Mulheres que não cabem no 8 de março
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Histórias que não cabem no 8 de março

O machismo e a misoginia que as brancas sofrem, atrelados ao racismo que recai sobre as mulheres negras, ganham um potencial devastador e, não raro, mortal

em 08/03/2016 • 23h30
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“Rostos com a imensidão do mar
sem pingos de desespero
negros
não mais fujões
libertam seu nome…

Era negra como a noite. Foi capturada, laçada na selva, traficada. Seu corpo foi mutilado, invadido e vendido. Era menina, a viam mulher, a estupraram, bateram. O açoite machucava a carne e marcava a alma. Nunca levante a cabeça ou olhe nos olhos. Negra fedida, mucama, me sirva! Vai dormir no chão! Marquem a carne a ferro para todos saberem que é minha, joga água fervendo na vagina para nunca mais deitar com meu marido. Engravidou, viu o corpo do menino morto no rio. Engravidou de novo, tomou beberagem, matou a criança por amor… De seu ventre só sairia uma criança livre. Depois de uma vida de servidão, com corpo já cansado, ousou sonhar com a liberdade, fugiu, quase morreu no mato, encontrou outros negros fujões, descobriram  quilombo, pode descansar enfim…

“(…) a minha cor apavora
essa raça agride ouvi dizer
não é nos dentes do negro
não é no sexo do negro
é na arte do negro
de viver
melhor dizendo
sobreviver…”

Agora era empregada, já não tinha grilhões. Cuidava da casa e do filho da patroa para que ela trabalhasse, se divertisse, comesse, dormisse, fizesse revolução. Enquanto trabalhava, seus filhos ficavam sozinhos depois da escola trancados no quarto/sala. Promete que não vai abrir a porta para ninguém. Não queria perder mais nenhum. Um moleque tinha morrido de pneumonia. Era enfermidade que tinha tratamento, mas mesmo assim quantos corpos negros morriam por essa doença banal. Eram quatro horas de percurso para a casa da patroa todos os dias. Sempre tinha um homem que tentava se esfregar no caminho de ida/volta. Estudo teve pouco, aprendeu as letras só. Tinha que trabalhar. Veio fugida do Nordeste, cansou de apanhar do marido. Nunca se achou bonita. Bonitas eram as mulheres da TV, tão branquinhas, de cabelos esvoaçantes, curvas perfeitas, pareciam anjos. Seu cabelo nunca coube na TV, seu lábio grosso nunca foi motivo de elogio e sua cor, sempre parecia que estava suja. Sonho era coisa difícil de ter. À noite, pedia força porque o corpo já não aguentava muito…

“(…) os troncos estão nas favelas
vejo troncos nas vielas
nas moradias fedidas
nas peles sem esperança
nas enxurradas de não…”

(Poesia de Alzira Rufino)

Ficou sabendo que depois de uma vida trabalhando como catadora, poderia se aposentar, enfim. Será que saberia o que fazer com tanta liberdade? Mas demorou e viu que, mesmo depois de uma vida servindo, não ia se sustentar com o que ganhava. Estava velha e sozinha. Filhos teve três, apenas um estava vivo. Não quis sair para jogar fliperama naquela noite. Escapou da morte por conta do seu medo de chuva. Foram 67 tiros que dilaceraram o corpo de seus dois irmãos. O caixão foi lacrado, nunca mais pode ver os filhos…

Quem é a mulher celebrada no 8 de março?

O padrão universal feminino revisitado pela data diz respeito às mulheres brancas, suas histórias e dores. São tantas e legítimas suas pautas, mas não, não são universais.

Mulheres negras e brancas não são vistas na sociedade pelo mesmo prisma. Ainda que invisível aos olhos, as feridas da escravidão ainda marcam os corpos negros e a existência branca é protegida por inúmeros privilégios. A trincheira negra ainda é a da sobrevivência. Um exemplo é o fato dos homicídios de mulheres negras aumentarem 54% em dez anos no Brasil, passando de 1.864, em 2003, para 2.875, em 2013. No mesmo período, o número de homicídios de mulheres brancas caiu 9,8%, saindo de 1.747 para 1.576.

Além disso, são as que mais morrem por conta de abortos clandestinos e doenças tratáveis. Estudam menos e trabalham por mais tempo e ganham menos. Sofrem mais com a precarização dos serviços públicos, entre outros.

Anos atrás o movimento de mulheres negras passou a denunciar o silenciamento das suas pautas dentro da construção dessa data. E, se hoje, aqui no Brasil, as mulheres negras vão às ruas é para que não se esqueçam que não, não somos iguais. E para que não se perpetue o apagamento da luta das mulheres negras. O machismo, o sexismo, a misoginia que as brancas sofrem, atrelados ao racismo que recai sobre o corpo negro, ganham um potencial ainda mais devastador e não raro, mortal.

Se o 8 de março é uma data de luta, enegrecê-lo é essencial. Se uma mulher negra avança, tenha certeza que nenhuma mulher branca ficou para trás.

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