‘Lei Rouanet pode ser melhorada com boa gestão’
Cultura

‘Lei Rouanet pode ser melhorada com boa gestão’

Criada em 1992, lei não enxerga o atual movimento cultural brasileiro; confira entrevista com ex-secretário do Ministério da Cultura, que fala dos seus problemas e injustiças

em 01/03/2016 • 23h00
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A Lei Rouanet, aprovada há 25 anos para incentivar o segmento cultural brasileiro,  tem distorções graves: projetos de grandes eventos, como o Rock in Rio,  ou de artistas consagrados, como a cantora Cláudia Leitte,  são aprovados pelo Ministério da Cultura (MinC) para buscarem patrocínios com incentivo fiscal; alguns segmentos têm isenção total, enquanto outros têm isenção parcial, e cerca de 70% dos seus valores são concentrados no eixo Rio-São Paulo.

Porém, há também muito desconhecimento sobre a lei ­– e sobre os projetos aprovados pelo MinC. O caso de Maria Bethânia, por exemplo. Em 2011, a imprensa noticiou que a cantora baiana havia aprovado um projeto de R$ 1,3 milhão para criar um blog de poesia. Mas a verdade é que Maria Bethânia era apenas uma contratada do projeto. Ela gravaria vídeos declamando poesias e seu cachê era de R$ 1 mil por vídeo.

Para esclarecer pontos pouco conhecidos da polêmica lei, e para debater suas distorções e possíveis soluções, a Calle2 entrevistou Henilton Menezes, que foi secretário de Fomento e Incentivo à Cultura do MinC entre 2010 e 2013 – ou seja, era ‘o cara’ da Lei Rouanet.

Nesta conversa, ele defende que, com vontade política e boa gestão, seria possível ajustar a lei e corrigir as suas distorções. Além disso, ele critica a decisão do TCU, que analisou o Rock in Rio de 2011 (foto acima) e recomendou que projetos “com altíssimo potencial lucrativo” não deveriam receber incentivo fiscal – para ele, o problema desta decisão é a possibilidade de prejudicar pequenos produtores que têm projetos com fins lucrativos. “Por que um país não pode dar incentivo fiscal para uma atividade lucrativa na cultura, mas pode dar para a indústria, para a agricultura, para o setor automotivo? A Ford não tem lucro?”

Apesar de defender que projetos com potencial lucrativo possam ter incentivo fiscal, como diz a lei, Menezes, enquanto secretário, reprovou a turnê nacional de Zezé di Camargo & Luciano, após discussão e debate com a Comissão Nacional de Incentivo à Cultura, que possui representantes de diversos setores.

Nesta entrevista, ele fala também sobre o ProCultura – projeto de lei que pretende substituir a Lei Rouanet, mas que está parado no Congresso –, sobre os problemas de gestão da lei e critica duramente a Lei do Audiovisual: “Se a Lei Rouanet dá 100% de incentivo, a Lei do Audiovisual dá 125%”. Ou seja, o investidor termina ‘ganhando’ dinheiro público ao patrocinar um filme.

O Ministério Público fez uma denúncia ao TCU, que passou anos investigando e decidiu que eventos culturais com altíssimo potencial lucrativo e autossustentáveis serão proibidos de receber incentivos fiscais por meio da Lei Rouanet. Ainda cabe recurso, mas gostaria de saber o que o senhor acha dessa decisão.

Acho um equívoco do TCU, porque ele analisa só um viés da lei. Tanto é que a própria lei, em um dos seus artigos, diz que os beneficiários do Incentivo Fiscal são pessoas físicas e jurídicas com e sem fins lucrativos. O TCU tem boa intenção, não estou questionando o órgão de controle, mas há desconhecimento do processo e da dinâmica do segmento cultural. Que atividade não tem intenção de lucro? Como vou medir seu potencial lucrativo? Se restringirmos a Lei Rouanet às instituições sem fins lucrativos, começaremos  a subverter o mecanismo da lei que é desenvolver o segmento cultural brasileiro, que gera emprego, que paga impostos, que gera riqueza e que dá lucro. Um produtor não trabalha sem perspectiva de lucro. Ninguém faz isso.

Conheço vários projetos sem potencial de lucro. Lembrando que lucro é diferente de receita…

Quase todos os projeto dão lucro ou pagam salários aos profissionais envolvidos. Mas onde está a linha de corte entre o que é lucro e benefício salarial? É complexo. Um musical, por exemplo, pode não ter lucro, mas todos recebem: músicos, atores, técnicos, dançarinos e produtor. Posso dizer que esse musical não tem lucro? Agora, como fazer essa análise antes de o projeto se realizar? Como vou saber quantos livros vou vender?  Como saber quantos ingressos vou vender? Há peças de teatro que têm expectativas de sucesso de público e, algumas vezes, podem ser um fracasso. A primeira incoerência é essa. Mas há uma segunda incoerência.

Por que o governo não pode dar incentivo fiscal para uma atividade econômica lucrativa na cultura, mas pode dar para a indústria, para a agricultura, para o setor automotivo? A Ford não tem lucro? Em 2016, o percentual do incentivo fiscal da Lei Rouanet em relação aos incentivos fiscais do país como um todo é de 0,5%.

Em 2010, o incentivo fiscal da Lei Rouanet significava 1,2% de todas as concessões de incentivo fiscal do país e, ao longo do tempo, este percentual vem caindo, enquanto as políticas de incentivo fiscal aumentaram nesses anos. Seria natural que subisse, mas em todos os setores.

Voltando à decisão do TCU…

É uma decisão equivocada porque faz uma leitura rasa do problema. Pegaram um evento emblemático, porque é uma produção milionária, que é o Rock in Rio, mas como ficarão os projetos menores, que estão abaixo do Rock in Rio, e que podem ter fins lucrativos? Quando o episódio da Cláudia Leitte veio à tona [o MinC aprovou R$ 356 mil para a cantora fazer um livro autobiográfico], o ministro se pronunciou dizendo que iria vetar o projeto, mas foi o ministério que aprovou, depois de várias instâncias de análise. Por que ele aprovou?

Tecnicamente, pelo que diz a lei, está tudo certo aprovar o projeto da Leitte, mas o senhor concorda com a atual redação da lei?

Acho que a lei precisa de muito ajuste, mas não esse ajuste que o TCU está impondo, porque corremos o risco de abrir um flanco perigoso, que é a possibilidade de um dirigismo. Ou seja, só aprovar o que cai no gosto do gestor de plantão, e não podemos ter uma lei com esse caráter. Leis têm que ser objetivas. A própria lei diz que é vetado a análise subjetiva do projeto. Eu não gosto da Cláudia Leitte, então vou vetar? Não pode ser assim, toda lei é feita para todo mundo.

Eticamente é correto aprovar um projeto para uma artista como a Cláudia Leitte ou para um evento como o Rock in Rio?

A ética depende de como cada um vê o problema. Se eu fosse a Cláudia Leitte, eu nunca teria apresentado um projeto desses, porque o dano de imagem que ela teve foi maior do que os R$ 356 mil que ela poderia captar na Lei.

Qual é, então, na sua avaliação, o maior problema da Lei Rouanet?

Existem vários problemas, que acho que podem ser consertados, mas existe um, que é gravíssimo, que é a gestão da lei. Quando falo em gestão, falo de como o Ministério da Cultura está gerindo essa lei. A lei não é ruim. Ela só é antiga, tem 25 anos, e não enxerga mais o movimento cultural brasileiro. Para você ter ideia, a lei só fala em seis segmentos culturais, não fala nada de internet, não fala de mídia digital. O ministério trabalha com mais de 20 segmentos. A CGU [Controladoria Geral da União] andou questionando que o ministério aprova projetos para segmentos que a lei não prevê – e aprova mesmo porque a lei está engessada. O ministério faz uma adequação e inclui o artesanato, a moda, a arquitetura, e outros segmentos não previstos inicialmente. Mas tem que fazer, não está errado, todos os segmentos são meritórios.

Mas qual é exatamente o erro de gestão?

Quando um projeto entra no ministério, e entram uns 700 por mês, ele tem um trajeto: primeiro vai para um parecerista contratado, depois vai para instituição vinculada ao ministério (Funarte, Ibram, etc), segue para a Cnic (Comissão Nacional de Incentivo à Cultura). Na comissão  o projeto cai numa banca correspondente ao setor. São 21 comissários, em 7 bancas, porque tem os seis segmentos da lei mais um grupo que representa os empresários, previsto em lei. Se esse projeto tiver polêmica, ele pode ir para a plenária para discussão e voto. A Cnic tem, ao todo, 14 votos, sete da sociedade civil e sete do ministério. São 7 a 7, se der empate, quem tem o voto de qualidade é o secretário, que representa o ministro, então o MinC tem 8 votos. Teoricamente, ele aprova o que ele quiser. Como a Cnic não é deliberativa, apenas consultiva, ela apenas recomenda a aprovação ou a reprovação de um projeto. E o ministro concorda ou não com o resultado. Como são muitos os projetos, o ministro delega para o secretário de fomento. Quando eu era secretário, tinha o cuidado de enxergar todos os projetos que estavam tramitando. Examinava todos os projetos que tinham potencial de ruído, especialmente aqueles de artistas famosos e os que tinham valores altos, e os levava para a plenária da Cnic. “Pessoal, a Cláudia Leitte está com um projeto aqui aprovado, mas eu acho que ela, por ter carreira consolidada, não precisa de incentivo fiscal e gostaria de saber o que vocês acham”. Aconteceu isso com o Zezé di Camargo & Luciano. Eles tinham uma turnê nacional e pediram incentivo fiscal, estava aprovado pelo parecerista, pela Funarte e a Cnic tinha tendência de aprovar, mas joguei na plenária e foi reprovado.

Por que o senhor jogou na plenária?

Porque eu achava que eles não tinham que ter a concessão do incentivo fiscal.

Por que?

Porque são artistas reconhecidamente com suas carreiras estabilizadas no mercado, que têm um poder de trazer público muito grande, então teoricamente você pode dizer que está claro que ele não precisa de incentivo fiscal.

Mas a lei, tecnicamente, não proíbe que artistas famosos e projetos lucrativos tenham incentivo fiscal.

É o que eu estou te contando. Nas plenárias, sempre tem um jurídico para sanar todas as dúvidas. A discussão do Zezé di Camargo foi quente, eu perguntei para o jurídico: a Cnic pode negar, mesmo que não tenha nenhum problema legal? O jurídico afirmou para a gente: a Cnic não aprova nem desaprova, mas recomenda, ela pode dizer para o ministro: o projeto de fato está dentro da lei, mas nós achamos que ele não deve receber incentivo fiscal. Pronto. O que acontece? O secretário nega por recomendação da Cnic. Aí vai uma comunicação para o Zezé di Camargo & Luciano, que recebem os pareceres. Quando isso chega para eles, eles podem entrar com recurso. Se eles entrassem com um recurso, argumentando que a lei lhes dá o direito mesmo diante do potencial lucrativo, o ministro teria que aprovar, porque cabe dentro da lei. Agora, pergunta se eles entram com recurso? Eles não entram, porque não querem esse desgaste. É diferente do que aconteceu com a Cláudia Leitte, de primeiro aprovar e depois dizer que não pode mais, isso está errado. Se tivesse gestão dentro do sistema, poderia ter sido reprovado a Cláudia Leitte. Isso pode ser discutido com mais transparência na plenária da Cnic.

Qual a moral da história?

O MinC precisa fazer uma gestão com maior governança. Enxergar o processo lá dentro com mais propriedade. Eu me sentiria muito mal se, após aprovado, eu tivesse que reprovar só porque a imprensa falou.

Você reprovava enquanto secretário?

Reprovava a partir da recomendação da Cnic.

Mas porque o senhor aprovou o Rock in Rio, enquanto era secretário de fomento?

O orçamento total do evento era de cerca de R$ 90 milhões, mas o pedido de incentivo fiscal era de R$ 6 milhões, dentro do artigo 26 [setores que não possuem isenção total, apenas parcial], que dá 30% de isenção. Chegamos então à concessão de R$ 1,8 milhão com dinheiro público. Quando o governo tem R$ 1,8 milhão em um projeto total de R$ 90 milhões, temos que analisar se a contrapartida é compatível com a concessão, que no caso era de 2% do orçamento total. Fiz questão de que esse projeto fosse para a plenária – que analisou apenas o valor concedido – que terminou recomendando a aprovação do projeto. O Rock in Rio dava contrapartidas, não vou me lembrar de tudo, mas fizeram uma inclusão de profissionais da região para fazer estágio como bolsistas nas produções internacionais, fizeram doação de instrumentos para escolas de música do entorno do projeto, deram uma quantidade de ingressos para as escolas do bairro e colocaram, mesmo com 2% do financiamento público, a marca do ministério em todas as peças publicitárias. Isso pode até ter sido um equívoco, porque as pessoas pensam que todo o dinheiro do Festival foi de incentivo fiscal.

E o caso Maria Bethânia, que também foi aprovado na tua época?

Fizeram uma injustiça enorme com a Maria Bethânia. Primeiro porque o projeto não era da Maria Bethânia. Era um projeto para a criação de um portal de poesia da língua portuguesa, apresentado por uma produtora, com curadoria do Hermano Viana [sociólogo, irmão do Herbert Viana] e direção do Andrucha [Waddington, diretor e produtor de cinema e publicidade]. A Maria Bethânia apenas declamaria os poemas, ou seja, ela era uma artista  contratada pela produtora para fazer um trabalho.

Todos os dias, durante um ano, sairia no portal um vídeo com uma poesia declamada pela Maria Bethânia. Eram vídeos de cerca de um minuto, que ficariam disponíveis para download gratuito. O projeto começaria com grandes poetas e depois poetas pouco conhecidos poderiam mandar seus trabalhos. Para fazer os vídeos, ela cobrou R$ 365 mil reais, o equivalente a R$ 1 mil por vídeo.

E aí o que aconteceu? Li na imprensa notícias de que a Bethânia havia recebido do MinC valores para fazer um blog de poesia. Quando você vê uma distorção dessas, eu penso, existe maldade aí.

O senhor fala que um dos maiores problemas da lei é a sua gestão. Mas o senhor não pensa que o maior problema da lei é não diferenciar o pequeno do grande produtor?

Mas, se você não tiver gestão, você naufraga. Quando eu fazia palestras sobre a lei, eu dizia que ela tinha três problemas, e um deles é esse: o MinC não consegue tratar proponentes, projetos e investidores  diferentes de forma diferentes. Para a lei, o Cirque du Soleil é o mesmo do circo do Seu Zé, porque é classificado como circo. Quando digo que é um problema de gestão, é porque mesmo com essa lei, você pode adaptá-la. Toda legislação tem três níveis de regulação: a lei, que é uma prerrogativa do Congresso, abaixo da lei existe um decreto que a regulamenta, que é prerrogativa da Presidência da República e, abaixo disso, existem as INs (Instruções Normativas) e portarias que são prerrogativas do ministro. Existem mecanismos que permitem ajustar a lei sem precisar mudá-la. Por exemplo: o atual ministro [Juca Ferreira] diz isso muito e ele tem razão, que os recursos da Lei Rouanet estão muito concentrados no eixo Rio-São Paulo. Porque ele não baixa uma norma dando limites? Um decreto só pode legislar onde a lei não legisla, se a lei é omissa, o decreto preenche os buracos. A IN, que é uma ferramenta bastante importante para a gestão, pode regular muita coisa que hoje está desregulada, pode dar limite por proponente, pode descentralizar os recursos. Os 100 maiores captadores captam cerca de 40% dos recursos. Então porque o ministério não pode dar limites e dizer que cada proponente, por exemplo, não pode captar mais de R$ 2 ou 3 milhões por ano? Tanto é que a lei diz que o incentivo fiscal tem que ter uma distribuição equilibrada por segmento e por proponente, mas não fala de região. Mesmo assim, poderiam ser estabelecidos limites por região.

E porque o ministério não faz isso?

Porque é preciso ter coragem e força para fazer isso. Porque se você for estabelecer limites, além de atingir grandes produtoras privadas, como a Aventura, você vai mexer com o Itaú Cultural, com o MASP, com a Bienal de SP, com a OSESP, com a Orquestra Sinfônica Brasileira, com essa turma que capta muito dinheiro.

Por meio de IN o ministério teria capacidade de tratar o Cirque du Soleil e o circo do Seu Zé de maneira diferente?

Não, isso teria que mexer na Lei. Mas pode resolver problemas como distribuição e valores de ingressos. Quando eu estava lá, fizemos uma readequação da lei, que dizia que pelo menos 30% dos ingressos teria que ter o valor do Vale Cultura (R$ 50). Por que fizemos isso? Porque o Vale Cultura foi aprovado em 2012 e avaliamos que as duas leis deveriam  dialogar entre si.

Para qualquer atividade?

Sim. Pela lei, não posso deixar de aprovar o Cirque du Soleil, mas posso estabelecer determinadas regras que me deem mais governança e segurança do retorno para a sociedade. Muitas coisas podem ser feitas por meio de gestão. E muita coisa não é feita por falta de vontade, na minha avaliação. Como é que vou estabelecer limites para a Osesp? Itaú? Mas, como ministro, posso estabelecer limites, incentivar a regionalização. Por que também digo que é gestão? A lei foi montada em um tripé: Ficart (Fundo de Investimento Cultural e Artístico), que prevê empréstimos para o setor, o FNC (Fundo Nacional de Cultura), que daria recursos diretos, e Incentivo Fiscal, que oferece a isenção do Imposto de Renda. Esses três mecanismos deveriam funcionar de forma complementar e não funcionam.

O Ficart nunca foi estabelecido?

Não. Criamos um tripé dentro da mesma lei, pensando em três modelos de financiamento. O modelo de Incentivo Fiscal está ancorado, principalmente, na atratividade, ou seja, você tem que convencer o empresário para ele colocar o imposto de renda no seu projeto. Há uma lógica de sedução e de conquista. Esse pé do tripé deveria ser compensado com o Fundo Nacional de Cultura, que deveria financiar projetos não tão atrativos, realizados em regiões mais remotas, bairros periféricos, que são necessários serem viabilizados. Os recursos do fundo iriam para as ações  onde o incentivo não chega. Uma escola de música, por exemplo, não costuma atrair patrocinadores, porque a marca dele fica só dentro da escola. Quem deveria incentivar a escola? O fundo, que aplicaria recursos diretos em instituições sem fins lucrativos. Por isso a confusão da decisão do TCU. O FNC só pode beneficiar pessoas físicas ou instituições sem fins lucrativos, prioritariamente por edital público. A lógica é diferente do incentivo, porque no incentivo a lei permite pessoas jurídicas com fins lucrativos. A lei foi desenhada assim – e muito bem desenhada. Aí vem o terceiro mecanismo, que é o Ficart, que concederia empréstimos a projetos que não cabem nem no incentivo nem no FNC, que são justamente os projetos com alto potencial lucrativo. Por exemplo, eu quero fazer um musical, sei que ele vai me dar dinheiro, pego um milhão emprestado do Ficart, faço o meu musical e depois devolvo para o fundo financiador.

Por que o Ficart nunca foi implementado?

Por falta de gestão e por uma falha no seu nascimento. Quando o legislador criou o Ficart, o governo não deu nenhum incentivo para investidores colocarem dinheiro nele. Se eu, investidor, tenho incentivo zero no Ficart e tenho incentivo de 30% a 100% no Incentivo Fiscal, então fico com o Incentivo Fiscal. No ProCultura [Projeto de Lei que substituiria a Lei Rouanet, mas que está parado no Congresso], o Ficart tem 50% de incentivo, ou seja, para cada real colocado por um investidor, o governo tem que colocar outro real para constituir o fundo. Assim ele fica mais atrativo, e quem deveria operar esses fundos são os bancos. O tripé da lei funcionaria assim: Incentivo Fiscal para projetos que têm atratividade e visibilidade, Fundo Nacional de Cultura para projetos mais estruturantes e com menor visibilidade, e o Ficart para  projetos com altíssimo potencial de lucro, como o Rock in Rio. Mas, um detalhe, quem vai dizer que tem altíssimo potencial de lucro não é o MinC, mas o produtor e o proponente.

Mas olha a distorção, para o proponente é sempre muito melhor tentar o Incentivo Fiscal do que o Ficart.

Mas isso, com gestão, pode ser resolvido. O governo dá as regras. Hoje, com o Ficart inativo, eu não posso encaminhar um projeto para ele. O MinC poderia dizer, esse projeto não cabe no Incentivo Fiscal, mas cabe no Ficart.

A vantagem do Ficart é que ele pegaria esse empréstimo com baixos juros?

Sim. E também tem outra vantagem. Vá a um banco para tentar pegar um empréstimo para fazer um show. O banco não empresta. O Ficart daria essa garantia.

Mas, voltando ao FNC, como está hoje o seu funcionamento?

Até 2002, 2003, o valor destinado para o fundo e para o incentivo eram quase iguais. Em 2002, o incentivo e o fundo tinham em seu orçamento algo em torno de R$ 300 milhões. Os valores eram equilibrados porque o FNC tinha que cumprir esse papel complementar – recursos do fundo tinham que ir para lugares e projetos onde o incentivo não iriam. Em 2015, o fundo teve orçamento previsto de R$ 100 milhões, enquanto o incentivo teve orçamento de R$ 1,3 bilhão. Foi historicamente o menor valor destinado para o FNC desde a sua criação. Por que é tão pouco? O fundo vem diminuindo porque é complexo usar dinheiro do fundo. Procedimentos para o FNC são infinitamente mais rígidos do que para o Incentivo Fiscal. Porque tem que fazer licitação, a empresa que vai receber recursos do fundo precisa licitar tudo que ela vai comprar, tem que ser empresa sem fins lucrativos, e o fundo incentiva apenas 80%, mas como uma empresa sem fins lucrativos terá 20% para investir? São tantas exigências para se utilizar o FNC que faz com que ele não seja executado. Além disso, o FNC não é um fundo financeiro, ele é orçamentário, então aquele dinheiro não existe, é uma rubrica do orçamento do MinC. O ministério tem que demandar, fazer o empenho, fazer o edital e ainda correr o risco de que os valores não sejam repassados. Como aconteceu agora, no edital da Funarte: rodaram o edital, divulgaram o nome dos ganhadores e o dinheiro nunca foi repassado para o MinC, porque, provavelmente, foi cortado lá no Tesouro. Então você tem um valor orçamentário no fundo mas não tem execução. O percentual de execução do fundo é muito baixo, e o do incentivo é alto. No FNC, nunca chegamos a 50% do valor de execução, e no IF chega a 90%, do total da previsão orçamentária.

Haveria como descentralizar os recursos do Incentivo Fiscal?

Por que o dinheiro está concentrado no Rio e em São Paulo? Primeiro, porque só empresas com o regime tributário do lucro real podem incentivar – esse regime tributário normalmente é escolhido por grandes empresas e 95% delas estão no Rio e em São Paulo. 44% do Incentivo Fiscal são captados em São Paulo, mas o PIB nacional está concentrado em São Paulo. Como desconcentrar algo que já é concentrado pela própria economia brasileira? Na época que estava no MinC, nós tentamos e falamos para a Receita Federal: porque não abrimos o Incentivo Fiscal para empresas que têm o regime tributário no lucro presumido, que são empresas menores espalhadas por todo o país? A Receita disse que, se a gente abrisse, a captação estouraria. Ora, mas existe um limite de captação, não queríamos mudar o limite. Se tem o limite de R$ 1,3 bilhão, qual a diferença para o governo se isso vem de lucro real ou do presumido? Mais uma vez é um problema de gestão. Se eu fosse um ministro com força política dentro do governo, eu poderia convencer o ministro da Fazenda a abrir para o lucro presumido, sem aumentar o limite.  O mesmo acontece com pessoa física: 1,5% de tudo que se capta na Rouanet vem de pessoa física, é pouco. Por que é tão pouco? Porque para investir eu tenho que tirar dinheiro do meu bolso até o dia 30 de dezembro e só terei o dinheiro de volta com a restituição do Imposto de Renda. Porque eu não posso deixar que a pessoa física lance diretamente na declaração, sem ter que desembolsar? O Fundo da Criança e do Adolescente conseguiu fazer isso.

Vocês tentaram isso quando o senhor estava no ministério?

Sim, e a Receita disse a mesma coisa, que vai estourar o volume de captação, mas na verdade existe um teto para a captação.

Esses problemas não são mais políticos que de gestão?

As duas coisas, porque precisa ter força política para mudar esse tipo de coisa, mas com uma gestão inteligente é possível mudar. A Marta Suplicy era uma ministra que tinha força política. O Vale Cultura foi enviado ao Senado num dia de novembro, ao meio-dia chegou no Senado. O projeto foi aprovado no mesmo dia às 18h. Aí começou outra batalha de força política, a Dilma tem que sancionar. Isso era novembro, se a Dilma sancionasse em janeiro, só poderia entrar em vigor no outro ano. A Dilma sancionou entre o Natal e Réveillon. Por que? Porque a Marta foi lá. Tem um ano e três meses que o ProCultura está parado no Senado. Em 2015 ele não saiu do lugar. Cadê a força política?

Estamos em um ano caótico. Tem alguma chance de o ProCultura ser votado?

Não acredito, com tudo que está acontecendo no Congresso.

O que fazer então?

Já que o ProCultura não anda, podemos tentar ajustar a Lei Rouanet.

Como?

A lei foi ajustada várias vezes. Se houvesse força política, você poderia ajustar alguns artigos da lei, mas sem alterar a despesa. O problema do ProCultura é que ele aumenta os recursos – as empresas podem hoje doar 4% do IR, e poderiam passar a 8%. Apesar de o texto do ProCultura ser muito melhor do que o da Lei Rouanet, ele prevê aumento de renúncia fiscal. No atual cenário, se fosse aprovado, alguém teria que cortar isso, ou no Senado ou veto da presidência. A primeira possibilidade é ajustar a Lei Rouanet por Medida Provisória, sem aumentar receitas.

Ou seja, o senhor prefere mudanças na Lei Rouanet do que a aprovação do ProCultura?

Sim. Desde 2012, toda lei de incentivo fiscal só vale por cinco anos. Se o ProCultura for aprovado e revogar a Lei Rouanet, ele só valerá por cinco anos. A Lei Rouanet, como é de 1992, não tem esse prazo. Hoje, na situação econômica e política do Pais, defendo a mudança da Rouanet, e não a sua revogação pelo ProCultura. Porque estamos trocando incentivo fiscal permanente por um temporário. Tem quanto tempo que o ProCultura tramita no Congresso? Seis anos. Ou seja, se aprovarmos o ProCultura, imediatamente teremos que começar a tramitar um novo ProCultura. Não sabemos como estará o país daqui a cinco anos nem quem estará presidindo a Câmara e o Senado Federal. Pode ter um louco qualquer lá.

Eu nunca entendi porque, pela Lei Rouanet, o artigo 18 dá isenção de 100% para artes cênicas, teatro, entre outros, e o artigo 26 dá isenção apenas parcial para os demais segmentos. Na sua avaliação, essa diferenciação é injusta?

É injusta. Sabe porque existem esses artigos? Quando a lei foi criada, em 1992, não havia 100% de isenção. Era 40% para doação [incentivo fiscal que vai para projetos sem fins lucrativos] e de 30% de incentivo para projetos com fins lucrativos. A lei permite que o investidor coloque esse valor como despesa operacional na declaração do IR. Quando ele faz isso, ele tem uma diminuição adicional do imposto. Como resultado, a doação gera isenção de até cerca de 65% e o patrocínio ficava na casa dos 55%. Em 1994, criou-se a Lei do Audiovisual. Se criticam a Lei Rouanet porque ela concede 100%, a Lei do Audiovisual é pior do que a Lei Rouanet.

O que acontece com o audiovisual? A lei dá 100% de isenção, além da possibilidade de o investidor contabilizar esses recursos como despesa operacional. No final das contas, o investidor tem um abatimento de 125%. Dou R$ 100 reais para o filme e ganho do governo R$ 125.

Como as duas leis concorrem, ninguém conseguia captar para a Lei Rouanet. O investidor era atraído para a Lei do Audiovisual. Aí veio uma pressão, principalmente encabeçada pelo teatro, que conseguiu apresentar um Projeto de Lei para criar a isenção de 100% para o segmento. Depois veio o pessoal das artes visuais, depois veio o pessoal da música, o pessoal do patrimônio, do livro, etc. Na música definiram que somente a música instrumental ou erudita teriam isenção total, por medo de virem justamente cláudias leittes e danielas mercurys. Se eu tiver um quarteto de cordas tocando uma peça erudita ou um grupo de música instrumental, tenho direito a 100%. Mas se houver um cantor, aí já não tem direito a 100%. Criamos uma lista dentro do artigo 18 que é uma maluquice. A classificação pelo segmento da Lei Rouanet é uma das coisas que dá para mudar. O ProCultura tem um critério de pontuação – quanto maior a pontuação, maior a isenção, podendo chegar a 100%. Poderíamos ter esse critério alterando o artigo 18.

O senhor considera que os artigos 18 e 26 são a maior distorção da lei?

É uma das distorções, mas não sei se é a maior. Acho que o maior problema é a fragilidade do FNC, que deveria ser o principal mecanismo da lei. Se o fundo fosse tão robusto quando o incentivo, o ministro não precisaria defender o fim da Rouanet. Imagina se o MinC tivesse R$ 1,3 bilhão no fundo igual tem no incentivo? O ministério poderia atender a demanda do País com esse dinheiro. Outro erro de gestão: quando analisamos o dinheiro do fundo, ele está também concentrado em no Rio e em São Paulo. Por que tem dinheiro do fundo para pagar uma ópera no Theatro Municipal de São Paulo? O ministério deveria fazer editais para o Norte, o Nordeste, pequenos produtores. Até 2013, a maior investidora no incentivo fiscal era a Petrobras, hoje é o Banco Itaú. Quando você somava a Petrobras com demais estatais, do incentivo fiscal, dava cerca de 20% a 25%. Hoje está na faixa de 12% por conta da saída da Petrobras. Em 2014, 78% dos recursos oriundos das estatais foram investidos no Sudeste. Em 2010, somente a Petrobras investiu R$ 114 milhões na Lei Rouanet. Se um quarto dos recursos do incentivo fiscal vem de estatais, por que não fazer esse dinheiro chegar em cantos onde os grandes investidores privados não chegam?

Mas, por que não faz? Por que não corrigem as distorções?

Por que não tem força política para fazer.

Mas o senhor acha que dá para ajustar várias coisas da lei, inclusive, por exemplo, instalar a pontuação do ProCultura?

Dá. Podemos descentralizar, podemos criar limites regionais, ou por proponentes, sem mexer na lei. Não podemos eliminar o artigo 18, mas podemos mexer nele por medida provisória. Podemos estabelecer que o fundo será financeiro, e não apenas orçamentário. Aliás, pelo projeto de lei do ProCultura, o fundo será financeiro.

O que fazer com a lei do Audiovisual?

Ela tem validade, a última renovação permite utilização do incentivo fiscal até este ano, 2016. Mas o audiovisual tem uma turma forte que defende a lei e ela sempre é aprovada. Por que o ministro não fala da Lei do Audiovisual? Dos 125%? Ele fala que dar 100% é inconstitucional. Mas dar 125% não é inconstitucional?

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