Marcha das mulheres negras: ‘eu sou porque nós somos’
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Marcha das mulheres negras: ‘eu sou porque nós somos’

Neste dia da Mulher Negra Latino-Americana, coletivos feministas vão às ruas por um mundo estruturado na diversidade, na coletividade, na solidariedade e no Bem Viver

em 25/07/2017 • 00h31
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Tereza de Benguela era chamada de rainha. Contudo, ficou conhecida pelo seu estilo democrático e ‘parlamentarista’ de liderar o quilombo do Quariterê, no Mato Grosso, por volta de 1740. Desafiou a coroa portuguesa e o sistema escravocrata por mais de 20 anos, até ser capturada e assassinada pelo exército, em 1770. É por esse ícone da resistência negra no Brasil colonial que, em 2014, o 25 de julho virou o Dia da Mulher Negra, em consonância com a data internacional que foi instituída em 1992. 

O dia 25 de julho restaura para mulheres negras uma ancestralidade de luta e força que não fica no passado. A ancestralidade que nos acompanha enquanto força vital ativa no presente. A exemplo da ilustração acima, define que nós, mulheres negras da diáspora de hoje, somos os sonhos mais ousados dos nossos ancestrais.

As mulheres negras em movimento estão irmanadas na construção e defesa de um novo marco civilizatório de sociedade. E essa luta ganha fôlego na articulação nacional que levou à Marcha das Mulheres Negras contra o racismo, o machismo, a violência e pelo Bem Viver, em 2015.

Pela primeira vez na história do Brasil, 50 mil mulheres ocuparam as ruas de Brasília para cobrar políticas públicas e reparação pelas desigualdades estruturais enfrentadas por nós.

Desde a marcha de Brasília, o conceito do Bem Viver vem sendo cada vez mais reivindicado pelos movimentos de mulheres negras. Se faz urgente explicar as raízes do Bem Viver, uma vez que o termo pode ser facilmente desvirtuado ignorando a forte crítica contra o modelo desenvolvimentista de sociedade que vivemos. O bem viver nada tem a ver com prosperidade financeira.

Divido aqui algumas definições sobre o termo a partir da ótica das mulheres negras em diálogo com os conceitos do livro O Bem Viver – Uma oportunidade para imaginar outros mundos, escrito pelo político e economista equatoriano Alberto Acosta a partir das ideias do economista Pablo Dávalos

O Bem Viver sonha outros mundos possíveis

A teoria do Bem Viver nasceu da prática histórica e da resistência dos povos indígenas da América Latina. Ela apresenta uma forma diferente de relacionamento entre os seres humanos, as sociedades e a natureza.

Alberto Acosta afirma que o “o Bem Viver é uma filosofia em construção, e universal, que parte da cosmologia e do modo de vida ameríndio, mas que está presente nas mais diversas culturas”. E cita a ética e a filosofia africana do ubuntu – “eu sou porque nós somos”.

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A noção do Bem Viver propõe também abandonar a ideia de progresso, porque considera que essa noção é discriminatória e violenta. Seus princípios são relacionalidade, complementaridade, reciprocidade e correspondência. 

O Bem Viver surge para descolonizar a democracia e devolver-lhe seu sentido original, de governo do povo e para o povo.

Os autores propõe o Bem Viver para evitar a destruição provocada pelos mercados, o capitalismo e a modernidade. Alberto Acosta, em seu livro, apresenta o Bem Viver não como uma alternativa, mas como a única via que de fato pode se contrapor ao capitalismo. Diferentemente do socialismo, que apresenta a diversidade enquanto recorte dentro da luta contra o capitalismo, o Bem Viver traz a diversidade como fundamento.

O Bem Viver se contrapõe à base eurocêntrica da nossa sociedade

O Bem Viver parte do princípio que um lugar mais igualitário e justo só pode existir sem a presença de elementos como o racismo, o machismo e as formas de opressão que são estruturantes do capitalismo. Como nos lembra a intelectual feminista bell hooks (que pede para que seu nome surja assim, em minúsculas, por acreditar que o mais importante é o que escreve, não quem ela é), uma sociedade balizada pela ideologia da supremacia branca, imperialista, capitalista e patriarcal nunca vai ser justa.

As sociedades eurocêntricas, alicerçadas nas ideais de branquitude, têm como base do seu desenvolvimento a concentração de poder, o acúmulo de riqueza, a exploração como sustento da sociedade, o domínio de outros povos e o massacre epistêmico de tudo que não é branco.

Esses elementos se traduzem na construção de um estado desigual. Um estado que desconhece as alteridades e a transforma toda e qualquer diferença em desigualdade.

O Bem Viver exige outra economia, sustentada nos princípios de solidariedade e reciprocidade, responsabilidade, integralidade.

O objetivo é construir um sistema econômico sobre bases comunitárias. Essa nova sociedade se dá longe dos valores das sociedades eurocêntricas e mais próximas aos valores civilizatórios ameríndios e africanos, como o cooperativismo, a ancestralidade, a memória e a oralidade.

O Bem Viver e as mulheres negras

Numa sociedade regida pelo capital, fundamentada no racismo e no machismo, as mulheres negras não são vistas a não ser como recurso de exploração. Aqui vemos como a luta de todas mulheres contra esse sistema é também a luta dos povos indígenas e negros.

Nesse sentido, a grande intelectual Lélia Gonzáles, em construções com as mulheres latino-americanas e indígenas na década de 1970, ajudou a criar diálogo entre o bem viver e as mulheres negras. Lélia soube garantir o espaço para que mulheres negras e indígenas se encontrassem, naquilo que ela chamava de os amefricanos, na busca por práticas políticas descolonizadoras.  Esse diálogo foi retomado e fortalecido no processo de construção da Marcha das Mulheres Negras de 2015.

Na Marcha que se realiza na cidade de São Paulo, por exemplo, mulheres negras e indígenas estão juntas. O eixo fundamental é “Negras e Indígenas: por nós, por todas nós, pelo Bem Viver”.

Nessa nova sociedade pautada na união de mulheres o que prevalece é o senso de comunidade. O Bem Viver permite sonhar outros mundos e dá base para uma prática política que visa a desconstrução das opressões estruturais a partir do rompimento de práticas colonizadoras.

Vale ressaltar que as mulheres (todas) sempre estiveram na vanguarda dessas construções. A exemplo do que nos ensinou Lélia Gonzales, a união feminina é fundamental para a construção de um projeto feminista efetivamente transformador no Brasil.

MARCHA DAS MULHERES NEGRAS

São Paulo: concentração às 17hs, no dia 25 de julho (terça-feira), na praça Roosevelt (centro).

Salvador e Valença (Bahia), Rio de Janeiro e Belém 

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