Um Manuel entre tantos Nerudas
Cultura

Um Manuel entre tantos Nerudas

Em entrevista exclusiva, neto do poeta chileno revela os bastidores emocionantes de um filme sobre a fuga de Neruda pelos Andes

em 24/09/2016 • 11h00
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O fato de o diretor Manuel Basoalto ser sobrinho-neto do Pablo Neruda não foi motivação alguma para que ele se embrenhasse na confecção do longa-metragem “Neruda – Fugitivo”. A ligação entre Manuel e Pablo é mais poética que genética, mais ideológica que familiar. Além de sensível, o filme é um dos mais aventureiros já produzidos. Ele retrata a fuga que o poeta empreendeu, em 1949, em meio aos desfiladeiros dos Andes, cruzando a rota dos contrabandistas a fim de escapar da perseguição política do aprendiz de ditador Gabriel González Videla, cuja história tratou de nomeá-lo como “O Traidor”.

Manuel fez questão de filmar o longa exatamente nos mesmos lugares e na mesma época do ano em que o poeta passou. Os riscos eram iminentes e Manuel jura que jamais fará algo parecido, ainda que as dificuldades e o aprendizado tenham ido além do cinema: “Quando conheci Juan Flores, já com 85 anos, o principal arrieiro que acompanhou Neruda, ele não se atrevia a falar. Ele sempre viveu nas montanhas e pensava, mesmo 50 anos depois, que poderia ser preso pela polícia por ter feito algo ilegal, afinal havia ajudado um poeta fugitivo”, conta Manuel.

A desesperada debandada deu origem a dois maravilhosos livros de Neruda: a autobiografia “Confieso que he vivido”, escrita após a fuga; e “Canto General”, uma poesia imprescindível para todos que vivem no extremo sul da terra da liberdade, escrita durante a fuga, e portanto sua mais sincera confissão de amor à poesia e aos de abajo, ao povo, aos explorados. A Calle2 conversou com Manuel Basoalto sobre este corajoso projeto.

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Uma dúvida pessoal: qual seu interesse na poesia de Neruda?

Já tinha feito alguns documentários sobre Neruda. Assim que terminou a ditadura no Chile comecei uma trilogia sobre as casas de Neruda, alguns dos quais tinham sido invadidas e destruídas como as de Santiago e Valparaíso: La Chascona e La Sebastiana. Nesse período eu estava focado em fazer documentário e não queria que a memória do que aconteceu no Chile fosse perdida, especialmente a de um personagem como Neruda, que representou muitas pessoas em nosso país, particularmente aqueles sonhos de construção de uma sociedade melhor. Fora isso, eu sempre li poesia, muitos autores como Vicente Huidobro, Nicanor Parra, Gonzalo Rojas e Pablo Neruda, entre outros. Meu interesse particular em Neruda, além de sua obra poética, é sua vida, o seu compromisso com a mudança social e os mais fracos.

O filme conta um momento importante não só da vida, mas da poesia de Neruda, quando ele escreveu “Canto General”. Quais foram suas preocupações para integrar, num longa de perseguição, esta criação poética?

O filme se concentra no período em que Neruda escreveu “Canto General”. Para muitos, é seu livro mais importante, uma espécie de Bíblia da América Latina, onde estão os grandes temas da nossa história e da história do mundo. Boa parte deste livro é escrito na clandestinidade. Neruda vai deixando fragmentos e capítulos em lares por onde passa, vai entregando cópias para amigos, e essa atitude deixa claro que quer salvar o livro, deixar seu testemunho caso seja preso. Faz apenas um ano que um colecionador e pesquisador conseguiu reunir todos os fragmentos. É interessante a lealdade de Neruda ao seu ofício de poeta, porque ele nunca para de escrever, nem sequer vivendo como um fugitivo da polícia. Neruda leva sua pequena máquina de escrever para todos os lugares, sua principal arma. Um arrieiro me disse que disseram a Neruda para deixá-la quando empreendeu a perigosa travessia nas montanhas, mas ele se recusou. Eu acho que o poeta, em sua situação de perseguição, escreveu “Canto General” também como um épico pessoal, não estava falando abstrações, estava vivendo as circunstâncias diretas da história da América Latina e as consequências do colonialismo vivo, que eu acho que continua até hoje.

Como a fuga pelos Andes impactou “Canto General” e como você transportou isso para o roteiro e para as imagens?

A fuga de Neruda para o sul nos leva mais uma vez para o mundo da sua infância, por entre florestas, neve, rios e chuva. Acho que o filme reflete esse mundo de Neruda criança na sua relação com a natureza. De certa forma, o poeta fugitivo é um ser colocado num transe próximo à morte, há momentos fortes de solidão e insegurança.

Vocês filmaram na rota dos contrabandistas, exatamente onde Neruda passou. Por que essa ideia fixa?

A rota dos contrabandistas é para mim um dos lugares mais impressionantes do planeta, ali se sente a presença imponente da Cordilheira dos Andes, de uma natureza que ainda não foi dominada. Inicialmente eu pensei que Neruda tinha exagerado um pouco ao falar disso no “Confieso que he vivido”, seu livro de memórias. Mas descobri, em campo, que ele não tinha exagerado em nada. Realmente, passar por essa cordilheira foi um enorme desafio, ainda mais naquela época do ano, o que me fez entender que Neruda se sentia com uma missão fundamental, que não era apenas fugir, mas também dizer ao mundo o que estava acontecendo no Chile. Toda a equipe viveu situações de risco e eu me sentia responsável. Teve uma hora, na subida, que nosso ator José Secall esteve a ponto de perder a vida: seu cavalo começou a recuar em uma área de pedras e ficou só em três patas, lutando para não cair num abismo. É possível ver coisas assim no filme, e não é efeito especial. Todo o filme foi rodado nos lugares onde os eventos ocorreram, em algumas casas onde Neruda ficou escondido, como o subterrâneo de Valparaíso. Eu acho que isso é algo que herdei dos documentários, mas é algo que não voltaria a repetir.

Imagino que vocês tiveram muitas dificuldades em filmar nos Andes, ainda mais nessas rotas. Como foi essa experiência? Alguma te marcou mais?

Toda a equipe de “Neruda – Fugitivo” aprendeu muito, não apenas sobre o poeta. Eu acho que nós crescemos humanamente. Estabelecemos vínculos com os arrieiros que nos ajudaram, com as pessoas que vivem hoje nas montanhas. Muitos dos atores não são atores, são as pessoas que moram na montanha, era difícil conseguir atores com aquele perfil e também com habilidade com cavalos. Eu sou grato a todas essas pessoas que entenderam o que estávamos fazendo, embora alguns deles nunca tinham visto um filme em sua vida. Quando o filme foi finalizado, fizemos várias sessões para essas pessoas que nos ajudaram, eles sabiam que estavam ajudando na reconstrução de nossa memória histórica, porque essa é uma das tarefas do cinema. Porque se os países não têm memória, não têm identidade também, nem a possibilidade de construir um futuro melhor.

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