Na foto, além dos presidentes da Argentina, Brasil, Paraguai, Uruguai, Bolívia e Chile, aparece, sorridente e abraçado aos demais, o então presidente da África do Sul, Nelson Mandela. Mas o que faria Mandela em um encontro do Mercosul, celebrado na Argentina em 1998? O líder africano, convocado para assinar um acordo de cooperação econômica, foi, na verdade, usado como um emblema de paz e democracia − algo que, após anos de golpes militares, era preciso consolidar na América Latina.
Nos três dias de encontro, além de discussões econômicas, foi assinado o chamado Protocolo de Ushuaia, que diz, entre outras coisas, que “a plena vigência das instituições democráticas é condição essencial para o desenvolvimento dos processos de integração entre os Estados Partes”.
Esta seria a semente que, 13 anos depois, permitiria ao Mercosul assinar novo acordo, desta vez prevendo a suspensão de algum país membro diante de ‘rupturas democráticas’. Foi este mesmo o protocolo usado em 2012 que vetou o Paraguai, após impeachment relâmpago do então presidente Fernando Lugo (leia mais abaixo).
Pois, ironicamente, o maior país do bloco coloca o Mercosul numa saia justa. Como procederia o bloco no caso do impeachment da Dilma? O Mercosul, então, está dentro da mesma discussão que acomete hoje a maioria dos brasileiros: o que está em processo é um impeachment legítimo ou um golpe?
O Brasil se vê, pela primeira vez, exposto à situação que ele mesmo tentou evitar: o processo de deposição da presidente Dilma Rousseff, se acontecer, afetará o Mercosul. Por um lado, os países aliados podem entender que houve um golpe e penalizar o Brasil, suspendendo-o do tratado. Por outro, o bloco pode passar por cima de seus protocolos e não punir o país pela óbvia força motriz que o governo brasileiro tem para o Mercosul. Neste caso, a aliança perderia legitimidade institucional. Em uma terceira situação possível, o bloco pode entender que o impeachment, caso aconteça, seja legítimo, e se abrir a conversações com o novo presidente.
“Os dois protocolos foram, acima de tudo, tentativas de romper com os históricos de golpes de Estado na América do Sul. Mesmo assim, via-se a possibilidade de exceções acontecerem no Paraguai e até mesmo na Argentina. Jamais no Brasil”, explica a professora do curso de Relações Internacionais da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), Cristina Pecequillo.
O caso paraguaio, sendo o primeiro em que o Mercosul se viu obrigado a aplicar as regras dos protocolos a um de seus membros, exibiu a faceta interpretativa que eles possuem: o acordo não diz claramente o que entende por impeachment legítimo ou golpe de Estado [leia mais sobre as diferenças e semelhanças entre o impeachment de Lugo e o de Dilma].
“Os protocolos são claros com casos extremos, mas não em casos de ambiguidade. Essa questão é bastante complicada diante da diversidade de orientação política dos diferentes governos integrantes do Mercosul. A Argentina e o Paraguai agora têm governos conservadores, o Uruguai, ao contrário, tem uma posição muito parecida com a brasileira, de centro-esquerda, e tem a Venezuela (Estado membro desde 2012), que é um país com uma posição mais claramente de esquerda, mas que está mergulhado em uma crise econômica e política. Ou seja: esse é o tipo do tema em que não haveria consenso”, analisa o jornalista e professor do curso de Relações Internacionais da Universidade Federal do ABC, Igor Fuser.
Para Cristina Pecequillo, da Unifesp, mais do que isso, é preciso saber que, caso o bloco interprete como “golpe” o processo de impeachment de Dilma, se o Mercosul terá coragem de punir o Brasil, a potência econômica, política e territorial da América Latina.
“Se houver alguma decisão do Mercosul, será suave. Pode ser uma ‘batidinha na mão’. Talvez uma suspensão breve, mas é duro prever isso, porque dependerá muito do encaminhamento do processo interno e da postura da oposição brasileira. Mas o Mercosul não quer bater de frente com o Brasil”.
A posição é reforçada por Fuser. “Qualquer coisa que aconteça, dificilmente o Mercosul poderia ter um papel relevante, seja para um lado ou para o outro. Um órgão com essas características – com a ausência de um parlamento forte também – dificilmente vai tomar uma atitude protagonista e assertiva contra um dos seus Estados-membros”.
No mês passado, a chanceler argentina, Susana Malcorra, disse que o Brasil poderia ser suspenso por um período do Mercosul – dando a entender que o bloco vê o processo como golpe [confira como líderes latinos e organismos internacionais se posicionaram diante da crise brasileira].
“A troca de orientação política no governo argentino embaralhou o jogo político no bloco, de maneira que é impossível saber que posição o Mercosul, como entidade, vai tomar em caso de impeachment”, diz Fuser. “O Mercosul navega hoje sem rumo. O processo de convocação do Conselho está atrasado”, completa Pecequillo.
A fotografia dos presidentes na Cumbre de 1998, hoje, portanto, nos leva a duas possíveis conclusões sobre o Mercosul: o que foi acordado no sul argentino pode demonstrar a inflexibilidade das regras do bloco, não importando que esteja sendo julgado, ou justamente o contrário. Neste caso, o bloco cairá ainda mais em um mar de ilegitimidade, do qual não deixa de ser acusado desde que nasceu.
O caso paraguaio
Desde o primeiro protocolo, em 1998, só houve uma situação de ameaça de ruptura institucional entre os países membros do Mercosul: no Paraguai, em 2012. O então presidente Fernando Lugo, que havia assumido a presidência após uma campanha baseada em sua vida pessoal como padre, foi deposto depois de pressões políticas exercidas pela oposição liberal por causa da invasão de camponeses a uma fazenda de um empresário que fazia parte dos quadros da oposição ao governo. Na ocasião, a polícia entrou em confronto com os manifestantes, matando seis deles. Outros nove soldados também faleceram.
Em meio a isso, surgiu uma série de acusações de paternidades não reconhecidas na província de San Pedro, a mais pobre do Paraguai, onde ele havia atuado como bispo. Assim, um mês após o início das acusações, o Senado paraguaio retirou Lugo e colocou o seu vice, Federico Franco, no cargo. A reação foi imediata na América Latina e no mundo: a maioria dos governos vizinhos negou reconhecer a legitimidade do novo governo e em alguns países da Europa, como a Espanha, chamou-se o evento de “golpe de Estado”. A Organização dos Estados Americanos (OEA), em que os Estados Unidos estão presentes, se viu pressionada a punir o Paraguai, mas não o fez.
O Mercosul viu no processo um golpe de Estado e suspendeu o país até 2013, quando foi recolocado no bloco, já com a companhia da Venezuela, de quem era contrário à entrada.