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Sociedade

Por entre guerrilhas, um exemplo de paz

Povoado colombiano em Urabá, região dominada por guerrilheiros e paramilitares, consegue estabelecer a tranquilidade com trabalho comunitário e proibição de armas

em 27/05/2016 • 11h20
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“Proibida a entrada sem autorização!”, diz a placa na entrada da Comunidad de Paz de San José de Apartadó, na Colômbia. Dentro da comunidade, mais um dia começa tranquilo: as mulheres acendem os fogões à lenha, enquanto os homens saem para trabalhar no cultivo de cacau e as crianças se arrumam para o colégio. Mas a tranquilidade atual esconde uma história de mais de três décadas de violência.

O dia é 26 de dezembro de 2005. Ainda estava escuro quando eles chegaram. Por volta das 5h da madrugada, um grupo de militares invadiu uma casa em uma localidade conhecida como Vereda La Cristalina, onde dormiam seis jovens com idades entre 15 e 25 anos, depois de uma festa de Natal. Todos eles foram assassinados. Ao todo, sete vidas se perderam, já que Blanca Quintero, uma das vítimas, estava grávida.

Infelizmente, esse incidente é apenas um dos muitos massacres que já aconteceram em San José de Apartadó nos últimos anos. A poucos metros do portão de entrada da comunidade, é possível ver um monte de nomes pintados em diferentes cores. É o Monumento de la Memória, que homenageia todas as pessoas assassinadas até hoje, seja por grupos paramilitares, guerrilheiros ou pelo próprio Exército.

A Colômbia é o 15º país mais violento do mundo. Com uma economia estável, e em crescimento, o país é dominado por cartéis de produção de cocaína e por guerrilhas armadas. O governo de Juan Manuel Santos negocia, há dois anos, acordos de paz com as FARCs (Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia) e, há dois meses, com o ELN (Exército de Liberação Nacional). Porém, há o receio de que novos grupos guerrilheiros tomem o lugar ‘vazio’ das tradicionais guerrilhas.

A Comunidade de Paz de San José de Apartadó está localizada em Urabá (na fronteira com o Panamá), região conhecida por ser uma das mais conflagradas pela guerra travada entre guerrilheiros e paramilitares. Apenas entre 1995 e 1997, foram assassinadas 1.200 pessoas na região e outras 10 mil foram desplazadas (deslocadas pelos conflitos).

Cansados de estar no meio da guerra, em março de 1997, decidiram se declarar neutros no conflito e fundaram a Comunidad de Paz, rejeitando a presença de qualquer ator armados dentro do seu território − inclusive o próprio exército colombiano.

Eles também instalaram um esquema de trabalho coletivo e comunitário. A cada dois meses, os moradores se reúnem em assembleias, onde tomam decisões sobre o futuro, resolvem conflitos entre vizinhos, aplicam multas ou trabalho comunitário a quem infringe o regulamento e verificam o funcionamento de 55 grupos temáticos de trabalho (saúde, educação, cultivo, etc). Às sextas, eles se dedicam ao trabalho comunitário: limpam o povoado, fazem manutenção na escola ou ajudam algum morador que precisa de melhorias em sua casa.

Em uma das muitas pequenas casinhas de chão de terra batida vive Doña Brígida González. Sempre com o semblante oscilando entre o doce e o ingênuo, quem lhe vê pela primeira vez não imagina a história da sua vida. Ela começou ajudando os pais no pequeno cultivo da família, mas anos depois conseguiu seu primeiro trabalho remunerado, em uma indústria bananeira. “Éramos 46 mulheres, que trabalhávamos todos os dias das 4h às 23h. Era desumano. Formamos um sindicato e combinamos de chegar mais tarde ao trabalho. Os patrões descobriram que eu era uma das líderes do sindicato e me demitiram”, lembra Brígida.

Doña Brígida, que cresceu com mais três irmãos, se casou e teve sete filhos. Todos os três irmãos e dois dos sete filhos dela foram assassinadas por grupos paramilitares ou guerrilheiros. “A última que morreu foi minha filha mais nova, Elisenia González. Ela tinha 15 anos quando foi assassinada no massacre do dia no dia 26 de dezembro de 2005”.

Sem se deixar abater, ela foi uma das principais líderes comunitárias responsáveis pela criação da comunidade de paz em 1997 e hoje é mundialmente reconhecida pela sua liderança na região: já contou a sua história e do seu povo na Itália, Portugal, Espanha, Suíça, Bélgica, Áustria e Alemanha, fazendo San José ganhar atenção internacional.

Mas é através da arte que Doña Brígida consegue amenizar o passado e manter viva a memória dos parentes e amigos perdidos: nos seus quadros de traços quase infantis, ela retrata o dia a dia da comunidade, a relação do homem com a terra, o trabalho no campo e os diversos massacres que a comunidade sofreu ao longo dos últimos anos.

Em um fim de tarde de verão como outro qualquer, Doña Brígida se acomoda em uma tosca mesinha de madeira na sala da sua casa, bem em frente à porta que, escancarada, deixa a luz entrar para compensar a falta de eletricidade.

 O verde das plantas e o colorido de algumas flores penduradas no quintal ganham um tom brilhante, intenso. O cheiro, como não podia ser diferente, é de terra molhada. E ninguém fala nada, como se essa atmosfera simples e sossegada, própria dos interiores de qualquer país da América Latina, bastasse de dizeres e de grandes afazeres.

Já à noite, Doña Brígida decide organizar uma sessão de filme na mesma sala que há poucas horas antes ela produzia seus artesanatos. Com os convidados devidamente acomodados no chão, o filme começa. Não por casualidade, o filme escolhido foi Los Colores de la Montaña, que conta a história de um grupo de crianças que vivem em uma região dominada pela guerrilha em algum lugar do departamento de Antioquia, mas que está prestes a ser atacado por um grupo paramilitar.

No final do filme, quando os paramilitares começam a atacar a comunidade e a matar os homens que supostamente podem ter algum tipo de vínculo com a guerrilha, muitas famílias, com medo, são forçadas a deixar suas terras para tentar sobreviver. São essas famílias que engordam a cada ano as estatísticas de pessoas desplazadas (deslocadas) pelo conflito colombiano, que representam cerca de 10% da população colombiana.

Doña Brígida interrompe a exibição e, com ares de professora, explica como foi ter que fugir com a própria família de sua terra natal, assim como as famílias que eram obrigadas a fazer no filme. “Foi assim mesmo. Me lembro nós tivemos que fugir por muitos quilômetros até nos sentirmos seguros. Mas aí, algum tempo depois, acontecia tudo de novo. E nós tínhamos que fugir novamente”, relembra Doña Brígida, aparentemente sem nenhum resquício de raiva. E com um tanto de resiliência.

E assim, mais um dia chega ao fim na Comunidade de Paz de San José. Mas, diferente daquele 26 de dezembro de 2005, amanhã a comunidade amanhecerá em paz.

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