Quais os cenários possíveis após rejeição ao acordo de paz?
Análise

Cenários possíveis após rejeição ao acordo de paz

Na Colômbia, a vitória do “não” dificulta uma solução rápida e a votação apertada revela um país polarizado politicamente desde as guerras civis pós-independência

em 07/10/2016 • 11h49
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Como em um bom filme, o roteiro parecia preparado. Depois de cinquenta anos de guerra na Colômbia, o presidente Juan Manuel Santos e o líder das Farc Rodrigo Londoño, conhecido como Timoleón Jiménez ou Timochenko, assinaram o esperado acordo de paz no último dia 26, em Cartagena, sob os olhos da comunidade internacional e da ONU. Parecia que a Colômbia se erguia como um bastião televisionado da paz, que daria ao presidente Santos até o prêmio Nobel, anunciado hoje na Noruega.

Mas, contra todos os prognósticos, os colombianos rejeitaram a quarta tentativa de acordo com as Farc, surpreenderam e votaram pelo não no plebiscito do dia 2 de outubro, com uma margem apertada de vitória, de 50,21% contra 49,78% dos votos, e com uma alta abstenção. E agora? Como fica o fim desse filme? Por enquanto, o acordo fica suspenso: não se estabelecem todos os termos de suas 297 páginas, nem se rompem completamente. O cessar-fogo bilateral se mantém pelo menos até o fim deste mês, mas reina a incerteza sobre as cenas dos próximos capítulos.

A surpresa com o resultado do plebiscito do último domingo foi generalizada. Nem mesmo o único partido apoiador do “Não”, o Centro Democrático, do senador e ex-presidente Álvaro Uribe Vélez, sabia bem o que dizer. Ao final do dia de votações, Uribe fez um discurso de cinco minutos, pedindo paz e um pacto nacional. O presidente Santos também falou em união entre apoiadores do Sim e do Não, e Timochenko já havia sido o primeiro em dizer que o diálogo seguia. Mas há consenso possível entre essas três forças e as vítimas do conflito, depois do naufrágio de uma negociação de quatro anos?

As principais discordâncias de Uribe e dos apoiadores do “No” são a participação política e a Justiça de transição para os líderes das Farc. Ou seja, que o secretariado da guerrilha possa se candidatar a eleições e participar de um processo de julgamento especial para os crimes que cometeu nas últimas décadas, trocando um rebaixamento de pena por contar a verdade sobre os acontecimentos.

Diferentes possíveis cenários se formam para os próximos meses na Colômbia, e nenhum deles aponta para uma solução rápida. O governo e a oposição já iniciaram uma aproximação, mas não se sabe até onde cada ator está disposto a ceder.

O ponto mais sensível do novo pacto deve ser a Justiça, de acordo com Juan Carlos Chaparro, professor de Ciências Políticas da Universidad Nacional de Colombia. O secretariado das Farc pode até renunciar a cotas de participação política, mas não deverá aceitar ser o único culpado por uma guerra de 50 anos, nem ser tratado como um grupo de criminosos comuns. Chaparro afirmou ainda acreditar que o Centro Democrático irá estender as negociações até pelo menos meados de 2017, quando se costumam lançar as candidaturas para as eleições do ano seguinte, com a intenção de capitalizar politicamente o seu protagonismo nos rumos da guerra, sejam eles quais forem.

O outro cenário possível é que Santos decida tramitar o acordo de paz no Congresso de qualquer forma, considerando que a maioria dos partidos o aprovaria. O plebiscito é uma consulta popular, mas, pela Constituição do país, o seu resultado não é vinculante, e não inviabiliza a continuação do processo. Porém, como o governo sempre defendeu a aprovação popular, a perda de capital político seria grande e comprometeria o resultado das próximas eleições.

Além disso, alguns analistas políticos e a imprensa colombiana têm divulgado que o uribismo pode defender a formação de uma Assembleia Constituinte. Neste caso, a população voltaria às urnas para votar por partidos políticos, e definiria a porcentagem de cada legenda na assembleia. O principal beneficiado por esse modelo seria Uribe, já que seu partido possui uma participação política minoritária, mas demonstrou ter força nas urnas.

A rejeição ao acordo já gerou consequências, como o congelamento de apoios econômicos internacionais, incluindo o fundo de 575 milhões de euros (2,06 bilhões de reais) previstos pela União Europeia.

Mas o temor maior é o de que qualquer faísca dispare a volta de uma guerra que gerou mais de oito milhões de afetados, segundo números oficiais, a grande maioria de deslocamento, mas também de homicídios, sequestros, torturas, recrutamento de menores, desaparecimento, mutilação por minas, violência sexual e ameaças. Um dos medos é o de que os guerrilheiros que já se identificaram nas regiões onde atuam sofram perseguição e represálias. O outro é que, sem a ajuda econômica do Estado para desmobilizar-se, voltem a delinquir para obter dinheiro.

Mas, afinal, quais foram os motivos que levaram 50,21% dos votantes a rejeitarem o acordo e optarem pelo “Não” nas urnas? Muita gente, dentro e fora da Colômbia, não entendeu o resultado, que não era esperado nem pela campanha do “Sí”, nem por apoiadores do “No”, e muito menos pela comunidade internacional. A votação apertada mostrou que o país continua dividido, bipartido.

A polarização política na Colômbia não é algo novo, e remonta às guerras civis pós-independência e, principalmente à época conhecida como 'La violencia', entre as décadas de 1940 e 1950, quando liberais e conservadores não declararam guerra, mas promoviam homicídios e perseguições aos membros do partido contrário, usando, inclusive, o aparato estatal de repressão.

Nessa época houve a ação de matadores ligados aos conservadores e de guerrilhas liberais, que nasceram como uma forma de defesa. A origem das Farc, em 1964, tem essa inspiração, já que seu fundador Pedro Antonio Marín, conhecido como Manuel Marulanda ou Tirofijo, foi líder de uma organização armada liberal nos anos 1950.

A jornalista colombiana Maria Teresa Ronderos usa o termo “guerras recicladas” como título de seu livro que trata sobre o paramilitarismo no país, a partir dos anos 1980. O termo resume o conflito na Colômbia: a polarização entre liberais e conservadores mudou historicamente e, com a influência de fatores políticos e econômicos internos e externos, reciclou-se. Passou a ser entre guerrilheiros e paramilitares (estes muitas vezes apoiados pela força pública) e foi aprofundada pelo narcotráfico e pelo aumento exponencial da violência. O imaginário da guerra, e da existência de um inimigo interno, não deu trégua.

A polarização se pode ver nas diferenças regionais da votação do plebiscito. No departamento de Antioquia, berço de Uribe, o “No” venceu. Por outro lado, em municípios mais rurais e com mais vítimas do conflito, como Boyajá, em Chocó e Tumaco, em Nariño, ganhou o “Sí”. Essa relação, entretanto, não funciona para departamentos como Caquetá e Meta, que possuem forte presença das Farc e rejeitaram o acordo.

Os discursos das campanhas aprofundaram a polarização. Os apoiadores do “No” usaram a estratégia do medo, afirmando que o líder das Farc, Timotchenko, seria presidente, disseminando que a Colômbia se transformaria em “uma Venezuela”, inflando cifras dos apoios econômicos aos guerrilheiros desmobilizados e realçando que o acordo defendia a impunidade.

Também foi usado um discurso conservador sobre temas não diretamente vinculados ao acordo, apoiado por grupos religiosos, que criticaram uma cartilha de educação sexual construída pelo Ministério da Educação do governo. O material abordava diferenças de orientação sexual e identidade de gênero, o que causou polêmica. A ministra da pasta, Ginna Parody, renunciou após a vitória do “No”.

A campanha do governo Santos colocou lenha na polarização, ao divulgar a ideia de que o “No” era apoiar a guerra, o que gerou críticas daqueles que defendem um acordo diferente e rejeição nas urnas. A votação também foi influenciada pelo furacão Matthew, que afetou a costa caribenha e impediu eleitores de votarem, e pelas pesquisas eleitorais que apontavam uma vantagem para a aprovação do acordo, que podem ter desmotivado apoiadores menos convencidos em um país onde o voto não é obrigatório.

O acordo de paz já assinado não é suficiente para solucionar os problemas que geraram o conflito na Colômbia, como a desigualdade na posse da terra e a falta de presença do Estado nas regiões afastadas dos centros urbanos, e nem abrange a guerrilha do ELN (Exército de Libertação Nacional), que continua ativa. De qualquer modo, o acordo abriu um espaço para a superação do imaginário dessa guerra. Em Bogotá, onde a votação majoritária foi pelo “Sí”, a segunda-feira depois do plebiscito foi um dia de lágrimas, pois havia a esperança de que a aprovação seria um primeiro passo para o fim de um conflito de cinco décadas.

A desilusão ocorreu principalmente entre os jovens, o que resultou em mobilizações pela paz como a da última quarta-feira, que reuniu milhares de pessoas por todo o país. O que se espera é que, apesar da incerteza, aperto de mãos entre Santos e Timochenko sobreviva de alguma forma. Esta é a primeira tentativa de acordo na Colômbia com a participação ativa das vítimas, e as pessoas que sofreram ataques de diferentes atores armados, inclusive do Estado, não podem seguir ignoradas se o país deseja construir uma paz minimamente estável.

 FOTO: Andrés Valle/ Presidência Perú

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