Mariana* tem os cabelos crespos na altura dos ombros e a voz rouca. Quando a fui entrevistar, ela usava o cabelo preso com um elástico. Acabara de terminar um culto religioso com um pastor. Ela está em uma casa de reabilitação após ter passado por outra instituição ao longo de seus 30 anos de vida por cometer um crime que, no Brasil, leva à pena de prisão. Em uma madrugada de 2010, ela foi a uma boutique em uma cidade do interior de São Paulo e quebrou o vidro da loja para furtar roupas e vendê-las para comprar crack. Acabou presa em flagrante e ficou mais de dois anos em penitenciárias e Centros de Detenção Provisórias (CDPs) do estado de São Paulo.
“Me colocaram em uma cela bem suja, abandonada. Só fica lá quem está chegando. Tinha vários colchões. Só quando amanheceu me deram um copo de leite com pão. Quando eu estava nessa cela, a agente carcerária me perguntou se eu conhecia a prisão e o sistema lá dentro, e eu disse que não. O delegado falou: ‘As presas estão comemorando porque chegou carne fresca’, como se eu fosse ser ‘mulher de presa’”, conta.
Mariana faz parte das cerca de 16 mil mulheres presas no Brasil entre 2004 e 2013. Segundo o Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias (Infopen Mulheres), o número de mulheres encarceradas aumentou mais de 500% entre 2000 a 2014. Metade dessas mulheres tem o Ensino Fundamental incompleto e apenas 8% terminaram o Ensino Médio ˗ na população brasileira essa última porcentagem é de 32%. Hoje, a população carcerária do Brasil beira as 600 mil pessoas.
Normalmente três tipos sociais recaem sobre as mulheres encarceradas: o gênero, a cor e a classe social. 68% dessas mulheres são negras, enquanto na população brasileira em geral esse número é de 51%. No CDP feminino de Franco da Rocha, no interior de São Paulo, das 1.627 mulheres presas, 899 eram mães e 141 estavam grávidas ou com suspeita de gravidez em um levantamento feito em 2012. Essas mulheres geralmente são jovens (27% tem entre 18 e 24 anos) e solteiras, e grande parte é a principal provedora da família, o que deixa um vácuo no núcleo familiar ao serem encarceradas.
O crime mais comum para o encarceramento feminino é o tráfico. Em 2014, 68% dessas mulheres encarceradas traficavam drogas, mas não estavam envolvidas com grandes organizações criminosas antes de entrar na prisão. Os homens também são levados à prisão por esse crime, mas em uma porcentagem bem menor: 25%. O segundo maior motivo para os homens é um crime realizado sob violência ou grave ameaça: o roubo.
Fernanda Emy Matsuda, advogada e socióloga que desenvolve na Universidade de São Paulo (USP) uma tese de doutorado sobre o encarceramento feminino, afirma que “na cadeia do tráfico, tem-se também um reflexo da desigualdade de gênero. No mercado de trabalho, quem topa trabalhar com os menores salários, nas piores condições, são mulheres. A estrutura do tráfico de drogas acaba colocando essas mulheres nessa situação mais vulnerável”, afirma.
Ela explica que é comum mulheres ficarem cuidando da droga em casa enquanto seus companheiros estão fora. Ao serem abordados na rua, dificilmente estão com uma grande quantidade de drogas, o que os livra da prisão em flagrante. Normalmente isso não acontece no caso das mulheres.
Fernanda afirma que as prisões ainda são definidas com base na classe e na cor. “Quem não está sendo realmente punido é o estudante universitário que usa maconha, o empresário que cheira cocaína. A população dependente de crack que está nas periferias apanhando da polícia todo dia não está sendo beneficiada. Ela entra no sistema judiciário por outra porta. Fecha-se essa brecha mas se abre um portão. Esse é o sistema”, avalia.
A segunda maior causa para prisão feminina é o furto. O que caracteriza esse tipo de crime é a subtração de um objeto de outro indivíduo sem o uso de violência ou de grave ameaça. Para a socióloga Fernanda, porém, normalmente há uma falha na interpretação desses dados. Para ela, ignora-se hoje um grande contingente de mulheres que estão presas por terem furtado pequenos objetos, muitas vezes para o sustento da família ou de si próprias.
Fernanda faz menção ao filme “Bagatela”, de Clara Ramos, que mostra essa realidade.
'A criminalidade feminina é uma criminalidade de bagatela. Que prejuízo traz para a sociedade uma mulher que tenta subtrair, e às vezes nem consegue, um pacote de fraldas? Essa mulher muitas vezes fica um ano dentro do CDP de Franco da Rocha esperando julgamento. Quando ela finalmente é julgada, é liberada. Ela é condenada e solta', afirma.
Isso não acontece de maneira tão frequente com os homens. Como os homens são presos principalmente por tráfico e roubo, eles acabam sendo condenados após o julgamento sem liberdade.
Em 2014, ano em que o Infopen Mulheres foi finalizado, mais de 11 mil mulheres estavam presas sem condenação. Isso corresponde a quase um terço do total de encarceradas. Ainda segundo o Infopen, 60% das unidades prisionais femininas no Brasil estavam com mais presas que a sua capacidade em 2013. Grande parte dessas mulheres não vai enfrentar uma pena de prisão após serem julgadas.
Marco Fuchs, diretor-adjunto da ONG Conectas Direitos Humanos aponta também a conduta policial como problema para a superlotação.
'No Brasil, a população carcerária só cresce porque nós temos um policial julgador. Dependendo da pessoa que ele pega fumando maconha, vai só dar uma dura. Se pegar alguém em uma rua escura na periferia, é algemado e ‘vira’ traficante'. Na opinião de Fuchs, muitas pessoas que estão presas, na verdade, deveriam estar prestando penas alternativas.
Ele sugere que, para a diminuição dessa população carcerária, seja feito um “mutirão carcerário” com juízes, promotores e advogados que pegariam caso a caso para analisar. “Hoje tem tornozeleira eletrônica, por exemplo, que dá para colocar e mandar para casa. É a justiça restaurativa, em que o criminoso volta à comunidade e presta um serviço”, diz o diretor da ONG.
Fuchs afirma que a família abandona mulheres que estão cumprindo pena de prisão. “Se você passar em um dia de visita em frente a uma unidade prisional masculina, vai ver que a fila começa um dia antes e dá voltas para elas conseguirem conversar com os filhos e maridos que estão presos. No universo feminino não tem isso”, diz.
Fernanda dá um exemplo de como essa diferença de gênero ocorre até quando se pleiteia direitos para a mulher: “Toda a agenda do Departamento Penitenciário Nacional é em cima da maternidade. A mulher presa só é alguém se ela for mãe. Então você não está protegendo o direito dela, você está protegendo o direito dela de continuar sustentando uma família, de ser a única responsável pelos filhos. O ideal é que a mulher tenha esse filho fora da prisão”, diz.
Mariana conta que a distância também interferiu na sua solidão na cadeia. “Eu só recebia visitas quando estava perto da cidade da minha família. A partir do momento em que fui para longe eu acabava não recebendo visitas”. Até 2009, não havia nenhum CDP feminino. As presas em flagrante eram enviadas para a penitenciária de Santana. Hoje há o CDP de Franco da Rocha, mas ele é o único da região metropolitana de São Paulo e está lotado.
Mariana percebe a diferença que fazia a presença de seus familiares. No começo, conta que ela e sua mãe tinham uma relação normal e ela recebia da família alimentos para o seu sustento. Quando começou a fazer dívidas de drogas, esse contato foi acabando. “Ela parou de mandar coisas para mim. Foi uma época que eu me afundei mesmo nas drogas”, recorda.
Questão de saúde pública
Quando furtou a boutique, Mariana estava viciada em crack. O furto foi uma maneira de sustentar o vício. Antes de ser presa, ela já tomava remédios psiquiátricos e havia sido diagnosticada com “descontrole emocional”, como ela diz. Ainda assim, não foi para o Hospital de Psiquiatria e Custódia, atual Manicômio Judiciário, e sim para uma penitenciária convencional.
Esse órgão está subordinado à Secretaria de Administração Penitenciária, não à Secretaria de Saúde. Se for comprovado que uma pessoa que cometeu um crime não estava em seu juízo perfeito para poder perceber que aquilo era ilegal, ela é considerada inimputável pela justiça e é encaminhada para essa instituição. É um órgão misto, mas, para Fernanda Matsuda, não atua de forma satisfatória na recuperação dos usuários do serviço. Marco Fuchs concorda que esse aparelho deveria estar subordinado à Secretaria de Saúde. “A questão das drogas é uma questão de saúde pública”.
A assistência psicológica para Mariana não melhorou na prisão: ela não recebia visitas da família, tinha acesso a vários tipos de drogas, legais e ilegais, e chegou a ficar presa no “castigo” (cela para uma pessoa quando ela comete algum ato ilegal na prisão) durante mais de 15 dias. Nesse período, quando estava em Santana, não podia sair nem para tomar banho de sol.
A rotina de idas ao médico continuou. Ela tomava antidepressivos, medida rotineira nas cadeias. “A gente toma muito medicamento lá dentro. Quando eu fui presa, muitas pessoas que estavam lá usavam droga, então elas colocavam o remédio no lugar. Eu só não tive abstinência mais forte porque cheirava cocaína no lugar, mas tinha crises de convulsão, o que é um sintoma também. E os remédios são droga também, né? Como não tem uma droga a gente usa a outra”. Segundo ela, não há controle sobre esses medicamentos. Mariana conta que elas tomavam vários misturados, davam para outra presa ou trocavam por itens de higiene básicos, já que não é frequente a distribuição deles.
A socióloga Fernanda confirma a prática com base em suas pesquisas dentro de penitenciárias e CDPs femininos.
'Essa contenção química feita através do remédio é uma forma de administrar a cadeia, para não ficar todo mundo triste nem revoltado. Isso acontece muito na prisão feminina. Tem gente que tem fratura exposta lá dentro e não consegue tratamento, não consegue um analgésico. Mas se ela quiser um remédio tarja-preta para depressão ela consegue', completa.
Fuchs afirma que há penitenciárias no país em que 80% dos presos estão sob efeito de antidepressivos. “Não me parece que esse é o modelo em que você possa ressocializar alguém. Quem sai da prisão normalmente volta para prisão ou vai pagar dívidas que conseguiu lá. As pessoas que saem são jovens propícios a voltar ao sistema do crime. Isso reflete na economia do país, na formação do Brasil. Falta educação, direitos humanos, lazer, cultura, políticas públicas”, analisa Fuchs.
Mariana confirma com a sua experiência de mais dois anos: “O sistema prisional não atuou de nenhuma forma para a minha reinserção. Só jogam a gente lá e a gente tem que aprender a conviver com as presas. Não tem nenhuma atividade, nada”, comenta. Ela afirma que sua história seria diferente se ela tivesse sido encaminhada para um espaço como o que frequenta hoje. “Na prisão, você só fica longe do crack. Você tem a cocaína e a maconha na sua mão. Aqui na clínica eu estou há quatro meses sem fumar um cigarro”, afirma. E completa: “No fim das contas eu fui para lá por causa de droga, não por causa do furto. Tudo gira em torno da droga. O traficante vai preso por causa da droga e as pessoas roubam por causa da droga”, finaliza.
*O nome foi trocado a pedido da entrevistada