‘Impeachment de Dilma manifesta mediocridade coletiva’
Análise

‘Impeachment de Dilma revela mediocridade coletiva’

Ministro das Relações Exteriores de Fernando Lugo, Lara Castro, analisa o impeachment paraguaio e brasileiro, a crise no Mercosul e o fim dos governos progressistas da região

em 20/07/2016 • 01h30
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Em junho de 2012, quando participava da conferência Rio +20 no Brasil, Jorge Lara Castro percebeu que a presidência de Fernando Lugo no Paraguai corria perigo. Um massacre em Curuguaty (244 km de Assunção), em 15 de junho de 2012, onde morreram 11 camponeses e seis policiais, dava início à consumação de uma ameaça que pairou sobre o ex-chefe de Estado ao longo dos anos: sua destituição mediante julgamento político.

Acompanhado por pares da região e pelo secretário-geral da Unasul (União de Nações Sul-Americanas) à época, o então ministro das Relações Exteriores paraguaio se dirigiu a Assunção para tentar encontrar uma saída para a crise. Entrevistas com setores envolvidos no processo, no entanto, evidenciavam que “o golpe de Estado estava consumado”. É o que conta Lara Castro sobre o julgamento político que, em menos de 48 horas, removeu o ex-bispo do poder.

O ex-chanceler atua hoje como assessor político e docente de Relações Internacionais e História da América Latina na Universidade Católica de Assunção. Na última semana, participou de uma manifestação na sala da audiência que condenou 11 camponeses à prisão pelo caso de Curuguaty, após uma investigação permeada por denúncias de manipulação.

Em entrevista exclusiva à Calle2, ele afirma ver elementos similares entre a destituição de Lugo e o impeachment enfrentado por Dilma Rousseff no Brasil, entre eles: presidentes que priorizaram a integração latino-americana, alianças políticas desfeitas (também no Paraguai o partido aliado de Lugo rompe a coalizão), isolamento de ambos os presidentes no Congresso e discurso homogêneo da grande imprensa. “[Com Lugo] O Paraguai mudou sua política de subordinação à política norte-americana para acompanhar o processo de integração latino-americana. Todos esses elementos eram de um progressismo gradual, mas a oligarquia agroindustrial e as transnacionais se veem ameaçadas e formam um bloco de resistência”.

Lara fala também da importância do Brasil na integração latino-americana, critica a virada na política externa feita pelo chanceler brasileiro José Serra, afirma que o Mercosul está debilitado e defende reformas políticas estruturais na região.

Como analisa o processo de impeachment contra Dilma Rousseff e a situação no Brasil?

Visto daqui do Paraguai, encontro elementos similares ao golpe parlamentar contra Fernando Lugo. Apelam a um formato de procedimento constitucional para gerar um golpe de Estado e tirar a Dilma. Tanto Dilma como Lugo representavam um projeto alternativo não somente para Brasil e Paraguai, mas para nossa América, em um mundo de crise, globalização e redefinição dos interesses estratégicos do bloco imperial. A política exterior do Brasil historicamente é de alto nível, prestígio e reconhecimento profissional que gerou grande credibilidade na diplomacia internacional. Quando observamos este impeachment ao vivo descobrimos que há um divórcio entre a liderança estratégica de Lula e de Dilma e uma classe política protagonista do impeachment que não só demonstrou irresponsabilidade em um momento complicado, mas manifestou com plenitude uma espécie de liderança da mediocridade coletiva e que pouco favor faz ao Brasil. Essa é a imagem internacional que apresentam.

A que se refere quando fala em mediocridade coletiva?

Ao nível de responsabilidade que corresponde à classe política de um país como o Brasil, não somente no âmbito do Estado, mas latino-americano e mundial. Lula apostava na construção de um Estado Nacional, de uma economia mais sustentável que implica na transformação das estruturas produtivas, um projeto de integração diferente da proposta norte-americana da Alca (Área de Livre Comércio das Américas), uma redefinição da política do Mercosul, uma visão de recuperação da soberania dos recursos estratégicos, cooperação internacional e de que o Brasil assuma a liderança como uma potência emergente, em função de construir outra ordem internacional, que garanta relações pacíficas internacionais. Evidentemente a classe política tem uma enorme miopia e não entende realmente a responsabilidade do Brasil nesta conjuntura internacional.

Tanto no Brasil como no Paraguai, o rompimento de uma aliança eleitoral foi determinante para o impeachment. Isso põe em xeque a forma com que a esquerda chega ao poder e o conceito de governabilidade?

Partidos considerados de esquerda ou progressistas fazem alianças para chegar ao governo, mas acabam não tendo força política para transformar as estruturas existentes e ficam presos em eternas negociações e concessões para avançar. A presidência, em geral, termina chantageada por esta representação política que acaba se comprometendo com uma estrutura de alto nível de concentração do poder econômico e político, de grande desigualdade social. Para um projeto alternativo, é necessária a construção de um sujeito social, um sujeito político. Lula tinha apoio nos sindicatos, de setores intelectuais e dos movimentos camponeses, que são base de sustentação para o avanço de um processo de transformação estrutural. Mas quando a base partidária se confunde, aspira entrar na lógica de funcionamento do sistema político e reproduzir a separação entre economia e política, que funciona na teoria liberal, de mercado. Há também toda a correia de transmissão ideológica sob o monopólio dos grandes meios de comunicação que influem no pensamento e comportamento coletivo e está na base da crise política da Dilma.

Tudo isso se aplica também ao Paraguai?

É similar. Em 2008, após uma longa tradição do Partido Colorado [que presidiu o Paraguai por 61 anos], surge Fernando Lugo como portador de uma mudança que consistia em recuperar espaços de soberania, entre eles o recurso energético, praticamente entregue ao Brasil e à Argentina. Negociamos o tratado bilateral de Itaipu, em um contexto de coincidência com o pensamento de Lula de que era preciso modificá-lo. Houve melhorias nos hospitais públicos, na educação e no controle de sementes transgênicas.

O Paraguai mudou sua política de subordinação à política norte-americana para acompanhar o processo de integração latino-americana. Todos esses elementos eram de um progressismo gradual, mas a oligarquia agroindustrial e as transnacionais se veem ameaçadas e formam um bloco de resistência.

A isso se soma que o Partido Colorado e o Liberal se aliaram [o vice de Lugo era Federico Franco, do Partido Liberal, mas os liberais abandonaram o apoio a Lugo e se uniram à oposição], apesar deste ter feito alianças eleitorais e cogovernar, mas pesou mais a defesa do sistema do que a necessidade de introduzir mudanças.

Quais foram as principais mudanças após o afastamento de Lugo?

A política de Lugo é priorizar os setores sociais e dar início a uma mudança na política exterior apontando à integração, mas o golpe de Estado interrompe isso. Sua figura levanta expectativas sociais, mas o sistema nem sequer está em condições de assumir esta mudança e, desde o primeiro dia, começa a conspiração no Congresso. Horacio Cartes [presidente paraguaio, do tradicional Partido Colorado, que venceu as eleições em 2013] é uma síntese do pensamento do neostronismo, do neoliberalismo e uma concepção estratégica de neocolonialismo, exploração ao máximo da terra, exportação de matérias primas e fortaleza da elite dominante. Estes setores se sentem ameaçados e há o papel dos meios de comunicação, que consideram Lugo uma ameaça ideológica do chavismo. De 1989 até hoje, como hipótese, o que vemos no Paraguai é uma crise política que se acentua. Formalmente há uma democracia que se expressa através de mudanças políticas a cada cinco anos, mas não gera mudança social e aumenta os níveis de desigualdade e pobreza, pelo próprio modelo econômico. Há uma estrutura repressiva do Estado e um formalismo democrático que a legitima. Cartes inicia alianças público-privadas, privatização, aumento da venda de terras do Estado e da extensão territorial da exploração da terra, o que diminui a produção de alimentos. Os plantadores de soja quase não pagam impostos, são protegidos pelo Estado e, para compensar, há uma tendência preocupante de endividamento do país.

Em vez de um projeto de integração, que beneficia o Paraguai por suas condições mediterrâneas, a política externa se orienta à Aliança do Pacífico.

Cartes chega como elemento de estabilidade, mas dialeticamente se converte no portador da instabilidade e polarização da sociedade. Surgem lutas entre facções coloradas, conflitos entre senadores, entre o Congresso e o poder Executivo, e os meios de comunicação se tornaram hipercríticos da corrupção da classe política.

O senhor era chanceler de Lugo quando houve o julgamento político. Como viveu este momento dentro do governo?

Eu estava na reunião do Rio +20, onde iniciei conversas com os presidentes e chanceleres expressando minha preocupação sobre a possibilidade de um golpe de Estado. Havia algumas posições de que se seguia o procedimento constitucional, e depois de trocas e discussões, vim no voo de Brasil a Assunção, na noite anterior, com chanceleres e o secretário da Unasul. Tentamos em conjunto encontrar uma saída, mas depois de entrevistas com os partidos políticos e o Congresso, era evidente que o golpe de Estado já estava consumado, que tinham acordos. As percepções dos protagonistas do golpe no Paraguai eram coincidentes, a parte acusatória sem fundamento legal, mas na esfera diplomática já não se podia evitá-lo. Na política, havia opiniões encontradas sobre o que fazer, uma incerteza de que poderia haver violência e que não era necessário expor as pessoas a ela. E finalmente o presidente tomou a decisão, com sua equipe mais próxima, jurídica, de assumir a posição que assumiu.

No caso do Brasil, como avalia a posição da OEA?

Há outra conjuntura, o Brasil não é o Paraguai, tem uma grande força internacional na América Latina e no resto do mundo. Portanto, é preciso mais prudência para encontrar uma saída política e evitar o aprofundamento da crise, que tem sérias implicâncias, como já temos na mudança na América Latina. José Serra dá um giro na política exterior; basta olhar suas declarações para ver que retorna uma espécie de um Brasil delegado pela primeira potência, uma economia periférica em uma área de influência e que precisa de estabilização para cumprir esta função geopolítica regional.

Há uma nova tendência emergindo com Mauricio Macri na Argentina, Cartes no Paraguai, a oposição venezuelana com maioria no Legislativo e o que acontece no Brasil. Como vê este momento da região?

No caso anterior, havia uma relação entre soberania e projetos de integração regional. Apesar das dificuldades no Mercosul, avançamos no processo de transformação de uma visão política do bloco e na fundação da Unasul e da Celac (Comunidade dos Estados Latino-americanos e Caribenhos). É clara a diferença na perspectiva para uma política que se projeta no Consenso de Washington e na Alca, que tem a ver com a política estratégica imperial. Esta política não se aplica diretamente, mas se redefine a partir dos agentes internos aliados a este modelo, e que precisam do formato da democracia representativa para legitimá-lo. Há uma espécie de atualização do pensamento de [Henry] Kissinger [ex-secretário de Estado dos EUA] que disse vir ao Chile para corrigir o erro que o povo cometeu ao eleger [o ex-presidente Salvador] Allende. Ao mesmo tempo, estas políticas de ajustes estruturais geram a emergência de uma subjetividade coletiva que estava fragmentada, a formação de uma massa crítica que passa da resistência à necessidade de um projeto alternativo de sociedade que limite o projeto transnacional.

No Paraguai, depois de praticamente 40 anos, houve grandes mobilizações camponesas e estudantis. Está se produzindo um encontro interessante entre setores e à medida que se aprofunda a crise de representatividade do sistema político, há um despertar.

Evidentemente isso tem o seu processo. Esta crise evidencia a necessidade de uma democracia diferente, orientada a uma disputa de projetos e não simplesmente à preparação de máquinas eleitorais.

Em 2012, o senhor ressaltou que os Estados Unidos não evitaram o afastamento de Lugo, quando em outros casos se manifestaram. Acha que os processos do Paraguai e do Brasil tenham se dado por influência norte-americana?

Sim, claro. Não é que seja efeito de um botão automático que se aperta em Washington e repercute aqui, porque sempre terminamos culpando os de fora e esquecemos os de dentro. Mas o terreno é propício dentro para que influa ou não. Quando se produz o golpe de Estado de [o ditador paraguaio Alfredo] Stroessner, a influência norte-americana era evidente. Percebia-se que haveria uma crise sem precedente no país, então era preciso salvar o sistema. Há uma coincidência entre a necessidade interna e o apoio. Apoia-se por ação ou por omissão. Os meios de comunicação transformaram o Lugo em um grande fantasma de esquerda vinculado ao radicalismo venezuelano e gente de boa fé consumiu essa acusação. Por outro lado, havia vulnerabilidade interna porque Lugo não apostou em construir um movimento político liderado por ele, ao que se soma o atraso da classe política. Por outro lado, não era somente um golpe contra o Lugo. Além dele, havia um projeto regional. Além de Lula e Dilma, tinha um projeto de liderança do Brasil.

No Brasil, a investigação Lava-Jato sobre a corrupção na Petrobrás revela conexões com países vizinhos. Como o senhor vê essa situação?

Há regras do jogo que aparentemente foram aceitas como parte do funcionamento do sistema político interno e regional. Os empresários dizem “bom, estas são as regras, tenho que jogar com elas”. Mas se setores do parlamento estão vinculados a isso e setores do poder judicial vinculados ao poder político, quem controla isso? Como a cidadania está desorganizada, desinformada, e até despolitizada, não sobra ninguém para controlar. É o próprio limite de funcionamento do sistema.

Muita gente pensa que não se pode fazer política sem dinheiro, mas não fazem esforços para que seja diferente. O processo eleitoral envolve uma competição impressionante do dinheiro, então é preciso fazer reformas profundas no sistema político.

‎Tem que reformar também esta democracia representativa, liberal, que teve sua razão de ser no projeto do capitalismo emergente, mas estamos em um capitalismo periférico e neocolonial, muito condicionado.

Depois do impeachment de Lugo, houve alguma discussão sobre reforma política?

Nenhuma. A eficácia ideológica da democracia para sustentar o sistema é tanta que compatibiliza uma estrutura não democrática com uma representação política. A estrutura é de violência. Se menos de 3% controlam 85% da propriedade da terra, alguém está fora deste negócio e, para sustentá-lo, requer-se uma estrutura estatal repressiva internamente, para controlar os excluídos. Na crise educativa aqui, as pessoas descobriram que os programas são um desastre. Na verdade, são parte do programa de não desenvolver o pensamento crítico, porque massificando a ignorância você tem eleitores dóceis. O importante é que setores sociais antes adormecidos agora acordam e dizem: “mas com essa formação, não vou a lugar nenhum”. As escolas caem aos pedaços, a educação é de uma pobreza terrível, salários miseráveis, e não porque não existam recursos, mas porque não é prioritário e funcional ao sistema.

O senhor defendia o ingresso da Venezuela no Mercosul, afirmando que seria benéfico para os demais países. Com a crise no país e a nova conjuntura da região, vê uma mudança de rumo ou enfraquecimento do bloco?

O Mercosul e a Unasul estão debilitados porque mudou a visão estratégica dos presidentes. Não é a mesma coisa pensar em recuperar soberania e controle sobre os recursos naturais estratégicos que pensar em uma lógica de mercado. Isso debilita a integração, porque a referência continua sendo a primeira potência mundial e a aspiração destes subordinados é de segmentos de integração via comércio e não potenciar a região. São uma espécie de agentes coloniais que querem ficar bem com seus colonizadores. A visão de Macri e Cartes é a do país em remate em aliança com burguesias compradoras e vendedoras, de intermediação. Para bem estar coletivo, social, desenvolvimento e investimento produtivo, fortalecimento institucional, a história é outra. A visão dos povos deveria se basear em sua experiência histórica, desenvolvimento cultural, vinculações em toda a América Latina, uma luta histórica de reivindicação. Apostamos na Venezuela no Mercosul pelo desenvolvimento da autonomia da América Latina e Caribe, com base na cooperação e projetos independentistas. O princípio era colocar em andamento nossos próprios organismos sub-regionais, fortalecê-los e repensar a democracia em função da nossa cidadania. Tivemos experiências nas crises de Honduras e Equador, a questão é ver como a Venezuela encontra mecanismos para uma saída negociada que evite maior nível de confrontação interna.

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