Uma pequena multidão enfileirou-se em frente ao Flynn Center, em Burlington, a maior cidade do estado americano de Vermont, mesmo com pouco mais de 40 mil habitantes. Nesse dia gelado do inverno no hemisfério norte, 7 de janeiro de 2016, apoiadores e manifestantes disputavam um lugar entre os 1,4 mil assentos na plateia que assistiria ao discurso do pré-candidato à presidência dos Estados Unidos, Donald Trump, de 69 anos.
Às 19h30, quando o empresário de ambições políticas subiu ao palco, com seu terno bem cortado, gravata vermelha – que vez ou outra se reveza com uma versão azul –, e sua vasta cabeleira loura esbranquiçada, os aplausos vieram apenas de apoiadores. Votantes indecisos ou manifestantes foram devidamente impedidos de entrar, segurando cartazes do lado de fora com dizeres como “Deporte Trump!” e “Não se entregue ao medo racista. Refugiados são bem-vindos aqui”.
Do lado de dentro, Donald Trump, conhecido por ser o apresentador da versão estadunidense do reality show “O Aprendiz”, tranquilizava os ouvintes ao repetir sua declaração controversa e um tanto xenófoba. “Não se preocupem. Nós vamos construir o muro”, disse o pré-candidato, seguido por mais aplausos e gritos eufóricos. Ao perceber a animação da plateia, ele prosseguiu: “Esperem um minuto…. E quem vai pagar pelo muro?”, questionou, ouvindo um uníssono “México!” como resposta. Claro que o presidente mexicano Enrique Peña Nieto já se manifestou, dizendo que a afirmação reflete a ignorância, a irresponsabilidade e o desconhecimento de Trump sobre a realidade.
Uma das principais frentes da campanha do bilionário do setor imobiliário, cujo slogan é “Make America Great Again” (algo como “Faça a América grande de novo”), é construir um muro que divide a fronteira sul do país com o México. O assunto não tem nada de inédito. Memórias afiadas devem se lembrar dos anos de 2006 e 2007 e do governo de George W. Bush, quando o então presidente assinou um decreto que autorizava a construção de 1,1 mil quilômetros de proteção ao longo da fronteira de 3,1 mil quilômetros.
Cercas de concreto foram erguidas, câmaras de vigilância e sensores que detectam calor foram instalados. Emigrantes criaram novas rotas, cavaram novos túneis. O relatório para o ano fiscal de 2016 do U.S. Department of Homeland Security, que protege o território de ataques terroristas e age em caso desastres naturais, prevê um gasto de US$ 3,7 bilhões para manter 21 mil agentes na fronteira e US$ 3,2 bilhões para os 23 mil inspetores nos portos. A região é uma das mais vigiadas do mundo, se considerarmos que se trata de dois países que vivem oficialmente em paz, sem guerras.
Agora Trump pretende fechar qualquer fresta de entrada, preenchendo a fronteira de leste a oeste. No meio dessa obra faraônica, uma imponente porta seria construída para receber “os mexicanos do bem”. “Será um muro com uma porta linda e grandiosa porque queremos que os imigrantes legalizados voltem para o nosso país”, afirmou o pré-candidato. Seu projeto também inclui a deportação dos 11 milhões de ilegais que atualmente moram e trabalham nos Estados Unidos.
Concorrendo à vaga do Partido Republicano com outros 11 candidatos, o nova-iorquino lidera as pesquisas mais recentes e parece ter uma chance real de disputar a corrida pela Casa Branca. De acordo com a CNN, Trump aparecia com 39% das intenções de votos no final de dezembro de 2015, seguido de Ted Cruz (18%), Ben Carso (10%) e Marco Rubio (10%). Seu principal oponente, o senador do Texas, Ted Cruz, também prega a construção do muro e a deportação dos ilegais. Na campanha do segundo colocado, nem os “bonzinhos” terão a chance de voltar. A revelação do candidato oficial do partido só será feita na convenção de Cleveland, marcada para a terceira semana de julho de 2016.
O professor mexicano Javier Urbano Reyes, formado em Relações Internacionais pela Universidade Autônoma do México, não tem dúvidas de que a história do muro não passa de um grande teatro entre os dois países. Durante uma entrevista em seu escritório na Cidade do México, o especialista em temas de cooperação internacional e migração destacou que o problema migratório é mais complexo do que se imagina.
“Pense: são 11 milhões de ‘indocumentados’, recebendo a metade ou menos de um salário regular pago nos Estados Unidos. Se você calcula por hora, há uma economia de muito dinheiro por dia, por trabalhador. Multiplique esse número por 11 milhões. A isso se chama subsídio econômico. Os Estados Unidos são subsidiados por essa mão-de-obra barata. Já no caso do México, recebemos mais de 24 bilhões de dólares por ano em remessas – dinheiro que só perde para o petróleo e o turismo. Se há uma regularização, os trabalhadores deixarão de enviar dinheiro ao México”, observa.
Com três livros publicados sobre o assunto e experiência com pesquisas de campo na fronteira norte do México, Javier aponta que o imigrante sem documentos e desprotegido da lei é conveniente para os dois países. “México e Estados Unidos brincam com um discurso. Eu finjo que me indigno e fico brabo porque violam os direitos dos emigrantes mexicanos e eles, EUA, fingem que colocam barreiras. O discurso do muro é uma mensagem para eleitores republicanos. Se houvesse interesse em modificar o fenômeno, já teriam feito há muito tempo. A grande potência mundial não pode parar a imigração? Claro que pode”.
A história humana guarda outros muros passados e presentes. Chineses, alemães, israelenses e tantos outros povos do Oriente Médio e do Norte da África, que se protegem com barreiras físicas de inimigos, imigrantes e terroristas. Para o professor Javier, nenhum deles se compara ao que acontece na fronteira sul dos Estados Unidos.
“Esse muro não é apenas uma delimitação geográfica. É a fronteira mais evidente do mundo entre um país rico e um pobre. Além de ser um limite territorial, é simbólico”.
O escritor Carlos Fuentes disse: “Não é uma fronteira, é uma ferida. Isso nunca vai cicatrizar porque vem da pobreza. A migração é mais do que uma forma de ganhar dinheiro. Pessoas se vão por falta de incentivos, democracia, acesso, transparência, insegurança. É mais do que um problema econômico”.
O mexicano Oscar García é mais um entre tantos jovens que vivem o drama da pouca expectativa de vida e o dilema de deixar o país em busca dos sonhos. Gente que vive com o dinheiro contado e não alcança nem os gastos mínimos, encontrando a solução dos seus problemas ou o “sucesso” na vida no caminho tortuoso de atravessar a fronteira de maneira clandestina rumo aos Estados Unidos.
Oscar é jovem, o mais novo de uma família de quatro filhos. Aos 12 anos, conseguiu o primeiro emprego como assistente de mecânico. Parte do salário era para as despesas da casa, que não conseguiam ser pagas apenas com o dinheiro do pai, dono de um bar na Cidade do México.
Entre bicos e empregos, ele também trabalhou por dois anos no Mc Donald’s para pagar o colégio, ganhou destaque de “empregado do mês” duas vezes, mas não aguentou a jornada cansativa de aula seguida de trabalho. O salário não acompanhava o aumento da jornada e dos encargos. Faltando um ano e meio para a formatura no ensino médio, desistiu. “Não acredito muito em escola. Mesmo quem estuda tem dificuldade para arrumar emprego”, diz.
No vai-e-vem de oportunidades ruins e sem expectativas, Oscar aceitou a sugestão da irmã mais velha, que já havia trabalhado nos Estados Unidos, de tentar a travessia. Após receber o apoio da mãe, começaram a planejar a trajetória para cruzar a fronteira norte do México. A partir desse ponto, a história de Oscar se mistura com a de tantos outros que vão atrás do sonho americano – muitos mexicanos, mas também vários latino-americanos, principalmente vindos da América Central.
Ele e a irmã, que estava de passagem pelo México por alguns meses com a filha de 12 anos, se programaram para cruzar o deserto mexicano do estado de Sonora, chegando ao Novo México, nos Estados Unidos. A maioria das pessoas que faz a travessia conta com a ajuda dos chamados coyotes ou polleros – os “responsáveis” por guiar a travessia clandestina até os Estados Unidos.
O preço ficou acordado em 5 mil dólares. Metade deveria ser paga antes e a outra quando estivessem seguros nos Estados Unidos. Quem “patrocinou” a viagem foi outra irmã, a única que concluiu os estudos e trabalha na Telcel, empresa de celulares do segundo homem mais rico do mundo, Carlos Slim. Com tudo programado, compraram a passagem aérea até Sonora, onde se encontrariam com o tal coyote. No total, 20 pessoas foram levadas em uma caminhonete até o ponto inicial da travessia pelo deserto.
Ninguém pode levar comida, nem água, nem roupa. “É só o que traz no corpo”, comenta Oscar. Às onze horas da noite, o coyote começou a caminhar com o grupo, mas “perdeu-se” quatro horas depois. “Na verdade, nos deixou”, recorda. Isso acontece com frequência, uma vez que nem todos os coyotes são de confiança. A “sorte” é que duas pessoas do grupo já haviam cruzado o deserto e guiaram as demais. Dos 20, somente oito seguiram em frente. Os outros preferiram abandonar a missão.
Foram quatro dias caminhando no deserto, rodeados por uma imensidão de terra e alguns arbustos secos. À noite, eles calçavam botas e protegiam os pés com sacolas, a fim de evitar picadas de cobra ou escorpião. Sem contar os mosquitos, dos quais não havia como se proteger. Sem comer ou beber sequer uma vez, paravam no máximo dez minutos e seguiam a caminhada. Dormir, nem pensar.
Enquanto caminhava, Oscar pensava porque decidira abandonar a família – questionamentos que nunca passaram por sua cabeça antes de partir. Porém, voltar não é uma opção quando se está no meio do deserto e sem nenhuma orientação geográfica. Quem mais sofreu foi a sobrinha, de 12 anos. Não demorou para ela chegar ao limite e, a partir daí, Oscar e sua irmã começaram a se alternar com a criança, para carregá-la nas costas. O grupo entendeu a situação e logo passou a revezar a tarefa entre todos.
Além do cansaço físico, o sol era inimigo. Sem sombra para se esconder ou roupas que tapassem todo o corpo, a pele desprotegida queimava durante todo o dia. À noite, ainda caminhando, a sensação de ardência lutava com os calafrios, resultado da insolação, desidratação, fome e cansaço. Durante os quatro dias, não cruzaram com ninguém ao longo do caminho. Apenas quando estavam quase chegando, escutaram o barulho de um carro. Esconderam-se atrás de uns arbustos e puderam ver que era uma caminhonete da patrulha fronteiriça. Permaneceram agachados por oito horas, até que o caminho estivesse livre outra vez.
Ao chegar num povoado, uma amiga da irmã de Oscar já os aguardava para levá-los ao Texas. Oscar não sabe quanto tempo durou a viagem, mas a primeira coisa que fizeram foi levar a menina ao médico. “Ela não estava acostumada a caminhar e não aguentou. Esteve a ponto de morrer, de tão desidratada”, diz. Um casal integrante do grupo que atravessou o deserto ficou amigo dos três e os acompanhou para o Texas e depois para Nova York, o destino planejado.
Depois de um mês de tratamento no Texas, a sobrinha melhorou, permitindo que o plano nova-iorquino seguisse seu curso. A viagem de cinco dias de ônibus teve paradas pontuais para idas ao banheiro. De novo, sem nada, só a roupa do corpo. Para despistar a fiscalização policial, os cinco se espalharam no fundo do ônibus entre os americanos. Ser parado pelos policiais é um jogo de azar e sorte. Ao cruzar cada um dos estados americanos, o ônibus passa por um sinal – no mesmo estilo das alfândegas dos aeroportos –, que pode ficar verde ou vermelho. O vermelho apareceu duas vezes. Revistaram o motorista, as malas, menos as pessoas.
Ao chegar em Nova York, se acomodaram no bairro do Bronx. O marido da irmã de Oscar os aguardava com a boa notícia de que já havia arranjado emprego para todos. Alguns trabalhariam em uma fábrica; outros em um bar. A sobrinha ficaria em casa. Depois de juntar um pouco de dinheiro, a turma decidiu se mudar para um prédio com apartamentos alugados pelo mexicano José Alberto, presidente da Associación de Imigrantes Indocumentados. Ele era o famoso “resolve tudo”, conseguindo os empregos, matriculando a sobrinha de Oscar na escola, indicando médico particular e o que mais fosse necessário.
Porém, nada era fácil. A ilegalidade em um país rígido como os Estados Unidos se compara a uma prisão domiciliar. Oscar quase não saía de casa por medo de ser pego. “Era da casa para o trabalho e do trabalho para a casa”. Para fazer as compras básicas “sem dar bandeira”, os 25 moradores do prédio se revezavam, saindo apenas duas pessoas por dia. Em caso de emergência, a solução era trocar o dia com alguém.
Foi no estacionamento do supermercado que Oscar fez a única amizade durante sua estada no país. Um pneu furado, uma ajuda, uma conversa em espanhol. Em quatro anos, não aprendeu a falar inglês. “Era muita gente de Porto Rico, Cuba, México. Eu não tinha contato com os americanos, que são muito grosseiros”. Ele reclama das provocações e piadas que ouvia por ser mexicano e, mais do que isso, por ter aparência de mexicano. “Não entendo. Nós ajudamos, fazendo o que eles não querem fazer. Não é por prazer, é por necessidade”, relata.
Oscar trabalhou em fábrica de engarrafar água por três meses, depois na limpeza de um bar e foi levando a vida, até o dia em que ele e o cunhado foram pegos pela patrulha. Para deixar de fazer o trajeto até o trabalho de ônibus, o cunhado havia comprado um carro. Os dois foram parados pela polícia, cuja única intenção era extorqui-los. “Eles podiam denunciar e nos mandar de volta para o México. Em vez disso, nos trancaram em um lugar fechado e escuro, pediram quatro mil dólares e levaram o carro”, conta.
Não dá para dizer que Oscar amava essa vida, mas o dinheiro compensava. Enquanto ganhava em média 200 pesos diários no México (equivalente a uns 18 dólares), recebia em torno de 50 dólares nos Estados Unidos. Todos os meses, depois de guardar o mínimo necessário para as despesas, ele mandava o restante para a mãe. Nos quatro anos de sua estada como imigrante não-legalizado, juntou 25 mil dólares. Acabou voltando para casa para cuidar da mãe, diabética que, com saudade dos filhos, vivia a piora de seu quadro clínico.
Com o dinheiro americano, Oscar comprou um táxi, mas logo vendeu “porque na Cidade do México já tem táxis demais”. O valor recebido na venda o ajudou a comprar um ônibus de transporte público, chamado pelos mexicanos de pesero, que faz uma linha de grande movimento na cidade: Tacubaya – Santa Fé. Oscar dirige algumas horas pela manhã. No resto do tempo, um motorista faz o trajeto e lhe transfere uma porcentagem do total arrecadado. Em algumas tardes, Oscar trabalha na serraria do antigo dono do ônibus, para pagar o que a venda do táxi não cobriu.
Com bastante tempo livre, essa conversa aconteceu no meio da tarde de uma quinta-feira, passados oito meses em que ele estava de volta ao país de origem. O relato apático parecia o mesmo de alguém que revelava sua comida preferida. Quando a entrevista acabou, ele me convidou para comer uns tacos. Do tipo galante, Oscar não descuida da aparência. Mesmo em um bar na beira do asfalto com apenas duas mesas de plástico na calçada, sua postura permanecia impecável dentro da camisa polo.
Depois de contar sua história, Oscar admite que já considera voltar a tentar a sorte nos Estados Unidos. Atravessaria o deserto outra vez? Diz que não. “Dessa vez, nada de sufocos”. Ele até cogita comprar documentação falsa para cruzar a fronteira. A primeira experiência foi sofrida, mas tal sofrimento parece ter sido anestesiado com o tempo – ou com a normalidade de sua história entre as pessoas de seu convívio. A verdade é que quem vive nos Estados Unidos por um tempo demonstra certa dificuldade em aceitar a realidade mexicana novamente.
Oscar é um deles. Católico apenas por batismo, nunca foi ligado à religião. No entanto, sua temporada estadunidense lhe rendeu o hábito de ir à igreja uma vez por mês. Lá, conheceu São Judas Tadeu, o santo do trabalho, para quem rezava e agradecia todos os dias. “Sempre que precisei de um favor, São Judas nunca me deixou na mão”, lembra, mantendo a tradição de distribuir rosários de presente aos amigos. É sua forma de agradecimento. Afinal, já que pretende voltar para o país vizinho, não quer perder a amizade com o santo.