Na semana passada, a Cepal (Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe), órgão ligado à ONU, divulgou dois importantes documentos. Um deles, o Panorama Social da América Latina 2015, estima que a taxa de pobreza na região tenha tido sutil aumento no ano passado, atingido 175 milhões de pessoas (29,2% da população), o equivalente de 7 milhões de pobres a mais, na comparação com 2014. Revela ainda que, desde 2010, alguns países reduziram a taxa de pobreza, como Brasil (-7,9%), Uruguai (-14,9%), Peru (-9,8%) e Chile (-9,1%).
O segundo documento foi uma carta de Alicia Bárcena, secretária-executiva da Cepal, em que ela diz que a presidente Dilma Rousseff “sofre julgamento sem provas” e expressa preocupação com a “ameaça à democracia” no país em razão da crise política.
A Calle2 fez uma entrevista exclusiva, por telefone, com Laís Abramo, diretora da Divisão de Desenvolvimento Social da Cepal, que vive em Santiago do Chile, para aprofundar ambos os temas: como a instituição vê hoje a crise política brasileira – e quais seriam seus possíveis impactos sociais – e caminhos para que a América Latina mantenha os avanços mesmo com a queda do preço das commodities.
“Na atual conjuntura da América Latina, podemos observar uma reação de setores da sociedade contra os avanços feitos nos últimos anos. Isso é um dos componentes das crises políticas em vários países da região. É como se existisse um embate entre a cultura da igualdade e a cultura do privilégio”.
Ao analisar dados trazidos pelo Panorama, relatório anual cuja íntegra será divulgada no próximo mês, Laís lembrou que o rumo são sistemas de proteção social universais, cuja construção pode combinar também políticas sociais com o objetivo de incorporar os mais necessitados, como fizeram programas de transferência de renda, como o Bolsa Família no Brasil.
Um mecanismo, no entanto, que se vê ameaçado diante da possibilidade de rupturas institucionais. “Se isso acontecer, teremos efeitos nas políticas sociais conquistadas. Sabemos que o combate à corrupção é essencial, já que é uma prática generalizada na região, mas isso não deve significar a paralisa de outros processos”, disse, ao lembrar a posição da Cepal sobre os recentes acontecimentos no Brasil: extrapolam fronteiras e ilustram “riscos e dificuldades aos quais ainda está exposta a democracia” latino-americana.
O relatório traz um capítulo especial sobre institucionalidade e desenvolvimento social. Uma vez que o Brasil hoje vive uma das maiores crises institucionais de sua história, como essa turbulência pode se refletir na área social e nos avanços dos últimos anos?
Se queremos uma sociedade mais igualitária e com justiça social é fundamental haver políticas de Estado que tenham essa marca. O Brasil nos últimos anos avançou de maneira forte não apenas em termos de políticas de superação da pobreza, mas também de inclusão no sistema educacional, inclusão racial na educação superior, assim como em políticas de valorização de salário mínimo que beneficiam mulheres e negros, e uma série de medidas inclusivas que devem ter sustentabilidade. A reação a esse tipo de política que hoje existe é algo muito complicado e tem de ser equacionado. A Secretaria Executiva da Cepal soltou uma nota na qual manifesta preocupação grande pelos acontecimentos no Brasil e a probabilidade de ruptura institucional e da legalidade democrática. Se isso acontecer, teremos efeitos na área social e nas políticas sociais conquistadas. Sabemos que o combate à corrupção é essencial, já que é uma prática generalizada na região, mas isso não deve significar a paralisia de outros processos.
Tendo um olhar mais específico, quais seriam as reformas mais necessárias ao Brasil, em sua opinião, de modo a continuar pela trilha que vinha seguindo no início dos anos 2000, em termos de progresso social?
Em primeiro lugar, é importante manter essa rede de proteção social incipiente. Programas como Bolsa Família e Pronatec são fundamentais para que se continue avançando. As políticas de mercado de trabalho terão de superar a conjuntura econômica desfavorável, com base na continuidade do processo de valorização do trabalho, que garantiu bons resultados. A previdência social é algo que deve ser pensada em um horizonte de longo prazo, para que se enfrente o processo de mudança demográfica sem destituir determinado setor da população de alguns direitos. Será preciso superar a conjuntura de recessão para retomar o crescimento econômico, com vistas a um desenvolvimento inclusivo.
Uma vez que o próprio conceito de desenvolvimento tem sido visto de maneiras distintas pela Cepal, de acordo com suas diferentes fases ao longo da história, como poderíamos definir desenvolvimento social hoje?
A proposta da Cepal dos últimos anos se condensa no que foi chamado de trilogia da igualdade. A ideia básica, e aí entra a questão do desenvolvimento social, é a de que a igualdade deve ser o horizonte do desenvolvimento, por isso a relação entre o econômico, o social e o ambiental é tão importante. Se a igualdade é um objetivo central do desenvolvimento, os temas sociais estão colocados no coração da Cepal. A igualdade é o horizonte do desenvolvimento, a mudança estrutural (do sistema produtivo, para que possa romper essa fábrica das desigualdades na região) é o caminho, e o instrumento é a política, entendida como ação do Estado via políticas públicas. Dentro de uma equação entre Estado, mercado e sociedade, tem de se construir consensos no sentido de que é esse o caminho pelo qual a sociedade quer avançar.
Na atual conjuntura da América Latina podemos observar uma reação de setores da sociedade contra os avanços feitos nos últimos anos. Isso é um dos componentes das crises políticas em vários países da região. É como se existisse um embate entre a cultura da igualdade e a cultura do privilégio.
E esse é um ponto chave para a sociedade latino-americana saber para onde quer caminhar. Inclusive, no momento em que existe uma nova agenda internacional, a de 2030, que coloca não apenas a superação da pobreza em todas as suas formas como objetivo, mas também a igualdade como questão central para avançar nessa direção. Resumidamente, é pensar como avançar no rumo dessa igualdade, entendida não apenas em termos de renda, mas de direitos e capacidades.
O ‘Panorama Social da América Latina 2015’, da Cepal, mostra que as desigualdades tornam-se mais evidentes ao considerar conjuntamente outras variáveis, como sexo, raça, etnia e anos de escolaridade. Os aspectos étnicos são novidade no informe? Qual a relação entre desigualdade econômica, gênero e etnia?
Lançamos na terça-feira 22 a síntese do panorama, cuja versão completa deve sair daqui a um mês. Nas edições anteriores, a questão de gênero já era muito presente, com temas como pobreza, desigualdade e evolução do gasto social bem constantes, junto a outros tópicos de menor relevância na questão social da América Latina. A questão de gênero é trabalhada extensivamente, sendo que na edição anterior há um capítulo inteiro sobre mulheres no mercado de trabalho.
A novidade é a relação disso com raça e etnia. Em novembro, havíamos lançado o documento Desenvolvimento social inclusivo: Uma nova geração de políticas para superar a pobreza e a desigualdade na América Latina e no Caribe, na Conferência Regional sobre Desenvolvimento Social da América Latina e Caribe, em Lima. A tese dele é que a matriz da desigualdade na América Latina está marcada pelo entrecruzamento da desigualdade de gênero e etnia. Elas não apenas se somam, como se potencializam quando se cruzam. Portanto, são as mulheres indígenas e as afrodescendentes em posições piores.
O panorama traz, por exemplo, dados sobre rendimento do trabalho e conclui: homens não indígenas ou afrodescendentes ganham com o rendimento do trabalho quatro vezes mais que mulheres indígenas e quase duas vezes mais que mulheres afrodescendentes.
E isso é bastante relevante, uma vez que ¼ da população latino-americana é indígena ou afrodescendente.
Hoje temos um retrocesso nas conquistas sociais dos últimos anos? Muitos criticam, por exemplo no Brasil, que emancipar os pobres à classe média não poderia ser somente aumentar o poder de compra dessa população. Qual seria, portanto, o passo seguinte ao aumento da renda dessas pessoas?
Sem dúvida, igualdade e emancipação não são apenas uma questão de renda. A Cepal tem uma concepção ampla de igualdades, que é de direitos e capacidades. O que aconteceu na América Latina até 2014 e também no Brasil não foi apenas um aumento da renda ou a retirada das pessoas da pobreza através da renda, mas principalmente um efeito de peso oriundo da renda do trabalho. A renda via programas de transferência de renda, como o Bolsa Família, é muito significativa, mas a renda pelo rendimento no mercado do trabalho, com políticas em torno do salário mínimo e da formalização do trabalho, também foi importante. Houve ainda maior acesso a serviços como educação, água potável, energia elétrica etc. Então não foi apenas a questão da transferência de renda. Esse foi um período em que se difundiu na região a importância das políticas públicas baseadas em uma noção de direitos. Essa visão se transformou, inclusive, na ideia da construção de um sistema de proteção social que tende à universalidade, um tema caro à Cepal, que alguns países têm implementado. Esperamos que a conjuntura econômica atual não muito favorável não signifique necessariamente um retrocesso. A projeção que a Cepal faz é que entre 2013 e 2014 houve aumento da pobreza, com mais 2 milhões de pessoas pobres, mas dentro de uma taxa que se mantém: a proporção de pobres em relação ao total ficou em 28%. O Brasil continuou reduzindo a pobreza de maneira importante nesse período: em 2014 foram 2,7 milhões de pobres a menos do que em 2013.
Os 10% mais ricos da população na América Latina e Caribe pagam uma taxa de impostos excepcionalmente baixa se comparado com àquela paga por trabalhadores assalariados, segundo pesquisa feita entre a Cepal e a OXFAM. Como sair desse círculo vicioso, de modo que impostos sejam revertidos em melhorias também para os mais pobres?
Esse é um tema chave, porque se a gente considera importante a manutenção e fortalecimento de políticas sociais tanto de proteção e promoção do emprego como de combate à pobreza, tem de haver financiamento para isso. Sabemos que em grande parte da América Latina os países arrecadam pouco e existe uma estrutura tributária regressiva, no sentido de que os mais pobres pagam proporcionalmente mais que os mais ricos, sem falar no alto índice de sonegação. Há países ainda muito dependentes de recursos naturais, como petróleo e cobre.
O que a Cepal propõe é o que chamamos de pacto social e fiscal, com um entendimento da sociedade de que é necessária uma melhor distribuição desses recursos, e que as estruturas tributárias passem a ser mais progressivas - ou seja, quem tem mais renda paga proporcionalmente mais do aqueles com menos.
E também que haja diversificação da produção para não ficarmos tão reféns de crises com a atual, de queda do boom das commodities.
Na Bolívia, uma mudança no modelo econômico desde 2006 determina dois destinos às receitas provenientes de recursos naturais como gás: o setor social (investimento de longo prazo) e a diversificação do sistema produtivo (investimento de médio prazo), a fim de não ficarem reféns das oscilações dos preços de matérias primas exportadas. Olhando para os demais países da região, houve inabilidade em manejar receitas advindas das commodities para se conseguir dar um salto em áreas estruturais, como a social?
Nesse período de bonança econômica, muitos países aproveitaram esse super ciclo das commodities para desenvolver políticas sociais e avançar na construção de sistemas de proteção social. Muitas políticas de transferência de renda e de caráter distributivo têm a ver com essa era. O comportamento da América Latina quando estourou a crise de 2008/2009, inclusive, era anticíclico e buscou utilizar o gasto social para proteger emprego e renda dos que mais necessitavam. Por outro lado, alertamos para a necessidade dessa diversificação da estrutura produtiva. A região é ainda muito dependente da exportação de matérias primas, e os níveis de diversificação produtiva e incorporação tecnológica são muito baixos, em um contexto internacional cada vez mais competitivo. Investir em inovação, para se ter um crescimento mais sustentável e valor adicionado ainda é uma tarefa pendente.
Como elaborar políticas sociais na América Latina? Deveríamos trabalhar em um primeiro momento de maneira focalizada e depois universalizada? Como fazer com que programas sociais se tornem políticas públicas mais sólidas, de longo prazo?
O que a Cepal pensa é que a focalização pode ser um instrumento rumo à universalização. O que se pretende é a construção de sistemas universais de proteção social, mas também dirigir recursos àqueles que mais necessitam, como no caso de programas de transferência de renda. Se puderem ser concebidos como parte de um sistema de proteção social, estamos no caminho correto, pois são instrumentos para incluir essas populações em políticas mais amplas. Uma vez que isso passa a ser visto como um direito, percebe-se a importância de os programas se transformarem em políticas de Estado. O que propomos não é criar dicotomia entre um e outro. O objetivo é a universalização, mas a focalização pode ser parte de um processo.
No panorama são analisados 58 programas públicos de inclusão laboral e produtiva de 21 países da região, que procuram ampliar as oportunidades de trabalho para a população em situação de pobreza e vulnerabilidade. Quais seriam os de maior destaque?
Os programas de inclusão laboral e produtiva visam ampliar oportunidades para que pessoas em situação de pobreza e vulnerabilidade possam se inserir melhor no mercado de trabalho. Muitos países têm tentando relacionar a isso programas de transferência de renda condicionada, que são estímulos para beneficiários se vincularem aos sistemas educacional e de saúde, a fim de melhorar as condições das próximas gerações. Entre os programas bem sucedidos temos no Brasil o Pronatec, cujos cursos profissionalizantes estão disponíveis para beneficiários do Bolsa Família e no caso mexicano o Prospera [Programa de Inclusão Social, bastante semelhante ao Bolsa Família]. Mas há também o Comunidades Solidárias Rurais em El Salvador, e eu citaria ainda as políticas brasileiras de extensão de crédito e assistência técnica para agricultura familiar, além do Programa Cisternas, que leva água não apenas para o consumo como também para a produção. Sabemos, no entanto, que faltam estudos para avaliar tais programas de forma mais clara.
O estudo mostra brechas no sistema educacional: enquanto 80% dos jovens de 20 a 24 anos entre os mais ricos teriam concluído a educação secundária em 2013, somente 34% das pessoas de mesma idade entre os mais pobres tiveram o mesmo resultado. Como pensar a educação dentro de reformas estruturais, de modo que não a desigualdade não se perpetue?
Os dois eixos-chave para a igualdade são a educação e o trabalho. A região praticamente universalizou a educação primária, que era um dos Objetivos do Milênio, apesar de, não esqueçamos, existirem grupos como indígenas, afrodescendentes e populações rurais que têm níveis menores que a média. A educação secundária, que também avançou bastante na região, é considerada o nível mínimo para interromper o ciclo de transmissão intergeracional da pobreza. Mas o trabalho é fundamental, pois é por excelência a vida de superação da pobreza.
Nesta edição do panorama há um capítulo para analisar a transição demográfica que vive a região, que em 2023 passaria de uma “sociedade juvenil” para uma “sociedade de jovens adultos”, em 2045 seria uma “sociedade adulta” e em 2052 estaria diante de uma “sociedade envelhecida”. Quais os desafios frente a essa nova realidade?
Muito se fala sobre o tal bônus demográfico ou janela de oportunidade, período em que a população em idade de trabalhar cresce mais rápido do que a população que não está em idade de trabalhar. Trata-se de um período em que a relação de dependência diminui, pois existem menos pessoas dependentes para cada pessoal potencialmente produtiva. A América Latina ainda vive essa situação de janela demográfica, mas isso tende a desaparecer nos próximos 15 anos. No entanto, se formos analisar por setores – educação, saúde, previdência – vemos que os desafios são grandes porque diminui o número de crianças e a pressão sobre o sistema educacional, mas temos o contrário quando se trata de saúde e previdência com a demanda de uma população envelhecida.
É importante pensar de maneira estratégica e desenvolver processos baseados em pactos que permitam uma provisão sustentável desses serviços. Enfatizamos sempre a importância de sistemas integrados de cuidado como bem público. Tradicionalmente, as tarefas de cuidado ficam com as mulheres, algo que dificulta a entrada das mesmas no mercado de trabalho em igualdade com os homens. As demandas no mercado aumentarão, teremos menos crianças, mas também uma população idosa com mais doenças. Então precisaremos resolver uma nova equação – entre famílias, empresas e Estado – sobre como prover um serviço de cuidado enquanto eixo do sistema de proteção social.