'Com impeachment, parlamentares pensaram mais nos interesses pessoais’
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‘Parlamentares pensaram nos interesses pessoais’

Para ex-ministra da Cultura Ana de Hollanda, parlamentares que votaram pelo impedimento de Dilma pensaram mais em interesses particulares que públicos; ela defende ajustes na Lei Rouanet

em 06/09/2016 • 13h37
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Apenas os ouvidos mais perspicazes puderam discernir entre palmas, assovios e risos os dizeres “tamo junto’” proferidos por Renan Calheiros (PMDB), presidente do Senado, a Michel Temer (PMDB), empossado naquele momento como presidente da República, após o capítulo final de uma histórica e sórdida trama de ações para retirar Dilma Rousseff (PT) do cargo que ocupava desde 2014.

O aperto de mão promovido por Renan Calheiros e Michel Temer foi a exemplificação do que Sérgio Buarque de Hollanda alerta no clássico “Raízes do Brasil”, que completa 80 anos em 2016. “O tema público x privado entrou na pauta do dia a dia da população. Só que isso não significa que parlamentares que votaram pelo impeachment pensem mais no público do que em seus interesses pessoais”, afirma a ex-ministra da Cultura e filha de Sérgio Buarque de Hollanda, Ana de Hollanda, em entrevista concedida por email à Calle2.

A impessoalidade citada por Ana de Hollanda ao analisar a rotina parlamentar foi dissecada por seu pai, Sérgio Buarque de Hollanda, em 1936, ao dizer que “a escolha dos homens que irão exercer funções públicas faz-se de acordo com a confiança pessoal que mereçam seus candidatos, e muito menos de acordo com suas capacidades próprias. Falta a tudo a ordenação impessoal da vida que caracteriza o Estado burocrático”, afirma, antes de discorrer sobre o famigerado “homem cordial’’ e a emoção que caracteriza o brasileiro em suas relações sociais.

Aos 67 anos, Ana de Hollanda carrega o sobrenome que se confunde com a história do país, o cargo de ex-ministra da Cultura do primeiro mandato de Dilma − entre janeiro de 2011 e setembro de 2012 − e as críticas por defender, com a ponderação necessária, a formulação e execução da Lei Rouanet, criada em 1991 como forma de incentivo às produções culturais no país. “O que me impressiona é a ignorância que existe em relação às leis de incentivo cultural. Essas leis estimulam o empresariado, e até pessoa física, através de dedução no IR, a investir também em cultura”, reforça Hollanda. Nesta entrevista, ela fala também sobre a dividida esquerda brasileira.

O fato de o brasileiro não conseguir compreender a impessoalidade do Estado, como seu pai diz no livro “Raízes do Brasil”, favoreceu o impeachment de Dilma?

Acho que essa característica de confundir o público com o privado ainda é muito presente nas pequenas atitudes rotineiras da população. Mas, de certa forma, graças a uma maior consciência que o povo está adquirindo em relação a seus direitos de cidadão, até em função dos escândalos com desvios de verbas públicas, bastante divulgados, o tema público x privado entrou na pauta do dia a dia da população. Só que isso não significa que parlamentares que votaram pelo impeachment pensem mais no público do que em seus interesses pessoais. O povo não tem a menor responsabilidade pelo golpe.

'O tema público x privado entrou na pauta do dia a dia da população. Só que isso não significa que parlamentares que votaram pelo impeachment pensem mais no público do que em seus interesses pessoais. O povo não tem a menor responsabilidade pelo golpe'


Ainda em Raízes do Brasil, seu pai vê na política brasileira uma forte influência da estrutura familiar, do que é privado, nas ações do que é público. Essas relações transportadas do privado para o público também ajudam a explicar alianças na política atual?

Acho que para se alcançar uma maioria parlamentar muitas vezes as alianças passam ao largo de qualquer linha ideológica. Isso é próprio de um presidencialismo de coalizão como o nosso. No entanto, quando o país está forte economicamente, com um presidente popular e prestigiado, o governo se torna menos vulnerável a alianças espúrias.

Em entrevista ao UOL você disse que é hostilizada por grupos que se infiltraram na esquerda. Como você caracteriza a esquerda atual?

Como sempre, a esquerda é muito dividida. A presidenta Dilma foi muito prestigiada no primeiro mandato, quando seu índice de aprovação pessoal girava em torno de quase 80%. Na medida em que o prestígio foi caindo, continuou recebendo não só os ataques tradicionais da direita como passou a receber também da esquerda e, em especial, do próprio PT que esteve sempre presente nas definições e nomeações políticas, mas insistia em criticá-la publicamente ou através de notinhas vazadas pela mídia. Tenho a impressão de que a ficha só caiu mesmo nas vésperas do golpe.


Qual o papel dessa esquerda, agora como oposição, até as eleições de 2018?

Eu gostaria muito que ela repensasse, além das táticas e estratégias eleitorais, como se organizar para atuar num país dividido entre direita e esquerda e entendesse que, se os partidos progressistas e seus militantes insistirem em permanecer se dilacerando, vão perder as eleições, com certeza. Seria importante também pensar em novos nomes não muito desgastados.

'Gostaria que a esquerda repensasse, além das táticas e estratégias eleitorais, como se organizar para atuar num país dividido e entendesse que, se os partidos progressistas e seus militantes insistirem em permanecer se dilacerando, vão perder as eleições'

Depois de passar pela Funarte e pelo Ministério da Cultura, você consegue identificar a causa para tantas críticas às leis de incentivo à produção artística, como Rouanet e Audiovisual?

O que me impressiona é a ignorância que existe em relação às leis de incentivo cultural. Essas leis estimulam, o empresariado, e até pessoa física, através de dedução no IR, a investir também em cultura. É claro que ela não substitui o orçamento do ministério, mas viabiliza ações que esse ministério nunca terá condições de realizar integralmente. Grandes exposições, reformas de prédios históricos, escolas de arte, feiras de livros, festival de cinema, orquestras, museus, grupos estáveis de dança e teatro que realizam, paralelamente, espetáculos e cursos gratuitos, e muito mais, sempre com alguma contrapartida social. O problema é que houve uma campanha sórdida, da qual infelizmente participaram o ex-ministro e seu grupo político, visando confundir uma lei de incentivo fiscal para realizações culturais com o que se entendia com enriquecimento direto de “artistas consagrados”. Vários grupos culturais não entendiam a contrapartida, do qual o cidadão é o maior beneficiário, e passaram a criticá-la pelo fato de dificilmente um grande empresário patrocinar artistas pouco conhecidos ou grupos alternativos. Houve alguns desvios − o que não é privilégio da cultura − que se tornaram manchete e os oportunistas de plantão resolveram propor o fim a lei. É mais ou menos jogar fora o bebê com a agua do banho.

'Me impressiona a ignorância que existe em relação às leis de incentivo cultural. Elas estimulam o empresariado e a pessoa física a investir também em cultura'

A Lei Rouanet precisa ser atualizada? Em que direção/sentido?

A lei precisa ser atualizada e aperfeiçoada em muitos sentidos, mas eu não tenho como responder agora, resumidamente, todos os pontos falhos.

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O fato da Lei Rouanet possuir uma classificação por segmento, e não por proponente, gera uma distorção que ajuda a prejudicar a sua visibilidade?

A classificação e o tipo de dedução por segmento e não por projeto é, por exemplo, um dos aspectos polêmicos [ela se refere ao fato de que, pela lei, alguns segmentos, como teatro e música erudita, terem isenção total, e outros terem isenção parcial]

O fato de o ProCultura, que ainda não foi aprovado pelo Congresso, obedecer à regra de cinco anos de validade ajuda a continuidade da Lei Rouanet, mesmo com todos os seus problemas?

O ProCultura [projeto de lei que pretende substituir a Lei Rouanet] está bem desenvolvido, depois de pelo menos seis anos de tramitação na Câmara e não se sabe quando será colocado em votação. Nesse ritmo, é claro que não será rediscutido para revalidação e aprovado pelas duas casas a cada cinco anos [o projeto, caso aprovado, prevê sua revalidação pelo Congresso a cada quinquênio]. Por isso, é bem mais interessante propor emendas à própria Lei Rouanet, o que é totalmente viável, aproveitando todos os estudos realizados para a lei do ProCultura. Espero que o nome da lei não se sobreponha à sua função.


Atual Ministro da Cultura, Marcelo Calero, afirmou que é preciso melhorar a fiscalização para projetos da Lei Rouanet. Essa era uma preocupação sua enquanto ministra?

Sim. Foi uma preocupação permanente minha junto com a Secretaria de Fomento e Incentivo à Cultura.

O que você achou da edição crítica de Raízes do Brasil? Já teve a oportunidade de ler?

Gostei muito dessa edição comemorativa: além do papel especial, capa dura, ilustrações históricas que inclui uma cópia da primeira edição, com anotações manuais de meu pai, o livro conta também com análises antigas e contemporâneas que, independente de eu concordar ou não, são interessantes por provocar reflexões sobre as questões levantadas nele.

‎FOTO: AGÊNCIA BRASIL

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