de onde passaria os dejetos do vulcão”, comenta a valente Beli.

Ao que parece, minha amiga, minha família equatoriana e seu país estão se preparando para enfrentar a força da onipresença. Com todo carinho, rogo que “La Pequenita”, Nuetra Señora de la Presentación del Quinche, Patrona do Equador, olhe por todos eles.

Dizem que são nas voltas que o mundo dá ou nessas voltas que damos pelo mundo que nos conhecemos um pouco mais. Depois do Pescoço da Lua, me sinto mais forte, domei meu bicho. Talvez o gigante tenha me agitado para fora de mim, tenha me dado coragem. Ou talvez, minha grande erupção se deu pelo aconchego de Belinda, Iliana, Ramiro, Sebastián e Saul, que além de me guiarem, por tantas voltas, também me reconheceram como um dos seus.‎

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Da esquerda para a direita: Ramiro, Lívia, Saul, Belinda, Iliana e Sebastián

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