A fé que se revela na penumbra
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A fé feita de sal e penumbra

A Catedral de Zapaquirá, na Colômbia, é a maior igreja subterrânea do mundo; construída em uma mina de sal, tem capacidade para até 10 mil pessoas

em 04/07/2016 • 00h56
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Deus está acima de todas as coisas. Mas, na Colômbia, essa crença cai por terra, precisamente a 180 metros abaixo da superfície. Estamos na Catedral de Sal de Zipaquirá, na cidade de mesmo nome, a cerca de 50 km de Bogotá.

De dimensões generosas, como o criador promete ser, o santuário católico é o maior templo subterrâneo do mundo. Para senti-lo em sua potência é preciso esquecer da luz quente do sol que atravessa os vitrais, do ouro, do piso de mármore, das colunas imponentes, dos lustres de cristal, dos sinos em suas charmosas torres.

Só não se esqueça da fé. Foi ela que, junto a toneladas de explosivos e quatro anos de obras intensas, transformaram a escuridão insólita, com gases passíveis de explosões mortais, em um espaço que evoca a paz e a contemplação. Uma igreja que respira a sal dentro de uma mina viva, que nos remete há dezenas de milhões de anos.

As mesmas forças da natureza que formaram a Cordilheira Central Colombiana deram origem à mina de sal de Zipaquirá. O forte movimento da terra fez com que montanhas se unissem e represassem um mar entre elas, há milhares de anos. Com o processo de evaporação da água e o desaparecimento do mar, gigantes bolsas de sal ficaram submersas e se misturaram ao terreno, formando rochas com altíssimo teor salino.

A igreja é um pedaço muito pequeno diante dessa imensidão branca, ocupa parte da mina já desativada. Todo o complexo de exploração conta com reservas de mais de 250 bilhões de toneladas de sal. Estoque para a extração de mais cinco séculos.

Isso porque a mina já está sendo explorada há mais de 500 anos. Primeiro pelos indígenas Muiscas; depois pelos colonizadores, ainda com técnicas bem artesanais de extração. No século 18, chegaram as ferramentas, os maquinários e os explosivos. Desde 1990 até hoje, a retirada do sal é feita da maneira mais moderna e segura que existe: via um complexo sistema de ductos e válvulas de pressão que formam bolsas de água salgada, que são enviadas – em contrapressão – à superfície da mina. Esses poços são tão profundos que a Torre Eiffel caberia neles.

Dessa exploração de séculos se talhou costumes, culturas, fez de grande parte dos moradores de Zipaquirá mineiros, e da mineração a grande atividade econômica, figurando entre as maiores do país. Incontáveis gerações, que se dissolvem e nascem, se transformam e se moldam em torno desse único elemento. Mas o sal não conta sozinho essa história. Sem a presença humana ele estaria ainda mudo, intacto.

Daí se entende a força do mineiro. É ele que enfrenta a morte, a escuridão total, as condições extremas do ofício. A fé, nesse contexto, ganha outra dimensão. Ela se torna o pão de cada dia, essencial nesse universo que parece escondido até de Deus, onde a relação entre homem, rocha, medo e necessidade está debaixo dos olhos de todos. Sem ter para onde correr, quem não rogaria a proteção divina? Quem seria tão corajoso a ponto de dispensar a vigilância da Nossa Senhora de Guasá?

Da padroeira dos mineiros nasceu a inspiração. A devoção a essa santa fazia com que os homens que ali trabalhavam, na medida em que iam abrindo espaço nas rochas, construíam altares improvisados. Aos domingos, um padre os acompanhavam e fazia uma missa pedindo proteção a todos. E assim, se deram conta de que o lugar poderia receber um templo.

Para abrigar a fé, foi construída a primeira catedral – já desativada – que tinha capacidade para receber até 8 mil pessoas, com 5.500 metros quadrados. Estava no primeiro nível já explorado da mina. Esteve aberta aos visitantes e fiéis de 1952 a 1992, quando teve que ser fechada por não oferecer condições de segurança.

O sal começava a brigar pelo seu espaço, era hora de procurar outra forma de expressar o divino. Encontraram o local ideal: 60 metros abaixo da primeira catedral, no terceiro nível da mina. Deram início a construção da Primeira Maravilha da Colômbia, com 8.500 metros quadrados podendo receber até 10 mil pessoas de uma única vez.

 

Foi assim que o arquiteto Roswell Garavito Pearl classificou as obras do novo santuário. O projeto dele foi o ganhador do concurso promovido pelo Instituto de Fomento Industrial, a Concessão Salinas e a Sociedade de Arquitetos em 1990, que reuniu 44 propostas para a construção do novo templo. As obras começaram em 1991. O engenheiro responsável foi Jorge Enrique Castelblanco Reyes.

 Em condições normais de temperatura e pressão, um arquiteto precisa criar o desenho da fachada, projetar a entrada de luz natural, definir tipos de materiais a serem usados; detalhes que para a construção da catedral não tinham sentindo algum. O desafio era dar forma ao templo sem um grama de cimento, qualquer tipo de ladrilho ou alvenaria. O sal teria que dar conta do recado.

Nesse cenário insólito e mortal, o cotidiano das obras foi de explosões para se abrir buracos na rocha, do contato com gases letais como o metano, e de muita escuridão – essa companheira silenciosa e ingrata. Depois desafio das gigantescas galerias e corredores formados, a força de se talhar o projeto à mão, na marreta, para que aí sim os escultores pudessem fazer da rocha seus painéis de desenhar a fé.

A obra foi de uma complexidade técnica tremenda. Não é à toa que a igreja é considerada um dos grandes feitos arquitetônicos do país. A equipe foi igualmente robusta: 127 mineiros colombianos, arquitetos, engenheiros, escultores. Eles extraíram 1.250 toneladas de rocha durante todo processo. Cinco mineiros não voltaram para suas casas, viraram luz. Foram surpreendidos por uma grande explosão.

E em dezembro de 1995, o santuário foi inaugurado. “Temos um orgulho imenso da Catedral. O fato de estar em uma mina já a torna surpreendente por si só. É a nossa maravilha, mostra ao mundo a religiosidade do povo colombiano, a nossa riqueza cultural e arquitetônica”, comenta com o sorriso no rosto o colombiano Alexander Cortés, engenheiro industrial, 30 anos.

Na entrada do santuário o cheiro forte do metano. Se pode tocar nas paredes brancas de sal, sentir a aspereza das rochas. A penumbra que revela a crença do homem no divino. Uma imersão, de fato, em um cenário muito diferente do qual estamos habituados: me senti deslocada conhecendo o lado de dentro da Terra.

O templo é vivo, interage com você. A impressão é que tudo - do teto ao chão - é sagrado, porque é a natureza pura.

“A catedral tem uma combinação especial, não só pela energia religiosa, mas pelo fato de estar entre grandes escavações que carregam séculos de história. É um dos poucos exemplos no mundo em que essa combinação está em total sintonia, por isso se vive uma experiência diferenciada”, comenta a jornalista colombiana Clara Benítez, de 51 anos.

Nossa experiência ocorreu em janeiro deste ano. O passeio dura uma hora e pode ser guiado, em inglês ou espanhol. Fique tranquilo (a), o santuário é completamente seguro, não corre riscos de desabamento. O trajeto é de aproximadamente dois quilômetros de extensão. Logo no início, estão as estações da Via Crucis, que representam o calvário de Jesus até ser crucificado. No total são 14. Elas – como em todo o templo –  são acariciadas por um tratamento de luz especial, que transforma o cenário inóspito em divino.

Após a via Crucis, seguimos para a cúpula da Catedral. Uma esfera lisa, suave, pequena e azul, que representa a Terra. A essa altura desistimos de seguir o guia e o grupo em que estávamos. “Estou ansioso, quero ver o que tem lá na frente, vamos sozinhos descobrir tudo isso”, disse meu companheiro de viagem e de vida, Arthur dos Santos, Design, 26 anos.

Como são muitos visitantes ao dia, cerca de 500 mil ao ano, a decisão foi sábia. Se afastar do tumulto nos levou para outro nível de contemplação do santuário. Precisávamos de mais tempo naquele ambiente: era preciso esquecer a sensação da luz do sol no nosso corpo, se acostumar a respirar um ar mais pesado, entender a simplicidade daquelas esculturas, provar o sal das paredes e vê-lo brotar.

Subimos e descemos as escadas da penitência e da rendição, encontramos o altar dedicado a Nossa Senhora de Guasá. O altar estava vazio e silencioso. A santa estava em paz zelando pelos seus filhos mineiros, sem o aglomerado dos visitantes, que na Semana Santa chegam a 10 mil por dia.

Logo em seguida nos deparamos com o salão principal, de uma beleza estonteante, onde ficam as naves do Renascimento, Vida e Ressurreição. Elas são separadas por quatro gigantescos pilares de rocha que representam os evangelistas. Cravado no chão, uma homenagem à Michelangelo. Sua obra A Criação do Homem foi talhada no mármore pelo escultor Carlos Enrique Rodríguez Arango. Ao fundo do salão, a cruz de 16 metros de altura, totalmente feita de sal, iluminada e imponente em sua simplicidade. Ali, se realizam missas todos os domingos, às 12 horas.

Para depois do altar principal, havia outras atrações, muito mais turísticas do que religiosas. Uma estrutura muito bem organizada: lojas, estandes para bocadillos e café, um museu de esmeraldas, sala de projeções de vídeo, salão para convenções, a entrada para o tour do mineiro e show de luzes. Ao todo a catedral conta com 150 funcionários, diariamente, para manter todas suas atrações. A parte disso, na área externa da mina, conhecida como Parque do Sal, há inúmeras opções de lazer e ecoturismo, distribuídas em uma área de 32 hectares.

Fizemos todas as atrações possíveis, não queríamos deixar aquele lugar. Estávamos encantados descobrindo o lado de dentro da Terra e da fé. Mas o templo começou a ficar vazio, eram seis horas da tarde e decidimos ir embora. Antes, voltei ao salão principal, fiz minhas orações, me despedi de Zipaquirá e de sua história de milhões de anos e de milhares de vidas.

Depois de quatro horas dentro da mina, quando saímos ainda havia a luz do sol, que delícia a sensação de senti-la novamente. Respirei ar puro, fiquei aliviada de ver o céu. Lembrei imediatamente dos mineiros que passam grande parte de suas vidas submersos. Me perguntei mais uma vez: quem seria tão corajoso a ponto de não rogar a proteção divina? A sorte é que na Colômbia Deus pode estar em todos os lugares, até debaixo da terra.

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