Vítimas do maior massacre das Farc apoiam a paz e o perdão
Sociedade

O massacre de Bojayá e o apoio à paz na Colômbia

No povoado-vítima do mais emblemático massacre das Farc, 95% dos votantes aprovaram o acordo de paz; presidente Santos doará prêmio para projetos em favor das vítimas

em 13/10/2016 • 09h57
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Ao menos sete barcos navegam pelo rio Atrato trazendo 250 paramilitares, passando sem registros ou incidentes por três postos de controle do Estado colombiano. Entram no pequeno povoado de Bellavista, centro do município de Bojayá, onde em seus arredores se encontram blocos guerrilheiros das Farc (Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia).

Depois de dias de tensão, o confronto. No centro do povoado, os paramilitares das AUC (Autodefesas Unidas da Colômbia). Do outro lado da ponte que ligava um pequeno riacho ao povoado, a guerrilha. A população civil, de origem negra e indígena, sai de suas casas de madeira e corre para se proteger do tiroteio na igreja e outros dois centros religiosos − das poucas construções de cimento da região.

Um, dois, três, quatro. Quatro cilindros-bombas são disparados pelas Farc em poucas horas em direção ao povoado tomado pelos paramilitares. Bum! Bum! Dois deles explodem, o primeiro caindo sobre o altar da igreja principal do povoado, onde se encontravam cerca de 200 pessoas. Setenta e nove civis mortos, corpos mutilados, dezenas de feridos, alguns incapazes de se mover em meio aos escombros e feridas.

Liderados pelo padre, sobreviventes atônitos, ensurdecidos, ensanguentados, correm da igreja em meio ao fogo cruzado em direção ao rio Atrato, buscando canoas para chegar à outra margem e se proteger do confronto. Levantam panos, camisas, ou o que mais encontrarem de cor branca para assinalar que são civis desarmados fugindo do conflito.

Essa é a narrativa da guerra. A história aconteceu no dia 2 de maio de 2002. Bojayá, no departamento colombiano do Chocó, sofreu o mais emblemático massacre cometido pelas Farc.

Porque sim!

Num povoado pequeno, toda a população foi fortemente afetada. Leyner Palacios, membro do Comitê pelos Direitos das Vítimas de Bojayá, conta que perdeu 28 parentes e quatro grandes amigos. No momento do confronto, ele se refugiou na casa das freiras agostinianas, a poucos metros da igreja.

O crime não só ceifou a vida como também violou as tradições da comunidade local e sua forma de lidar com a morte. “Pela primeira vez os mortos foram enterrados em fossas comuns, sem realizar os rituais próprios de despedida, algo que não cabia na mentalidade do povo negro”, explica à Calle2. O Comitê aponta que, além das 79 vítimas fatais registradas oficialmente, há outras seis que não foram contabilizadas.

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Leyner Palacios, membro do Comitê pelos Direitos das Vítimas de Bojayá, perdeu 28 parentes e quatro amigos no massacre de 2002

O que seguiu ao massacre foi uma onda de “desplazamento” − centenas de pessoas abandonaram o local e buscaram refúgio em cidades próximas, especialmente em Quibdó, capital do departamento. Mas não foi apenas um momento de terror, o conflito permeia antes, durante e depois daquele trágico 2 de maio.

O que esperar dessa população que tanto sofreu e ainda sofre? Ódio? Vingança? Rancor?

Nas urnas do local no último dia 2 de outubro uma resposta contundente da comunidade aos acordos de paz entre Farc e governo colombiano: 95,78% dos votantes em Bojayá disseram ‘Sim’ ao acordo que prevê que as Farc deixem as armas e se tornem um movimento político.

Com tristeza receberam a notícia de que o resultado geral do plebiscito a nível nacional deu a vitória ao ‘Não’ por uma margem estreitíssima: 50,21%.

“As vítimas de Bojayá sofremos a inclemência da guerra e por isso votamos SIM à paz. A vontade das vítimas deve ser respeitada, a sociedade que votou pelo NÃO tem uma dívida com os direitos das vítimas e com o custo em vidas humanas que tem sua votação sobre as populações que sim sofremos com a guerra”, diz a nota publicada pelo movimento de vítimas dois dias após a votação.

“São 14 anos e até hoje não se investigou nem condenou os responsáveis pelo massacre. Os acordos de Havana propõem uma jurisdição especial para isso, um avanço importante, inclusive na busca de pessoas desaparecidas no marco do conflito armado. Se prevê que os atores responsáveis tenham que reparar ou ressarcir as vítimas”, explica o líder do Comitê.

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Após receber o Nobel da Paz, o presidente colombiano Juan Manuel Santos visitou a cidade

Por que não?

Tanto na fala da organização de vítimas como no informe do Alto Comissariado da ONU para Direitos Humanos, os responsáveis pela barbárie sofrida pela população são vários.

O mais óbvio são as Farc, responsável direta pelo lançamento bomba que matou e feriu centenas de pessoas. Também os paramilitares, que tomaram a região e usaram a população civil como escudo diante do enfrentamento com a guerrilha. Por fim, o Estado colombiano em sua omissão em proteger as vítimas pese os avisos e por sua colaboração e leniência com as forças paramilitares.

Leyner lembra que entre os defensores ferrenhos da campanha pelo ‘Não’ ao acordo, estão o então presidente da Colômbia na época do massacre, Andrés Pastrana, e seu sucessor Álvaro Uribe, que incrementou a política de guerra. “Na jurisdição especial a justiça é para todos que cometeram delito, por isso eles estão fugindo do tema, pois também têm responsabilidades a responder”.

Na carta pós-plebiscito, o Comitê de Vítimas convida ao ex-presidente Uribe a “viver em nosso território por uma temporada sem guarda-costas que o protejam para compreender como é estar no meio do conflito que nos afeta e da pobreza, e porque os acordos devem ser respeitados por eles também”.

Um dos mais fortes argumentos contra o acordo se centra na questão de penas alternativas a guerrilheiros (não incluindo nisso casos de crimes de lesa-humanidade) ou em auxílios que receberiam do governo para apoiar sua reinserção social. O clamor da extrema-direita e parte da mídia é por ódio e prisão, que foi expressa na campanha pelo ‘Não’, definida por Palacios como suja e mentirosa.

O espírito de vingança e punição de parte da população é desarmado pela fala de Leyner.

“Temos claro que, apesar de que sofremos com o conflito, temos a necessidade de superá-lo para sair da situação em que vivemos. Bojayá e a Colômbia rural votaram pelo ‘Sim’ porque nos dá possibilidade de ter direitos também em outros campos como saúde, educação.”

‘Para a cidade, continua Leyner, pesa muito a questão do sistema de justiça. Para nós não importa tanto se guerrilheiros vão à cadeia, porque ficam lá mantidos com nosso dinheiro. Melhor que realizem trabalhos comunitários nas zonas onde ocorreram delitos e danos’.

Perdão e não-repetição

O acordo e os debates das vítimas na Colômbia levantam como pontos necessários para o pós-conflito: verdade, justiça, reparação e garantias de não-repetição. Infelizmente, no caso de Bojayá e muitos outros municípios, essas premissas ainda não chegaram e os acordos de paz são justamente uma esperança.

Com parte do processo de negociação, uma delegação de Bojayá foi a Havana e participou dos debates sobre o tema das vítimas a ser plasmado no acordo. Desse encontro resultou uma visita de membros das Farc e do governo em 2015, em que a guerrilha reconheceu seus erros diante da população. Novamente, durante a semana do plebiscito, foi a vez do comandante guerrilheiro e líder das Farc nas negociações Iván Márquez visitar o local e pedir de desculpas oficial à toda população.

“Recebemos muito bem o pedido de perdão porque sentimos que as palavras e arrependimentos eram reais e sinceros. Eles se comprometeram em transformar seu comportamento, em reconciliar-se dando garantias de não-repetição, em não continuar afetando a população. Isso nos motivou a ir às urnas e respaldar o processo, nos geraram confiança de que é possível a reconciliação”.

Na semana seguinte, a visita foi do presidente Juan Manuel Santos, que realizou uma cerimônia religiosa depois de receber o prêmio Nobel da Paz. Ali anunciou que o valor em dinheiro do prêmio (cerca de U$ 900 mil) seria doado para projetos e organizações relacionadas com vítimas e reconciliação.

‘Há seis anos, no começo desse processo, pensei que as vítimas iam ser as mais difíceis, as mais duras nesse processo. E pouco a pouco fui me dando conta de que eu estava muito equivocado. E reconheço que vocês me abriram os olhos e me disseram: 'presidente, você está equivocado, nós somos os que mais queremos essa paz'’, disse Santos em discurso na igreja reconstruída.

Diz o site do Comitê de Vítimas: “Pobres de nós se pensamos que os mortos estão mortos; hoje estão mais vivos que nós”. A pequena e longínqua Bojayá, retrato cru da tragédia da guerra, virou exemplo de dignidade, perdão e reconciliação.

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