Há quase dez anos, as diplomacias de alguns países convidados para assistir a posse do novo presidente da Nicarágua, Daniel Ortega, e a imprensa internacional convocada para cobrir a troca de poder no país ficaram intrigadas com a informalidade do evento.
O novo presidente recebeu a faixa presidencial vestido com uma camisa simples suada nas axilas e com as mangas arregaçadas até os cotovelos – como se estivesse em um comício eleitoral – depois de uma hora e meia de atraso em que 16 chefes de Estado, representantes de diversos países, o alto escalão militar e político nicaraguense e duzentas mil pessoas comuns se apertavam sob o sol da capital Manágua para ver seu novo líder.
O representante estadunidense na Nicarágua naquele janeiro de 2007, Paul Trivelli, enviou uma carta a Washington dizendo que as “delegações internacionais foram humilhadas” na cerimônia, que provocou uma “estranha imagem de desordem, amadorismo e em que o populismo se sobrepôs ao protocolo”.
Por fim, nitidamente ressentido com as diferenças de tratamento, reclamava ao Departamento de Estado dos EUA que todos os olhos da posse de Ortega estiveram voltados para um homem: o comandante Hugo Chávez, então presidente da Venezuela. “Parecia um circo familiar”, escreveu.
Dez anos depois, a Nicarágua voltou a chamar a atenção mundial pela sua informalidade – só que agora em uma esfera mais grave: entre junho e julho, Daniel Ortega conseguiu dissolver os mandatos de todos os parlamentares da oposição e invalidar a candidatura do médico Luis Callejas, seu principal adversário para as eleições presidenciais de novembro deste ano. No começo de agosto, nomeou sua esposa, Rosario Murillo, ao cargo de vice-presidente no pleito que possivelmente lhe dará a segunda reeleição consecutiva. Se eleito, poderá completar 16 anos no poder e ainda deixá-lo no colo de sua esposa, mantendo o domínio político de um dos principais países da América Central em família.
Ortega é presidente da Nicarágua desde janeiro de 2007, mas já havia liderado o país centro-americano entre 1979 e 1990, entre revoluções, governos provisórios e eleições que servem a uma história comum deste lado do mundo.
Eleito com pouco mais de 35% dos votos na primeira eleição presidencial após a guerra civil, em 2006, Ortega conseguiu quase o dobro de eleitores no sufrágio seguinte, em 2011, quando venceu o empresário Fabio Gadea com 63,95% de escolhas. Foi o primeiro dirigente da Nicarágua a se reeleger depois do período de ditadura da família Somoza, que governou o país de 1937 a 1979 e que deixou o poder em uma revolução armada liderada pelo próprio Ortega. À época da vitória sobre a ditadura militar, as comparações com o cubano Fidel Castro foram naturais.
Várias explicações são possíveis para o sucesso interno de Ortega: os programas de transferência de renda que reduziram as taxas de pobreza e de miséria extrema nos relatórios anuais das Nações Unidas, o desenvolvimento econômico impulsionado pelo comércio com a China, a crença da população no fim dos períodos de guerra civil com a chegada dos revolucionários da FSLN ao poder e, enfim, a nítida segurança do país em comparação com os vizinhos Guatemala, El Salvador e Honduras, onde está localizada a cidade mais violenta do mundo, San Pedro Sula.
“Os meios de comunicação fazem uma campanha permanente em favor da figura de Ortega e de sua esposa. Em todo o país é possível ver propagandas, retratos e fotografias do casal. A verdade é que a mídia distorce a imagem dele para apresentá-lo como um bom presidente, mesmo que ele nunca tenha dado uma entrevista sequer aos principais jornais nicaraguenses e nem disponibilizado dados sobre sua administração”, explica Javier Menocal, coordenador do curso de Filosofia e Ética da Universidad Centroamericana, uma das poucas existentes no país.
À reeleição vantajosa se somou também sua popularidade entre os líderes de esquerda da América Latina: Chávez o chamava de “irmão” – e não à toa os investimentos venezuelanos na Nicarágua passaram de US$ 25 milhões em 2008 para US$ 1,4 bilhão em 2016.
Lula, à época presidente brasileiro, aumentou o fluxo comercial entre os dois países em 50% e autorizou o BNDES financiar a construção de uma hidrelétrica na região de Tumarín, ao oeste de Manágua. Visitou mais vezes a Nicarágua do que Fernando Henrique Cardoso em todos os anos de seus governos. Encontros com Fidel Castro, Rafael Correa (Equador), Evo Morales (Bolívia) e Fernando Lugo (ex-presidente do Paraguai) também costumam ser constantes na agenda do líder nicaraguense.
O mundo começou a olhar com estranheza para a Nicarágua em janeiro de 2014, quando o parlamento – já dominado pelo seu partido, a FSLN (Frente Sandinista de Liberación Nacional) – aprovou uma reforma constitucional que permitia a reeleição presidencial indefinida. Ortega, com 66% de aprovação ao seu governo naquela época, se lançou imediatamente como candidato ao pleito seguinte, que se realizará neste ano.
A oposição, já reunida em um bloco com uma dezena de partidos contrários à FSLN, rodeou novamente o empresário Fabio Gadea que, ainda ressentido pela derrota de 2011 e um dos principais nomes do setor político que acreditava que Ortega fraudava as eleições no país, recusou o chamado para ser candidato. Sobrou para o médico e deputado Luis Callejas, do partido liberal PLI, que se assumiu ao pleito em abril deste ano. Seu discurso até o começo de junho era simples e voraz: acabar com a “ditadura” de Ortega.
As pesquisas de opinião nos meses seguintes, no entanto, seguiram uma tendência contraditória: em maio, a M&R Consultores divulgou que Ortega tinha 63% das intenções de voto, enquanto todos os candidatos opositores reunidos somavam 5,9%. Em junho, a mesma consultoria publicou outra pesquisa que indicava um aumento brutal do presidente em quase 20 pontos percentuais: ele teria 81,9% dos votos. Houve quem o acusou de comprar os estudos eleitorais. Na Venezuela chavista as comemorações foram inevitáveis: no final de junho o canal estatal Telesur publicou artigo dizendo que a oposição nicaraguense “cambaleava”.
No dia 8 de junho, a Suprema Corte do país – dominada, segundo a imprensa local, por homens de Ortega – anunciou a invalidação da representação jurídica do Partido Liberal Independiente (PLI), principal partido opositor e que havia indicado Callejas para liderar a oposição nas eleições. Esse posto era do deputado Eduardo Montealegre, derrotado por Ortega nas eleições de 2006 e nome forte do grupo contrário ao governo.
Sem ele, a nomeação de Callejas para o pleito também ruiu, deixando o caminho livre para o presidente. Sem o seu principal rival, ele só teria que enfrentar candidatos independentes nas eleições de novembro.
“A população já percebeu que está sendo instalada uma ditadura na Nicarágua. Todos os poderes do Estado estão sob controle de Ortega, além da Polícia Nacional, o exército e todos os meios de comunicação. A gestão atual do país é arbitrária e ditatorial”, conta Menocal, da Universidad Centroamericana de Manágua.
'Ortega está fazendo o que quer. Não existe mais Estado de Direito e a constituição está sendo violada constantemente', completa.
Junho também foi o mês em que Ortega proibiu o acesso dos observadores eleitorais internacionais na Nicarágua aos dados das eleições de novembro. O Carter Center, do ex-presidente estadunidense Jimmy Carter, e uma comitiva europeia instalada em Manágua, presentes tradicionalmente em eleições na América Latina, foram retirados desse papel para o pleito de novembro. Carter chegou a dizer que o presidente nicaraguense estava cometendo um “ataque à comunidade internacional”. Os olhos do mundo voltaram-se com mais vigor ao país centro-americano. Na Europa, já se falava uma possível segunda reeleição em novembro não teria legitimidade institucional.
Em 2008, os mesmos observadores internacionais haviam alertado que o partido de Ortega – a FSLN – havia fraudado as eleições em 40 das 153 cidades nicaraguenses. O presidente e seus companheiros, obviamente, negaram as acusações.
O mundo, enfim, tomou dimensão da situação nicaraguense no começo de agosto, quando o jornal estadunidense New York Times publicou um editorial intitulado “Dinastia, a versão Nicarágua”. No texto, o veículo disse que as eleições de novembro no país centro-americano não serão democráticas e que o poder do presidente está baseado em um vasto esquema de clientelismo e de nepotismo. O El País, da Espanha, colaborou enfim com as denúncias ao publicar reportagem mostrando a presença de familiares do governante em todos os ramos do Estado.
Laureano Ortega, um dos seus filhos, é assessor presidencial e homem forte de uma das principais estatais do país, a ProNicaragua. Rafael Ortega, outro filho, controla a distribuidora nacional de petróleo, que recebe os petrodólares da Venezuela, ao lado de sua esposa, Yurida Leets. O terceiro filho, Juan Carlos Ortega, comanda o principal canal de televisão do país, o Canal 8, e os outros três, Maurice, Daniel Edmundo e Carlos Enrique, são responsáveis pelas outras estações de televisão existentes no país.
Para além deles, a sua mulher, Rosário Murillo, serviu como secretária do gabinete presidencial até o final do mês passado, quando foi nomeada candidata à vice-presidência em novembro. Na Nicarágua parece claro que, no futuro, Ortega fará de tudo para presenteá-la com a faixa presidencial.
No começo de agosto, outra decisão judicial sobre as eleições chamaram atenção: o Tribunal Eleitoral – da mesma forma controlado pela FSLN – baixou uma nova regulamentação para o pleito proibindo alguns tipos de comentários por parte de jornalistas e de cidadãos nas redes sociais. As críticas voltaram-se não apenas sobre a ação, mas também sobre o presidente do tribunal, Roberto Rivas, envolvido em diversos escândalos de corrupção e um dos homens mais odiados na Nicarágua. Uma espécie de Eduardo Cunha centro-americano.
Provável vencedor das eleições que acontecerão em três meses, Daniel Ortega – guerrilheiro que ajudou a expulsar a família Somoza do país e acabar com uma das ditaduras mais famosas da América Latina no século XX – deve completar um ciclo curioso quando, enfim, quiser deixar o cargo: o de ter ficado no poder por mais tempo que o ditador cuja luta e vitória lhe deu fama mundial. Enquanto Somoza dirigiu o país por 16 anos, ele provavelmente deixará o Palácio La Loma, em Manágua, após vinte anos de poder.
FOTO: Ismael Francisco/ Cubadebate