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Fotografia

Uma jornada rumo à extração de madeira na Amazônia

Fotógrafo Fellipe Abreu navegou seis meses pela selva para acompanhar a extração ilegal de madeira nobres, na fronteira com Peru; confira as imagens

em 25/08/2016 • 09h00
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Quando se preparava para passar seis meses na floresta amazônica, investigando, conhecendo e fotografando madeireiras ilegais na fronteira do Brasil com o Peru, o jornalista e fotógrafo Fellipe Abreu não fazia ideia do quanto essa jornada mudaria a sua vida.

Primeiro, pela mudança de perspectiva. Em lugar de encontrar perigosos traficantes e integrantes da máfia da madeira ilegal, o que Fellipe conheceu foram humildes trabalhadores rurais, que vivem mal e ganham pior ainda com uma das únicas possíveis fontes de renda na tríplice fronteira. Depois, pelo desafio de trocar o conforto de casa por um barco de nove metros de comprimento por 1,5 metro de largura, que viraria sua versão fluvial dos traillers norte-americanos durante dois meses e meio, enquanto navegava pelos rios Javari e Curuçá. Pelo desprendimento de ficar semanas, às vezes meses, sem notícias dos amigos e da família, completamente isolado numa selva onipotente e onipresente, que te mostra o quão frágil e pequeno é o ser humano, ao contrário do que costumamos acreditar.

Pelo efeito dilacerante de conviver em comunidades indígenas com escassa estrutura educacional e de saúde, onde foi obrigado a ver, impotente, nativos quase morrendo de hepatite C. Pelo desapego de ter que esquecer internet, telefone, orelhão, banheiro, água quente e colchão. Pelo doloroso e libertador aprendizado que a selva exerce sobre sua alma, sua vida e sua visão de mundo – ali, esvai-se a ingênua e lúdica visão de que viver na maior selva do planeta representa uma vida de abundância, frutas, sombra e água fresca. A selva é linda e engrandecedora, mas desbravá-la é demolir mitos. E o primeiro deles é de que não é nada fácil viver na Amazônia.

Uma jornada desse tipo transforma qualquer pessoa; mas o que mudaria realmente a vida de Fellipe seria uma colombiana, chamada Carolina, que ele conheceu na cidade de Letícia, na tríplice fronteira (Colômbia, Brasil e Peru), no quarto dia dessa aventura no coração da Amazônia.

“Nos apaixonamos, e foi complicado porque eu estava ainda me preparando para adentrar na selva de barco. Ficávamos dias, semanas, sem nos falar”. Hoje, Fellipe e Carolina são casados e moram em São Paulo.

Fellipe embarcou nesta aventura em dezembro de 2012, com uma bolsa de pesquisa da Fundação Open Society. Sua primeira parada foi na cidade de Tabatinga – que fica na tríplice fronteira (Brasil, Peru e Colômbia) – e que, em território colombiano, chama-se Letícia. Fellipe morou ali por três meses enquanto fazia a produção para percorrer mais de três mil quilômetros rio abaixo. Ele comprou um barco, dois mil litros de gasolina, contratou um barqueiro, fez contato com comunidades indígenas e entrevistou policiais federais.

Em março de 2013, embarcou no seu trailler-fluvial com o seu colega peruano de viagem e comida – um fardo de arroz, latas de atum, macarrão, sal e leite ninho com Toddy. Dormia numa rede no barco, passava às vezes sete dias navegando sem ver ninguém a não ser seu companheiro de viagem.

Uma de suas experiências mais marcantes foram os sete dias que passou com os madeireiros de Nueva Esperanza (no Peru). “Eu me apresentava como fotógrafo de vida selvagem. Ficava ali, no começo não falava muito. Daí começava a conversar, tomava um café, jogava baralho com eles. Depois de 3, 4 dias, eles já estavam confiando em mim e me contando tudo – inclusive como funciona o esquema de extração ilegal de madeira”, lembra.

A extração ilegal de madeiras nobres acontece basicamente com licenças falsas. A extração de madeira no Peru, para ser considerada legal, deve, obrigatoriamente, estar dentro de uma área autorizada, as chamadas concessões florestais da Inrena (Instituto Nacional de Recursos Naturales). A madeira extraída dessa área precisa ser registrada em dois documentos, ambos fornecidos pelo instituto.

Porém, a quase nula presença do Inrena na região abre um enorme espaço para dois tipos de ilegalidades: madeireiros que não têm a concessão florestal compram documentos de outros madeireiros e os adulteram; madeireiros que têm a concessão florestal para uma determinada área retiram madeira de outra região e adulteram seus documentos.

Esse processo é chamado, no Peru, de ‘blanqueamento de la madera’. Estima-se que o Peru seja responsável por 80% de toda a madeira nobre ilegal comercializada no mundo.

Depois desses dias convivendo com os madeireiros no acampamento (“no meio do nada, sem luz elétrica, com uma cozinheira, um caçador e um casebre”), Fellipe foi convidado para acompanhar de perto uma extração de um cedro. “O barulho da árvore caindo é bizarro”.

Os madeireiros atuam durante a seca. Cortam as toras de madeira de quatro em quatro metros, as deixam num igarapé seco à espera da cheia. Na época das chuvas, os igarapés se enchem e as toras são transportadas rio abaixo, com a correnteza. Num rio maior, um deles grampeia as toras entre si, anexa as toras em um barco e parte, com sua longa cauda de madeira nobre que levou centenas de anos para crescer, rumo a lugar incerto e não sabido.

Outra percepção que o marcou nessa viagem foi a diferença entre os dois países – Peru e Brasil.

'Há uma assimetria entre os indígenas do Peru e do Brasil, porque as comunidades brasileiras recebem o Bolsa Família. Depois que passam a receber o benefício, eles param de se envolver com coisas ilícitas. Ganham mais com o Bolsa Família do que com a extração de madeira'.

Nesta jornada, Fellipe passou por quatro comunidades indígenas (Trinta e Um, São Meireles e Soles da etnia Matsés e Maronal da etnia Marubo), duas bases militares brasileiras (Estirão do Equador e Palmeiras do Javari), uma base peruana (Angamos), duas comunidades madeireiras peruanas e uma área de extração ilegal em terras indígenas.

Foi ameaçado por cultivadores de coca, fez novos amigos, vivenciou atividades que poucos têm acesso, conheceu os rincões da maior selva do mundo, aprendeu com as tradições indígenas, compreendeu o real tamanho da natureza e de si próprio. Mas sua melhor experiência foi, sem dúvida, Carolina.

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