Golpe de Estado em Honduras, em 2009. Impeachment relâmpago do presidente do Paraguai em 2012. Acolhimento de processo de impeachment contra a presidente Dilma Rousseff há uma semana, fruto de uma retaliação do presidente da Câmara, Eduardo Cunha, ameaçado de ser cassado por ter contas no exterior. E aprovação de reeleição ilimitadas no Equador na última quinta-feira. Apesar de a democracia na América Latina parecer relativamente bem consolidada, ela vacila em alguns países e em determinados momentos. Por que?
Para o doutor em Sociologia e professor da Escola de Artes, Ciências e Humanidades e do Programa de Pós-Graduação em Integração da América Latina da USP, Wagner Iglecias, a democracia no continente é jovem e ainda está em processo de consolidação, mas precisa ser aprofundada. “Não podemos ter apenas uma democracia eleitoral. É preciso aprofundar a democracia e educar as pessoas a participarem e a demandarem do Estado. Elas precisam entender que o Estado é empregado da sociedade e não o seu patrão”.
Em entrevista à Calle2, Iglecias faz uma análise dos últimos golpes e processos de impeachment no continente. Para ele, faltam elementos sólidos para configurar crime de responsabilidade contra a Dilma – neste aspecto, o caso se assemelha ao impeachment de Fernando Lugo no Paraguai. Mas, para Iglecias, a maior afronta à democracia é cotidiana: “A maior afronta à democracia na América Latina talvez seja, de um lado, a persistência da pobreza e da desigualdade social, e, de outro, os ataques cotidianos aos mais pobres, aos excluídos, aos invisibilizados: os indígenas, os negros, as mulheres, os homossexuais, a juventude e tantos outros grupos presentes em nossas sociedades.”
Vimos na semana passada três fatos importantes: a aprovação de reeleições ilimitadas no Equador, o acolhimento de um processo de impeachment no Brasil e o Maduro fazendo ameaças na Venezuela caso a oposição amplie seu espaço no Parlamento. O que acontece com a democracia latina? Por ser jovem, ela às vezes titubeia?
Não sei se titubeia. As instituições políticas latino-americanas estão se fortalecendo nas últimas décadas. Mas obviamente há nuances de país para país. Na Venezuela, por exemplo, desconfiava-se que se o governo perdesse a eleição parlamentar poderia não reconhecer o resultado. Mas o fato é que a oposição venceu a eleição parlamentar e o presidente Nicolas Maduro foi à TV reconhecer a derrota. Já no caso do Brasil, somos uma democracia há 30 anos. Mas, para boa parte dos brasileiros, nossa democracia é meramente eleitoral, na medida em que as pessoas participam da vida política apenas no momento do voto. É aquela postura de acompanhar por alto a campanha eleitoral, ir às urnas e depois voltar para a vida privada e ficar de longe reclamando da classe política. Nesse sentido, podemos dizer que no caso do Brasil, embora haja movimentos sociais organizados e bastante ativos, trata-se de uma democracia de baixa intensidade em termos de participação das massas se comparada ao que ocorre em outros países da região. Bolívia e Equador, por exemplo, que são democracias mais recentes que a brasileira, têm uma participação popular mais intensa e cotidiana. Na Argentina, onde o grau de politização da sociedade é relativamente alto, a situação não é muito diferente. Voltando ao caso da Venezuela, é importante lembrar que intensificou-se muito nos últimos anos a participação popular nos processos decisórios do Estado. Existe uma tendência, propagada pelos meios hegemônicos e já transformada quase em um senso comum, de dividir a América Latina em dois grandes blocos políticos: os países democráticos e as nações bolivarianas, que segundo esta concepção seriam ditaduras. A pergunta é: será que isso procede? Será que Colômbia, Peru, México, tidos como países democráticos, seriam mais democráticos que os outros? Tanto na Colômbia, quanto no Peru e no México, há denúncias de perseguições e desaparecimentos de lideranças indígenas e de lideranças populares. Será que por serem países governados pela direita, com economias mais abertas aos interesses de mercado e mais vinculadas aos EUA, estas nações não enfrentam problemas associados à consolidação e ao aprofundamento de suas democracias? É claro que enfrentam, assim como todos os demais.
Mas por que a democracia ainda vacila?
A democracia latino-americana é recente, enfrenta problemas, mas está se consolidando. É preciso aprofundar a democracia e educar as pessoas a participarem e a demandarem do Estado. Elas precisam entender que o Estado é empregado da sociedade e não o seu patrão. Há uma crítica já generalizada, no caso do Brasil, de que o governo Lula incluiu mais de 30 milhões de pessoas no mercado de consumo mas não as politizou. Isso parece procedente. Quando se fala em politizar não estamos aqui nos referindo a partidarizar os indivíduos, mas em prepará-los para serem cidadãos. Em todos os países da região temos problemas com relação ao grau de aprofundamento da nossa democracias. Parece-me que no caso de Bolívia, Equador e Venezuela, avançou-se mais nesta questão do que em outras nações latino-americanas. Por outro lado, vemos nestes e em outros países a predominância líderes carismáticos, como é o caso de Evo Morales, Rafael Correa e Hugo Chávez. Trata-se de um fenômeno importante, porque em certa medida a proeminência de lideranças políticas fortes é garantidora da continuidade de um projeto político de mudança. Mas trata-se também de algo complicado e limitante.
O processo de transformações sociais e políticas não pode depender da figura de um líder único, porque o protagonista do processo de transformações sociais, especialmente se este processo se pretende revolucionário, deve ser o sujeito coletivo, deve ser a sociedade.
É claro que é muito difícil fazer transformações profundas na América Latina, uma região muito pobre e desigual, periférica na economia mundial e sob fortes pressões dos Estados Unidos. Ante este cenário, reconheço a importância da liderança carismática como fiadora da continuidade das transformações, mas o projeto a longo prazo não se sustenta se depende majoritariamente do indivíduo A, B ou C.
Apesar de eventos antidemocráticos, o balanço é positivo?
Estamos avançando, mas ainda há muito a avançar. Se voltarmos no tempo, vemos que quase todos os países latino-americanos viviam ditaduras militares há 30 anos atrás, com exceção da Venezuela, da Colômbia e do México. Todo o Cone Sul foi governado por militares e a América Central vivia uma instabilidade política crônica. Mas não há como se contentar com uma democracia reduzida ao aspecto eleitoral. Para além da necessidade de tornar a participação popular nos processos de construção de políticas públicas algo mais efetivo do que é hoje, temos também que dar um outro passo: distribuir melhor a riqueza, criar oportunidades para as pessoas, evoluir na questão social e distribuir melhor a terra. O caráter social da democracia é também fundamental para a sua consolidação na região.
Quais foram, na sua avaliação, os fenômenos mais significativos, nos últimos dez anos, de afronta ao sistema democrático? O golpe do Zelaya, o impeachment do Lugo?
Um fato muito importante de afronta à democracia foi o impeachment do ex-presidente Fernando Lugo no Paraguai. Ele foi responsabilizado pelo Judiciário por um confronto entre agricultores e policiais e ele teve apenas 24 horas para fazer a sua defesa. Embora legal, na prática não houve tempo para que um devido processo de defesa do acusado ocorresse. Assim como foi uma afronta ao sistema democrático a cassação do ex-presidente de Honduras Manuel Zelaya. Ele, à época, estava tentando aprovar uma emenda constitucional que lhe possibilitasse a reeleição e por esta razão foi retirado do poder. Sendo que nos anos 1990 diversos líderes políticos da região aprovaram tal mudança constitucional em benefício próprio e nada lhes ocorreu.
No entanto, a maior afronta à democracia na América Latina talvez sejam, de um lado, a persistência da pobreza e da desigualdade social, e de outro os ataques cotidianos aos mais pobres, aos excluídos, aos ‘invisibilizados’: os indígenas, os negros, as mulheres, os homossexuais, a juventude e tantos outros grupos presentes em nossas sociedades.
Tome-se os assassinatos de líderes populares no Peru, na Guatemala e na Colômbia, ou o recente desaparecimento dos 43 estudantes no México, por exemplo, provavelmente mortos num conluio entre forças policiais e o crime organizado. A afronta maior à democracia latino-americana é essa guerra do Estado ou de grupos poderosos contra os mais fracos. E lembremos da contradição do próprio Brasil, governado há mais de uma década por um partido de origem na esquerda e onde há um extermínio cotidiano da população jovem negra e pobre.
O que o senhor acha do processo de impeachment da presidente Dilma?
Faltam elementos mais sólidos para configurar crime de responsabilidade. Se não aparecerem elementos mais sólidos, me parece sim que pode ser considerado um golpe.
Há mais semelhanças ou diferenças deste processo com aquele que resultou no impeachment do Lugo?
Pela questão do tempo de defesa, tem mais diferenças, já que Dilma terá várias semanas para apresentar sua defesa, e o processo, se chegar ao plenário da Câmara e do Senado, deve se arrastar por no mínimo seis meses. Se isso realmente acontecer, ficaria evidente a diferença com o caso paraguaio, onde a oposição tinha uma única bala e a usou à queima roupa, afastando o presidente da república em um dia. Mas a tendência de se interromper um governo pela via judiciária e parlamentar faz com que o processo que está em curso no Brasil assemelhe-se, em certa medida, ao caso paraguaio.
O senhor concorda com a tese do ex-governador de São Paulo Cláudio Lembo de que o impeachment é uma ferramenta usada pelas oligarquias para derrubar presidentes com bases populares?
Sim, concordo. Foi assim em Honduras e no Paraguai, que eram liderados por políticos de esquerda na ocasião. É interessante observar que não há o risco de derrubada de presidentes no Peru, na Colômbia ou no México ou em outros países cujos governos estão nas mãos da direita há muito tempo. O dado concreto é que na América Latina os golpes ocorrem contra lideranças que tentam implantar projetos progressistas. E estes passam por dois elementos fundamentais: a incorporação de mais gente à economia formal e ao consumo, o que passa necessariamente por distribuição de renda; e a construção de uma inserção mais altiva dos nossos países no cenário internacional.
Politicamente, a América Latina parece estar dando uma guinada conservadora, com a recente eleição do Macri na Argentina e com a vitória da oposição nas eleições parlamentares da Venezuela. Estaríamos no princípio do fim do ciclo esquerdista na região?
Não sei se dá para dizer que estamos encerrando um ciclo, apesar de a vitória da direita na Argentina – pelo tamanho da economia e importância estratégica –, ser significativa. No caso da Venezuela, o partido de Maduro perdeu maioria no parlamento, mas ainda não sabemos o que isso significa em termos práticos. Pode ser que a direita consiga maioria suficiente para destituir ministros do governo e da Suprema Corte e até mesmo o vice-presidente da república. Pode ser também que consiga convocar um referendo revogatório, mecanismo previsto na Constituição venezuelana e que pode ser acessado a partir da metade do mandato presidencial [em abril do ano que vem], e, no limite, pôr um fim antecipado ao governo Maduro. A vitória oposicionista vai criar problemas na Venezuela, mas ainda é cedo para conhecermos todas as dimensões disto. Já no Brasil não está descartada a possibilidade de impeachment, diante da crise econômica que o país enfrenta e de um governo politicamente fragilizado como é o caso do governo Dilma. Se esses três processos se consolidarem [impeachment no Brasil, atuação cada vez mais forte da oposição venezuelana e consolidação de um governo de direita na Argentina], podemos sim falar em guinada à direita. Por outro lado é importante lembrar que quando falamos em “guinada à direita na América Latina” se pressupõe que antes o continente todo estava sendo governado pela esquerda, o que não é o caso. México, Colômbia e Peru têm governos de direita. E até mesmo o Chile, que, apesar de ter um governo formalmente socialista, está mais ligado ao centro no espectro político e tem uma inserção internacional subordinada aos EUA. O que está ocorrendo é que países que caminharam para a esquerda no início deste século, como Venezuela, Brasil, Argentina, Bolívia e Equador agora enfrentam, em maior ou menor grau e por distintos motivos, crises neste modelo. Mas é importante ressaltar também que a direita que está reconquistando alguns destes países terá dificuldades em implantar uma agenda neoliberal radical daqui por diante, à medida em que os setores populares estão hoje muito mais organizados que nos anos 1990 para resistir a reformas que possam impor perdas à maioria da população.