Por que Evo Morales perdeu o referendo? 3
Análise

Por que Evo Morales perdeu o referendo?

Casos de corrupção, queda do preço das comoditties e alto custo de vida contribuíram para derrota do presidente boliviano

em 23/02/2016 • 23h30
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Quem cruzasse a Bolívia nos últimos meses teria a impressão de que a maioria da população apoia incondicionalmente o atual governante do país. Em grandes e pequenas cidades de norte a sul, de leste a oeste, o “sí” estampava muros, bandeiras e cartazes por toda parte. Era a campanha oficial a favor da alteração do artigo 168 da Constituição que, se fosse aprovada, permitiria duas reeleições seguidas para os cargos de presidente e vice-presidente, dando a Evo Morales e Álvaro Garcia o direito de disputarem novamente o pleito em 2019 (podendo ficar no poder até 2025). Entretanto, o que se viu nas urnas no último domingo (21) foi uma vitória do “não”, ainda que apertada.

Com 99,41% dos votos apurados, o “não” ganhou com 51,33% e o “sim” ficou com 48,67%. Dos bolivianos que vivem no Brasil, 76,08% votaram a favor de Evo e apenas 23,92% deram voto contrário. O resultado deste referendo, inesperado para o governo, está inserido em um complexo contexto nacional e internacional. Mais uma vez, a crise das commodities, reforçada pela queda das importações chinesas, afetou o cenário, fragilizando setores importantes da economia boliviana, como a mineração e a agricultura. Muitas minas de zinco diminuíram suas atividades nos últimos meses por conta da baixa do valor do produto no mercado internacional, gerando demissões. A queda no valor das exportações também afetou o Orçamento do governo – que, apesar da redução de receitas, conseguiu manter o crescimento do PIB em 5% e reduziu a pobreza no país.

No âmbito interno, casos de corrupção, aumento do custo de vida e demanda por alternância de poder pesaram contra Evo. Nos últimos meses, veio à tona um suposto caso de tráfico de influências envolvendo uma ex-companheira de Evo Morales que teria beneficiado a empresa chinesa CAMC, onde trabalha como gerente de marketing, ao fechar contratos com o governo. Ainda que a resposta oficial tenha sido rápida –  acionando a Justiça para executar títulos de garantia da empresa no valor de 158 milhões de pesos bolivianos (US$ 23 milhões) em represália a obras não concluídas -, a oposição explorou o caso e a imagem de Morales ficou manchada.

Meses antes, ocorreu um escândalo de desvio dos Fundos Indígenas, no valor de US$ 6,8 milhões, envolvendo mais de 200 pessoas. Um incêndio na prefeitura de El Alto, na zona metropolitana de La Paz, deixou seis mortos na quarta-feira (17), com possíveis motivações políticas relacionadas ao ex-prefeito ligado ao presidente.

A maioria dos bolivianos tem a percepção de que a corrupção não é um problema novo no país, mas todo caso tende a afetar a opinião pública no curto prazo. Em todos esses eventos, a imprensa local cumpriu um papel de oposição, especialmente a figura do jornalista Carlos Valverde, que trouxe à tona o caso CAMC. Ainda que alguns veículos tenham tomado posicionamentos mais brandos, não faltaram ataques frontais à figura de Morales.

“Não vamos pensar que esse governo não fez coisas positivas para o país, pois ele fez, mas lamentavelmente o entorno que tem o levou a um fracasso político. É precisamente por isso que o povo vota 'não' neste referendo”, avaliou o aposentado Orlando Iglesias, 64, em referência aos casos de corrupção.

Por outro lado, a inclusão de populações marginalizadas na economia boliviana, ainda que seja bem-vista por diversos setores da sociedade, acabou acarretando uma alta generalizada do custo de vida nas cidades, afetando principalmente os preços dos alimentos. As famílias de classe média em geral reclamam que Morales “governa apenas para os pobres”.

Finalmente, a carreira presidencial de Evo parece ter atingido seu limite no imaginário da população a partir dos parâmetros do que é “democrático e republicano”. Eleito pela primeira vez em 2005, Morales teve seu mandato “renovado” após uma nova Constituição entrar em vigor em 2009 e foi reeleito em 2014, sempre com maioria absoluta de votos. Caso o “sim” saísse vitorioso no referendo, Evo e Álvaro teriam a possibilidade de permanecer um total de 20 anos no poder.

Membros e apoiadores do MAS (Movimento ao Socialismo), o partido do governo, afirmaram que não estavam a favor da alteração constitucional por considerar demasiado o tempo de permanência no poder.

“Sempre votei em Evo, mas essa vontade de permanecer no poder me cheira a ditadura”, justificou Luis Gutierrez, empresário do turismo que diz ter votado em Morales nos últimos dez anos, mas que agora mudou de opinião.

A questão que surge é a atual falta de nomes fortes, tanto no partido governista quanto na oposição, que se apresentem como alternativas após o fim do mandato Morales-Garcia. Pode-se dizer que o referendo foi uma tentativa frustrada para contornar essa carência de lideranças. Ainda assim, antes mesmo do resultado do referendo, membros da oposição chegaram a afirmar que uma vitória do “não” significaria uma derrota política para Morales, que perderia legitimidade para governar e deveria deixar o cargo. Agora, resta acompanhar se o país entrará em clima de instabilidade política ou se apenas se abrirá uma vaga a ser ocupada democraticamente nas próximas eleições.

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