Chavela Vargas: uma novela musical
Cultura

Chavela Vargas: uma novela musical

Mexicana pioneira num cenário musical machista, amiga íntima e suposta amante de Frida Khalo, Chavela foi ao inferno; depois de décadas no alcoolismo, voltou ao estrelato com apoio do amigo Pedro Almodóvar

em 05/08/2016 • 12h30
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5 de agosto de 2012. “Silêncio, silêncio: a partir de hoje as amarguras voltarão a ser amargas… Se foi a grande dama Chavela Vargas”. Com essas palavras, há exatos quatro anos, a conta oficial da cantora no Twitter anunciava a partida deste mundo, aos 93 anos, de uma das mais marcantes vozes da América Latina.

“As amarguras não são amargas quando são cantadas por Chavela Vargas”, foi o dito eternizado na canção de seu amigo espanhol Joaquín Sabina. A voz rouca e chorosa da cantora virou opção inigualável na hora de sofrer. Para o “despecho” nada melhor do Chavela e uma dose de tequila.

A história de Chavela Vargas dava uma novela. Mexicana, longa, instável, dramática, como sua vida. Como seu nome de batismo: Maria Isabel Anita Carmen de Jesús Vargas Lizano.

Na verdade, ela nasceu em Costa Rica, no ano de 1919. Porém migrou ainda jovem, aos 14 ou aos 17 anos − sempre há informações imprecisas na história de sua vida −, para o país que a acolheria e pelo qual sempre foi apaixonada: o México. E na música popular mexicana encontrou seu lugar.

Música, farra e desolação

Chavela incursionou pela chamada música ranchera, um estilo musical de origem camponesa e popular que se expandiu para todo o país a partir da Revolução Mexicana de 1910, cantando sobre a vida no campo e então também sobre os fatos e façanhas desses tempos heróicos e conturbados. Com o tempo, se desenvolvem versões mais românticas das rancheras, de grande sucesso comercial, na qual se destacam entre outros José Alfredo Jiménez, uma verdadeira lenda da música mexicana, de quem Chavela foi uma grande amiga e parceira de farras homéricas, ou melhor, de “parrandas”, dito em bom mexicano.

As rancheras na maioria das vezes são acompanhadas pelos maricachis, os tradicionais grupos musicais formados por tocadores de violões, violinos, arpas e trompete, com suas roupas tradicionais. Vocalmente, se caracteriza pelas interpretações extremamente emocionais, e o alongamento nas frases finais. Em sua versão mais moderna e romântica, as letras passam geralmente falam de “despecho”, do homem abandonado pela mulher que, ébrio, entre uma tequila e outra, canta seus sofrimentos. Um gênero marcadamente masculino e de certa maneira machista.

Eram os anos 40 e Chavela desafiava os padrões morais da sociedade mexicana, vestindo-se como homem, com calça ao invés de saia, levando pistola à cintura, bebendo e fumando freneticamente.

O grande jornalista e escritor mexicano Carlos Monsiváis explicava que a cantora surpreendeu por sua atitude desafiadora e sua aposta radical. “Não foi só sua aparência que fugia das regras estabelecidas, mas também musicalmente prescindiu do mariachi, de forma que eliminou das rancheras seu caráter de festa e mostrou de forma nua sua profunda desolação”. Num vídeo de um de seus shows históricos, um jornalista diz que ela “não canta”. “Chavela grita, geme, sussura, reza, chora sua canção”, completa. Sua voz marcante, acompanhada apenas pelo violão, nos leva à um mergulho profundo em nós mesmos.

Sucesso e circulação entre artistas

Depois de anos trabalhando em diversos ofícios no México, sua carreira começaria em 1949, aos 30 anos de idade, apadrinhada por Jiménez. Passou a se apresentar em Acapulco, centro turístico internacional onde ficou conhecida nos meios artísticos, cantando inclusive no casamento da atriz Liz Taylor com o cineasta Mike Todd.  Seu primeiro grande sucesso foi a canção Macorina e o primeiro disco saiu em 1961. Foi se envolvendo nos círculos artísticos mexicanos e internacionais, cultivando ao longo da vida uma lista de amigos que incluiu Gabriel García Márquez, Federico García Lorca, Pablo Picasso, Pedro Almodóvar e Pablo Neruda.

Uma das amizades mais cativantes foi com o casal de pintores mexicanos Diego Rivera e Frida Kahlo, com quem chegou a viver mais de um ano na famosa Casa Azul em Coyoacán (bairro na zona sul da capital), onde Frida nasceu e morreu. “Me convidaram a uma festa na casa deles. E eu fiquei, me convidaram para viver com eles e aprendi todos os segredos da pintura de Frida e Diego. Segredos muito interessantes que nunca revelarei, jamais. E éramos todos felizes. Éramos uma gente que vivia dia a dia, sem um centavo, talvez sem o que comer, mas mortos de riso. O tempo todo. Fui me acostumando a eles, me acostumando a seus costumes”, contou em entrevista a Pablo Ordaz no El País.

De jeito simples e despreocupado com as formalidades, Chavela, que adorava contar anedotas, colecionou histórias curiosas e divertidas que envolvem grandes personagens, que contava seguidas de suas marcantes gargalhadas. “Tocaram a porta e eu disse a Frida que era um velho que parecia um bode cabeludo”. Era León Trotsky. “Eu não sabia quem era”, conta em entrevista.

Da vivência com o casal de pintores, especula-se que Frida e Chavela teriam sido amantes. É notório da relação conturbada entre Diego e Frida, que era bissexual, e que ambos tiveram relações com outras pessoas. Chavela era lésbica, o que nunca negou mas só assumiria publicamente depois de mais de oito décadas de vida, em sua autobiografia.

O suposto relacionamento íntimo nunca foi assumido ou comprovado, sendo as suposições baseadas apenas em alguns indícios, como a carta de Frida a seu amigo Carlos Pellicer quando a conheceu: “Hoje conheci a Chavela Vargas. Extraordinária. Lésbica, e mais, me interessou eroticamente. Não sei se ela sentiu o que eu [senti]. Mas acho que é uma mulher bastante liberal que se me pedir não duvidaria um segundo em me desnudar diante dela”.

Em entrevista em 2011, a cantora falou de sua relação com a pintora, a quem sempre se referiu com muito carinho. “Frida Kahlo foi um ser extraordinário que encheu parte da minha vida de amor; me ensinou muitas coisas e aprendi muito, e sem me gabar de nada. Agarrei o céu com as mãos, com cada palavra, cada manhã!” O certo é que foram duas mulheres que buscaram e experimentaram intensamente e corajosamente a liberdade.

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Do fundo do poço à volta por cima

A parte mais dramática da novela da vida de Chavela Vargas carece de imagens. Há apenas escuridão e algum silêncio.

O alcoolismo a levou ao fundo do poço e, no final dos anos 70 desapareceria do cenário artístico e entraria no anonimato. “Passei vinte anos bêbada e as pessoas se esqueceram de mim. Tomei quarenta e cinco mil litros de tequila”, calculava. “Já não há tequila boa no México: eu bebi tudo”, dizia em seu tom brincalhão.

Décadas depois, com idade avançava, dizia que estava bem porque seu corpo havia sido conversado no álcool.

Em uma das poucas histórias desse período, contava que um dia viu na televisão um show da cantora argentina Mercedes Sosa. Quando distribuía flores ao público, Mercedes disse: “Se alguém passar pelo México, levem ao túmulo de Chavela Vargas”.  Se assustou ao ser dada como morta. E resolveu ressuscitar. “Bebia muito e um dia disse: vou morrer. Ou morro ou me recomponho. Tenho que decidir. E disse: então deixo de beber. E disse à criada: Me dá o último copo!”

Assim parou de beber e fumar até o resto de seus dias. Voltou a cantar aos poucos em um restaurante da capital mexicana no início dos anos 90. Mas tornou-se novamente a Grande Dama quando levada à Espanha por um editor de jornal que a redescobriu cantando novamente no México. Chegou com passagens cedidas por uma companhia aérea, alojamento numa residência estudantil e uma tremenda dúvida se ainda seria lembrada tantos anos depois naquele país em que sua música chegou a ser proibida nas décadas da ditadura franquista.

No primeiro show, em Sevilha, os ingressos se esgotaram no primeiro dia. Foi aplaudida de pé. O mesmo nas apresentações seguintes em Barcelona e Madri. Quinze anos depois de desaparecer, Chavela renascia definitivamente, com mais de 70 anos de idade, para uma “nova vida” e uma nova e frutífera carreira que ainda duraria duas décadas. Em 1995, realizaria o sonho de cantar do teatro Olympia, em Paris. Aos 80 ainda saltaria de paraquedas. Aos 81, lançou sua autobiografia, “Y si quieres saber de mi pasado“.

Além de ganhar os palcos, céus e livros, também teve destaque nas telonas de cinema seja como trilha sonora ou com pequenas participações, como cantando o clássico “La Llorona” no filme Frida, estrelado por Salma Hayek. Também apareceu ou soou em diversas obras de Pedro Almodóvar, além de filmes de Werner Herzog e Alejandro Iñarritu.

Agora com os cabelos brancos e vestindo seu tradicional poncho vermelho a nova velha Chavela (re)encantava gentes de todas as idades com sua mesma voz rouca, marcante e potente, embora agora não mais molhada pela tequila. Simples, serena, brincalhona e muito agradecida se apresentava em cada palco e entrevista. “E às vezes fica calada. E só volta a falar quando tem certeza de que suas frases vão melhorar o silêncio. Quem saberia falar como cala Chavela”, descreveu Pablo Ordaz. Nos últimos anos, a morte era sempre um tema recorrente nas entrevistas e ela enfrentava com serenidade. Apenas dava gracias a la vida.

“La Dama del Poncho Rojo” também ganhou o apelido de “La Chamana” (A Xamã). “De paixão é justamente do que fala a obra de Chavela. Para mim, cada show da Chavela é um ritual religioso. Nesses ritos, Chavela é sacerdotisa, deusa. E a matéria de que nos fala e o que nos canta e nos conta é uma matéria muito dolorosa mas ao mesmo tempo imprescindível para sentir-se vivo e para viver. Fala basicamente do amor. É muito difícil falar do amor, é muito difícil cantá-lo. Entretanto, ela o faz de um modo fatal”, disse o grande amigo Pedro Almodóvar. “Quando Chavela abre os braços, eu não sei como me atrevo a vê-los. Acho que não há palco suficientemente grande para contê-la. Não vi ninguém que abra os braços como ela. Talvez Cristo na cruz. Mas ele eu não conheci”.

O cineasta espanhol dizia que encontrou na voz dela, que tantas vezes o fez chorar, uma de suas melhores interlocutoras. “E encontrei também um espelho muito fiel de mim mesmo”.

Mais que amizade, Pedro Almodóvar e Chavela viveram um caso de amor. Obviamente não no sentido sexual - sendo ele gay e ela lésbica. Mas se consideravam verdadeiramente almas gêmeas. Ela afirmava que ele fora seu 'único amor na terra'. Ele dizia que quando morresse queria que fosse lembrado primeiramente como amigo de Chavela e depois como diretor de cinema.

Frequentemente brincavam que iriam se casar. “Meu futuro marido anda por aí embaixo. Don Pedro de Almodóvar. Vamos nos casar em Oaxaca [estado do México]. Santa Ana teve filhos aos 107 anos. Porque eu não vou ter? E teremos muitos Pedritos”, disse num show em 1993, aos 75 anos, em registro do El País.

Depois de ganhar destaque na Espanha, um concerto no Palacio de Bellas Artes de México em 1995 marcou seu verdadeiro retorno ao país de coração. Ainda marcaria história o show que apresentaria a milhares de pessoas no Zócalo, praça principal da da Cidade do México em 2001. Aos 85 anos cantaria com casa cheia no renomado Carnegie Hall, em Nova York.

Mas foi na também queridas terras espanholas que ela se despediu dos palcos. Sua última apresentação foi na Residencia de Estudiantes de Madri, em homenagem ao amigo e poeta Federico García Lorca. Foi internada pouco depois mas se negou a morrer longe de seu país. Como na canção de Sabina, “dejó su corazón en Madrid”, e voltou. Voltou ao México e logo se foi além. Internada novamente aos três dias de regresso, negou medidas artificiais para prolongar sua vida. “Não vou morrer, porque sou uma xamã e nós não morremos, nós transcendemos”, publicou sua conta no Twitter. No dia seguinte, Chavela transcendeu. Num domingo à noite, como dizia que queria morrer. Para que seu funeral fosse numa segunda ou terça-feira, “para não fazer ninguém perder o fim de semana”.

A morte, talvez nem tenha sido o mergulho mais profundo de Chavela. “Deixo de herança minha liberdade que é o mais valioso do ser humano”, disse aos jovens mexicanos no Zócalo.

A liberdade e a voz de Chavela Vargas ficaram para a eternidade. Das mãos que ajustavam a agulha do toca-disco na vitrola aos dedos que clicam no YouTube ou mp3, ela continua soando. Para quando quisermos deixar nossas amarguras menos amargas. “Ojalá que te vaya bonito / ojalá que se acaben tus penas / que te digan que yo ya no existo / que conozcas personas más buenas…”

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*As citações foram traduzidas pelo autor

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