Os desafios das negociações de paz na Colômbia
Análise

Os desafios das negociações de paz na Colômbia

Governo de Manuel Santos negocia com Farc e ELN, mas enfrenta queda do apoio da opinião pública e dilema entre perdoar ou condenar ex-guerrilheiros  

em 08/06/2016 • 01h30
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Embebido em polêmicas, vingança e memórias dolorosas, o processo de paz na Colômbia enfrenta um dilema encabeçado pela opinião pública: perdoar ou condenar? Até que ponto colocar ex-guerrilheiros no banco dos réus é fazer Justiça? É possível alcançar a paz sem olhar para trás?

Depois de acordar uma agenda para a paz com as Farc (Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia) e estabelecer diálogos para um acordo com o Exército de Libertação Nacional (ELN), o governo de Juan Manuel Santos luta agora com a opinião pública. Pesquisa Gallup mostra que o apoio aos diálogos de paz do governo vem caindo: se em dezembro 67% dos colombianos eram favoráveis, em fevereiro passaram a ser 54%. Por outro lado, aqueles que preferem derrotar a guerrilha militarmente em vez de dialogar passaram de 30% para 38%.

Um dos pontos mais sensíveis que permeia as negociações de paz é o conceito de Justiça. Enquanto parte da população percebe a necessidade de sepultar o passado e olhar para o futuro, muitos creem que sentar-se à mesa com guerrilheiros e não submetê-los a julgamento significa impunidade.

Mas, afinal, o que é Justiça? “Justiça é algo que deve ser aplicado a alguns ou é buscar o melhor para a maioria?”, questiona Frank Pearl, alto comissionado para a paz durante o governo do então presidente Álvaro Uribe (2002-2010) que ainda negocia com as duas guerrilhas. “Se Justiça é buscar o melhor para a maioria, não podemos pensar que é algo superior à paz. Precisamos de um equilíbrio entre Justiça e paz. A Justiça é importante especialmente para as vítimas”.

O também empresário bogotano explica que o foco dos processos de paz são 18 milhões de colombianos que se encontram no meio do conflito, em “condições que nenhum de nós gostaria de viver”. “Temos que pensar em pessoas como uma menina de 12 anos separada de sua família ao ser recrutada por um grupo guerrilheiro e se converter em uma criminosa”.

foto por: Omar Nieto Remolina
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Ao centro, o presidente Juan Manuel Santos; à direita, Frank Pearl, que negocia com grupos guerrilheiros

Nos últimos dez anos, a Colômbia lidou com 58 mil desmobilizados, ou seja, pessoas que entregaram suas armas em busca de paz. Desse total, explica Pearl, 25 mil eram guerrilheiros e 33 mil paramilitares. Enquanto a taxa de reincidência de ex-guerrilheiros foi de 8%, em relação aos paramilitares constatou-se 25%. Um número ainda menor se comparado ao de criminosos comuns: a taxa de reincidência na população carcerária é de 70%.

Além disso, enquanto um preso comum custa ao Estado 18 milhões de pesos colombianos (R$ 20.898) anualmente, um ex-guerrilheiro em processo de reinserção (o que implica sete anos com acompanhamento de um psicólogo e contrapartidas como continuar os estudos até a universidade) custa um terço: 6 milhões de pesos (R$ 6.966).

Pearl garante, no entanto, que os que cometeram crime de lesa humanidade serão levados aos tribunais. Se forem capazes de confessar seus crimes, serão submetidos a penas alternativas. Se confessam apenas parte dos crimes, passarão entre cinco e oito anos presos em penitenciárias comuns. Já para quem não confessar ou mentir, a pena prevista é de 20 anos em regime fechado.

“Queremos evitar mais vítimas, reparar as que temos hoje e permitir às gerações futuras viverem em um país onde não nos matemos por diferenças políticas. Queremos separar as armas da política”.

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Longe dos anos da Guerra Fria quando foram fundados os grupos armados, os ex-guerrilheiros buscam hoje se reinserir na sociedade. Mas a ideia de que eles possam formar parte do quadro político do país e, um dia, tomar o poder ainda é um fantasma que assombra os colombianos: enquanto em dezembro 27% acreditavam que um guerrilheiro poderia chegar ao poder, em fevereiro 41% apostavam nisso.

A participação política é, ao lado do tópico Justiça, um dos maiores desafios do período pós-negociações de paz com as Farc e o ELN, observa o ex-guerrilheiro e analista político Leon Valencia. Afinal, como garantir que guerrilheiros se reinsiram na sociedade sem serem marginalizados?

Valencia lançou na Feira do Livro de Bogotá, em abril, o livro Los retos del posconflicto, em coautoria com Ariel Ávila, coordenador do Observatório da Fundação Paz e Conciliação, do qual é diretor. Ex-membro do Comando Central do ELN, de onde saiu em 1994 aos 38 anos de idade para fundar a Corrente de Renovação Socialista (CRS) e negociar com o governo, ele conta ter sido convencido a entrar no grupo por pensar que a luta armada era a única opção para trazer dignidade a comunidades historicamente oprimidas.

“A guerra é uma paixão que gera laços fortes entre os que ali estão. Nela se vive tudo: o amor, as decepções da vida”, analisa o ex-guerrilheiro. “Seria mentir eu dizer que me arrependo dessa etapa”.

As Farc, de estrutura vertical e marxista, nasceram em 1964. No mesmo ano nascia também o ELN, que tem origem no maoísmo e na teologia da libertação. O ex-guerrilheiro acredita, portanto, que a melhor saída para uma tensão que se arrasta há décadas é o processo previsto pela Justiça de transição combinado a penas alternativas.

“É preciso, acima de tudo, perdão para que as coisas realmente mudem na Colômbia. Todas as guerras que vivemos foram alimentadas pela vingança, seja por parte de membros das Farc ou do ELN, ou mesmo do governo ou dos paramilitares”, observa.

Grupos paramilitares remanescentes do auge do conflito entre governo e guerrilhas são vistos como ameaça ao processo de paz. Um dos principais riscos para um congelamento na mesa de negociação com as Farc é a exigência de que o governo lhes garanta segurança e reconheça a magnitude do fenômeno paramilitar. Os paramilitares surgiram como resposta às ações guerrilheiras, especialmente no campo, onde eram recrutados por latifundiários para prestar segurança particular.

Apesar do avanço dos diálogos entre governo e guerrilhas, paramilitares continuam crescendo e atuando no interior do país como milícias. Segundo pesquisa do Indepaz, esses grupos atuam em 146 municípios de 22 departamentos da Colômbia.

Apesar de não controlarem territórios, sua ação se dá pela participação em atividades econômicas ilegais, como o narcotráfico, contrabando de mineração, além de sequestro e extorsão. A desavença em meio às negociações de paz repousa também no fato de o governo insistir em chamar de ‘organizações criminosas’ grupos como Úsuga, Rastrojos e Autodefensas Gaitanistas, enquanto guerrilheiros dizem se tratar de paramilitares.

Não é a primeira vez que o Estado colombiano se senta à mesa com as guerrilhas. Em 1990, o governo conseguiu assinar o primeiro acordo de paz com o Movimento 19 de Abril (M-19). Nos quatro anos seguintes foram firmados acordos com outros cinco grupos guerrilheiros. Desde então, alcançar a paz com as Farc e o ELN era uma vitória a ser perseguida, mas sempre frustrada.

“Se alcançamos um acordo com o ELN acabam-se as guerrilhas da América Latina e, finalmente, passamos para o século XXI”, observa o ex-guerrilheiro.

“A guerra, em vez de solucionar os problemas, os avoluma. No fim, agrega mais dor à desigualdade, à miséria e aos pobres no campo. Lamento que as guerrilhas de hoje tenham demorado tanto para descobrir, mas os trunfos nascidos do fuzil não são garantias de mudança”.

Questionado sobre o fato de as razões pelas quais nasceram as guerrilhas – como as desigualdades socioeconômicas e o problema de distribuição de terra – ainda existirem, Pearl concorda com o fato de que o conflito muitas vezes foi inútil e destrutivo, pois desviou a atenção da Colômbia para problemas reais, como a desigualdade econômica (a pobreza ainda atinge 27,8% dos colombianos) e a ausência do Estado.

“A Colômbia ainda tem condições sociais, políticas e econômicas moralmente inaceitáveis. O trabalho que vem a seguir, portanto, é muito mais difícil e fascinante do que firmar acordos com esses grupos. Se nos empenharmos e o fizermos bem, o conflito não retornará”.

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